terça-feira, 13 de dezembro de 2016

O atlas quinhentista da biblioteca do solar dos montalvões em Outeiro Seco, Chaves

Frontispício de Theatrum orbis terrarum. - Antverpiae : apud C. Plantinum, 1579. Biblioteca Nacional de França

Já falei aqui da biblioteca do Solar de Outeiro Seco, com os seus quase dois mil títulos, datados dos séculos XIX, XVIII, XVII e mesmo do XVI. Tal como a casa, a biblioteca já não está na posse da família e foi vendida a um alfarrabista de Lisboa e dispersa pelos quatro cantos do mundo. Dela, resta apenas um catálogo elaborado pelos meus avós paternos, Maria do Espírito Santo Montalvão da Cunha e Silvino da Cunha.

 
Imagem da biblioteca do Solar dos Montalvões, Outeiro Seco, Chaves

Sabia através das histórias do meu pai e da minha avó que um dos tesouros dessa biblioteca era um atlas quinhentista e conhecia até algumas imagens desse livro, através de um filme feito pelo meu pai do interior da casa, em meados dos anos 60. No entanto, no catálogo que os meus avós fizeram dessa biblioteca, a informação sobre o atlas era muito escassa. Limitaram-se a indicar, Atlas para o título e apontaram o local de edição, Antuérpia e o ano de publicação, 1584. No fundo, não sabíamos mais nada da obra

Catálogo da biblioteca do Solar dos Montalvões. O Atlas é descrito de forma muito incompleta 

Como já fui referindo aqui e ali nos textos do blog sou bibliotecário e ao longo da vida já cataloguei muito livro antigo, isto é, edições impressas entre 1500 e 1800. Mas, nesta profissão, muitas vezes limitamo-nos a identificar os elementos que descrevem um livro, autor, título, publicação, descrição física e assuntos, mas não estudamos as obras. Esse trabalho é deixado aos investigadores. Mas recentemente, houve umas quantas edições antigas da biblioteca que saíram para uma exposição no Museu Nacional de Arte Antiga e tive necessidade de ler um pouco mais sobre a história de cada uma delas. Uma das obras era precisamente um atlas quinhentista, o célebre Theatrum orbis terrarum de Abrahamus Ortelius (1527-1598), publicada em Antuérpia em 1579. Esta obra de Ortelius é o primeiro atlas da história. Até 1570, data da sua edição, imprimiam-se cartas geográficas soltas, normalmente em forma de rolo e de difícil consulta. Ortelius teve então a ideia de reunir num único livro, num formato facilmente manuseável todas as cartas geográficas existentes, ordenadas por continente. Por essas razões o atlas de Ortelius conheceu desde logo um grande sucesso e entre 1570 e 1612 teve 31 edições.
Uma imagem da carta de Portugal e Espanha do Theatrum orbis terrarum, edição de 1579 da  Biblioteca Nacional de França

Acrescente-se que o facto do primeiro atlas moderno ter sido publicado em Antuérpia e não em Paris, ou Londres tem a ver com o intenso comércio marítimo internacional que passava pela aquela cidade e da necessidade que os riquíssimos mercadores flamengos experimentavam de estarem informados sobre as 4 partes do mundo.

Um pormenor da carta de Portugal e Espanha do Theatrum orbis terrarum, edição de 1579 da  Biblioteca Nacional de França


Enquanto fazia este pequeno estudo sobre a obra e folheava o Theatrum orbis terrarum de Ortelius do Museu Nacional de Arte Antiga, fez-se uma luz qualquer na minha cabeça e lembrei-me que talvez o atlas que existia na biblioteca do Solar de Outeiro Seco fosse o do Ortelius. Era muito provável, pois na centúria de quinhentos não existiriam muito mais atlas além do Theatrum orbis terrarum.
 
