quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

O gosto pela educação: os padres Liberal Sampaio e José Gonçalves Laje


José Gonçalves Laje


Já referi o Padre José Gonçalves Lage aqui no blog, como um homem das relações do meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio. Na altura em que escrevi o texto, encontrei o seu retrato, que dedicou ao meu antepassado com uma acrisolada amizade, provavelmente entre 1875-1880.

No seu tempo, este Padre Lage foi uma personagem com a sua importância, desenvolvendo uma actividade como autor bastante significativa. Escreveu manuais escolares de história, geografia, literatura, retórica e linguística. Ao todo contei 23 títulos assinados por ele no catálogo colectivo das bibliotecas portuguesas, o Porbase. José Gonçalves Lage e Liberal Sampaio eram conterrâneos de Sarraquinhos, Montalegre e eram provavelmente parentes, pois a avó do meu antepassado era de apelido Lage.

Dedicatória do Padre Lage a Liberal Sampaio no verso do retrato



Recentemente localizei duas cartas escritas a Liberal Sampaio pelo Padre Lage, datadas de 30 de Dezembro de 1880 e 2 de Fevereiro de 1881, que serviram de motivo para investigar alguns dados biográficos daquele autor de manuais escolares e ainda me esclareceram sobre alguns aspectos da vida do meu trisavô.

No portal O clero secular: elite socio-religiosa e lideranças eclesiásticas (séculos XIX e XX), que é um extraordinário levantamento de todos os padres activos em Portugal, encontrei o registo do Padre José Gonçalves Lage, que me revelou a data exacta do seu nascimento, 10 de Março de 1838 em Sarraquinhos, Montalegre, filho de Bento Gonçalves Lage e Ana Goncalves Pelho e ainda consegui aproximar-me um pouco mais do ano da sua morte. Em 2020, quando escrevi sobre o assunto, referi que a última obra que assinou foi em 1901 as Noções elementares de geographia, chronologia e chorographia de Portugal, mas já adaptadas por L. Pinto da Rocha e que nesse ano já teria falecido. Ao consultar os registos da última paróquia de que foi cura, Vila Nova de Anços, concelho de Soure, distrito de Coimbra, apercebi-me que o último assento redigido pelo Padre Lage foi em 18 de Novembro de 1895. O primeiro assento de 1896 foi já assinado por um novo pároco José Maria Simões da Silva. Em suma, José Gonçalves Lage terá morrido entre finais de 1895 e 1901

O percurso do Padre Lage em O clero secular: elite socio-religiosa e lideranças eclesiásticas (séculos XIX e XX),



Na carta de 30 de Dezembro de 1880, dada em Coimbra, que dirigiu ao meu trisavô, que trata por tu, refere que Liberal terá muitas moedas em duplicado. Há aqui um lente meu amigo que anda fazendo uma colecção e a comprar a torto e a direito quantas lhes apareçam. Agradeço-te que cedas todas as que não que não te fizerem falta. Pede por elas o que entenderes e aí te será remetido (…) Tenho interesse em que cedas essas velharias de moedas duplicadas, não só porque te serão bem pagas, mas também porque desejaria satisfazer aquele lente, que é o meu amigo.

Na carta seguinte de 2 de Fevereiro de 1881, o assunto evoluiu e o Padre Lage escreveu Pelo que respeita às medalhas e moedas, desde já conto com elas, e provavelmente recebes as 100 libras pela colecção, mas é necessário elas virem à mostra. (…) Se fosse possível manda-las num caixote pregado por um almocreve para Braga, dali vinham facilmente para aqui. Eu respondo e comprometo-me por tudo. Pensarás e veremos se se pode resolver este problema com vantagem para os teus interesses e para as minhas conveniências. E digo minhas conveniências, porque as tenho em servir este homem.

Carta de 2 de Fevereiro de 1881,



Naturalmente sabia que o meu trisavô Liberal Sampaio foi um numismata e uma parte da sua colecção chegou aos nossos dias, mas não fazia a ideia de que em 1880 já tinha reunido um conjunto significativo e de boa qualidade, pois 100 libras era uma soma muito considerável na década de 80 do século XIX. Segundo Jaime Reis em Aspectos da história monetária portuguesa da segunda metade do século xix, a moeda de ouro que circulava livremente no país tanto poderia ser a cunhada pela Casa da Moeda como a libra esterlina, cujo valor se fixava em 4$500 réis. Portanto 100 Libras equivaleriam a 450 000 réis, quase metade de um conto de réis. Não sei se Liberal Sampaio chegou a concluir o negócio, mas era vulgar os coleccionadores venderem parte ou a totalidade das suas colecções e voltarem a comprar mais tarde peças de melhor qualidade. Ainda há uns tempos pouco falar desse aspecto numa inauguração de uma exposição no MNAA, dedicada a Guerra Junqueiro, como coleccionador de arte.