 
Um pormenor do atlas que existiu no Solar de Outeiro Seco, extraída de um filme que o meu pai fez nos anos 60. Por aqui, percebe-se desde logo que este atlas é o Theatrum orbis terrarum de Abrahamus Ortelius.
 
Vi novamente o filme que o meu pai fez, revi várias vezes a mesma cena, comparei as plantas filmadas com as da edição do Museu Nacional de Arte Antiga e tudo coincidia. O atlas que existiu na biblioteca do Solar de Outeiro Seco era de facto o célebre Theatrum orbis terrarum, que em português quer dizer Teatro do Globo Terrestre.
 
O colofon do atlas que existiu na biblioteca do Solar de Outeiro Seco. O atlas de desta biblioteca foi impresso em Antuérpia, na oficina de Christophe Plantin em 1584. Imagem extraída do filme feito pelo meu pai em meados dos anos 60
 
Como o meu pai sempre foi um homem de minúcias fez o favor de filmar o colofon, palavrão que designa o que hoje chamaríamos a ficha técnica do livro e que costuma aparecer na última página do livro e atráves dessas imagens consegui identificar com toda a segurança os dados da edição da obra. O atlas  que esteve em Outeiro Seco foi impresso em Antuérpia, na oficina de Christophe Plantin em 1584. A Biblioteca Nacional de Portugal guarda uma edição exactamente igual, com a cota C.A. 148 V, que está assim catalogada:

Theatrum orbis terrarum [ Material cartográfico] / Abrahamus Ortelius Antuerpianus. Antuerpiae: Christophorum Plantinum,1584.
O colofon do Theatrum orbis terrarum, edição de 1579. Biblioteca Nacional de França

Fiquei muito contente com esta minha pequena descoberta. Mas mais importante do que este sentimento de vaidade com a minha esperteza foi a percepção que alguém numa determinada época, que eu desconheço, talvez pelo meu trisavô, Liberal Sampaio durante o final do século XIX e inícios do XX, ou mais provavelmente, por um grupo de antepassados meus, que ao longo de dois ou três séculos, formaram numa casa no extremo Norte de Portugal, uma biblioteca que reunia obras fundamentais da cultura europeia.
 
Uma imagem do atlas que existiu na biblioteca do Solar dos Montalvões extraída de um filme feito pelo meu pai em meados dos anos 60
  
Uma imagem da carta de Portugal do Teatrum orbis terrarum, edição de1579. Biblioteca Nacional de França
 

10 comentários:

  1. Luís
    Esta de parabéns por mais uma magnífica investigação.
    Foi pena que a biblioteca do Solar de Outeiro Seco se tivesse dispersado. Os responsáveis das câmaras municipais ou das bibliotecas só demonstram a sua completa ignorância. Para eles, porque dão votos, só interessam as rotundas, campos de jogos (onde não há jovens) ou centros culturais, quando as populações estão envelhecidas e não entendem a sua utilidade.
    Um abraço
    If

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    1. Ivete

      A família também teve alguma responsabilidade na dispersão desta biblioteca. Na altura, estavam com pressa para vender a casa e queriam tirar todo o recheio e o alfarrabista quase que lhes fez um favor em ir de Lisboa a Chaves com uma camioneta para lhes levar a aquela livralhada dali para fora.

      Na época, também não existiam boas bibliotecas públicas nas cidades dos interior, que tivesse mostrado em recolher esta antiga livraria, cujo estudo permitiria reconstituir os interesses culturais de uma família fidalga transmontana.

      Um abraço

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  2. Não há nada que não descubras. Parabéns!
    Já tinha visto esse filme que o teu pai tinha feito, mas não tinha reparado no Atlas, apesar de me teres chamado à atenção.