Carta de 2 de Fevereiro de 1881



E no período em que estas cartas foram escritas, o meu antepassado precisava de dinheiro. Em 1879, sem dúvida em consequência de um certo escândalo provocado pelo nascimento do seu filho com uma fidalga de uma família muito conhecida de Chaves, perdeu o seu lugar de pároco de Outeiro Seco, deve ter caído em desgraça e feito os seus inimigos. Claro, ele lá tinha as suas terras lá por Montalegre que lhe dariam algum rendimento e a sua actividade de pregador, mas pela leitura destas cartas parecia realmente estar em apuros financeiros.

Carta de 2 de Fevereiro de 1881



Segundo, a breve biografia que a minha avó traçou dele, nestes tempos, entre 1879 e 1886, antes de ir para a Universidade de Coimbra, Liberal Sampaio Liberal Sampaio formou uma escola de em Outeiro Seco, onde ministrava latim, português, história e filosofia, mas nunca encontrei nenhum documento da época sobre a sua existência. Presumo que fossem aulas particulares.

Liberal Sampaio terá escrito uma carta ao Padre José Gonçalves Lage falando nessa escola e em resposta, a 2 de Fevereiro de 1881, o segundo viu a luta travada entre Liberal e esses gigantes. Nasceste para a luta e para a vitória. Não são capazes de te vencer e bem o estimo. (…) Aqui estou para te coadjuvar em tudo o que puder e com máxima lealdade.

Se os teus calouros tiverem de fazer exame aqui [em Coimbra] garantia-te muito bons serviços.

(…) lembro-te de que também em Braga te posso ajudar por causa dos teus calouros. Há ali uns professores novos para quem se arranjará daqui bons empenhos. Eu tomo pela tua causa tanto empenho como pela minha: a nossa causa é comum.

A eles, a eles! Por aqui também há santarrões como os missionários de Barroso. Creio nos homens bons. E estimo-os, mas quando são hipócritas…

O Padre Lage prossegue a sua carta, prontificando-se a apoiar a escola enviando livros, nomeadamente um Vírgilio e para português, remeterá uma Poética, obra da sua autoria, da qual modestamente diz. Não será boa, nem é completa, mas tem corrido muito e foi muito bem recebida. Foi adoptada nalgumas partes e tem salvado já muito calouro.

Anuncia que está a preparar uma gramática. Tem-me dado muito trabalho, mas está quase pronta. Julgo que há-de primar pela clareza. E com efeito, esta obra, que será publicada com o título Novissima grammatica portugueza, em 1882, é hoje ainda considerada um marco pelos especialistas, embora a sua restante obra esteja completamente esquecida.

Estas duas cartas permitiram-me conhecer um pouco melhor o Padre Gonçalves Lage, esse autor de manuais escolares do século XIX, mas sobretudo saber um pouco mais Liberal Sampaio como Numismata, que logo muito cedo, em 1880, já tinha uma colecção de moedas que valeria 100 libras. Achava que só mais velho, depois de se formar e de estabelecer como advogado em Chaves e alcançar mais desafogo económico é que se teria dedicado a colecionar moedas. Mas, pelo vistos, o seu o gosto pela história e antiguidades começou cedo e na região de Chaves era vulgar aparecerem muitos vestígios romanos. A segunda carta é o primeiro documento primário que encontro sobre a escola que Liberal Sampaio formou em Outeiro Seco, embora aqui apareça referida de uma forma indirecta. Só tenho pena de não ter acesso às cartas que o meu antepassado escreveu ao Padre Lage, onde certamente contou pormenores sobre a escola, as dificuldades e os sucessos e como funcionava. Mas os espólios documentais são por natureza truncados, só temos acesso à correspondência recebida, o resto há que deduzir.

Liberal Sampaio
Liberal Sampaio cerca de 1875



Bibliografia:

Aspectos da história monetária portuguesa da segunda metade do século xix / Jaime Reis
In
Análise Social, vol. xxix (125-126), 1994 (l.°-2.°), 33-54


Dr. Padre José Rodrigues Liberal Sampaio / Maria do Espírito Santo Ferreira Alves Montalvão Cunha
in
I Jogos florais de Montalegre. - Montalegre: Câmara Municipal de Montalegre, 1981. - 47-53 p.

O clero secular: elite socio-religiosa e lideranças eclesiásticas (séculos XIX e XX)