    Mas o desaparecimento dessa biblioteca faz dó, e é quase um crime, e não é só pelas obras que a deveria ter constituído, que hoje seria um prazer poder consultar, para ser mais fácil reconstituir o gosto da família ao longo dos tempos, mas também, e sobretudo, pela documentação que deveria ter contido.
    Na minha opinião, este foi o facto mais gravoso, o desaparecimento do acervo documental que deveria ter documentado a história da família ao longo dos séculos.
    Se pudesses ter tido acesso a estes documentos quão mais fácil te seria sido estudar a história dessa família.
    Assim, continuas a recolher resquícios aqui e ali, memórias e pequenas fontes escritas que, apesar de importantes, nunca serão o acervo principal para se levar a cabo uma boa e completa pesquisa.
    Tudo foi espalhado aos quatro ventos e absolutamente nada restou.
    Os livros seriam fantásticos, mas esta documentação familiar sê-lo-ia ainda mais.
    Manel

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    1. Manel

      Com o trabalho que tenho, onde consulto diariamente os catálogos de três ou quatro bibliotecas nacionais europeias e ainda os catálogos de bibliotecas de grandes museus americanos, identifico facilmente livros ou parte de livros, como por exemplo as estampas soltas. Aqui houve um fenómeno também de associação de imagens, que se deu na minha cabeça.

      Mas, tens razão. Embora não constassem do catálogo, que os meus avós compilaram, segundo o meu pai na biblioteca existiram também documentos de arquivo na biblioteca, e que foram vendidos com os livros ao alfarrabista. Podemos supor que desse arquivo constassem cópias de escrituras, de contratos, testamentos, cartas de armas, mercês e ainda muita correspondência particular. Enfim, quem sabe.

      Eu pela minha parte e com o pouco tempo que tenho tento a partir dos fragmentos que restam, reconstituir aos poucos alguns aspectos da vivência de uma família fidalga no interior da biblioteca. Mas interrogo-me sobre quem teria comprado este atlas, que é uma obra fundamental da cultura europeia. Alguém o comprou na época da sua publicação ou foi adquirido no século XIX quando se desbarataram as antigas livrarias monásticas?

      Suposições e mais suposições.

      Abraço

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    1. Jorge Santori

      Obrigado. Estas edições antigas são autênticas maravilhas. Ao longo da minha vida já trabalhei várias vezes com livro antigo e digo-lhe sem sombra de dúvida, que são os trabalhos mais interessantes que já fiz.

      Um abraço

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  4. Muito interessante, Luís! Adorei ler toda a informação e saber que levou a bom porto mais uma das suas investigações! É uma obra realmente valiosa e com belíssimas ilustrações, talvez a jóia da coroa da antiga biblioteca de Outeiro Seco.
    Gosto de o ver continuar aqui com o entusiasmo, qualidade e regularidade de sempre.
    Beijos

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    1. Maria Andrade

      Escrever regularmente aqui é um exercício de espírito, que distrai e me permite fugir às rotinas do quotidiano, que como imagina, muitas vezes adormecem ou matam a nossa criatividade.

      Relativamente à biblioteca que existiu em Outeiro Seco, o que faço aqui são apanhar migalhas de um todo, que se perdeu irremediavelmente, Mas a história é isso mesmo, reconstituir através de fragmentos um passado, que é necessário para fundamentarmos a nossa existência.

      Tenho muita pena é que a Maria Andrade tenha interrompido o seu blog. Ainda há pouco falei ao telefone com a Ivete, que lamentou muito que a Maria Andrade tivesse deixado de escrever no blog.

      Bjos e bom Natal

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  5. Aproveito para corroborar o sentir da Ivete e do Luís quanto ao ter deixado o seu blog, Maria Andrade.
    Tanta gente que inunda a net de blogues cheios de disparates, que, acredito, o farão até que não exista pedra sobre pedra de bom senso na terra, e logo o seu, que revela uma qualidade e um bom gosto fantásticos, desaparece.
    Apesar do tempo que já passou, continuo a sentir imensa pena, mas, não obstante, compreendo as suas razões.
    Não quero deixar de lhe deixar aqui os votos de umas festas tranquilas e bem aventuradas na companhia dos seus.
    Manel

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    1. Caros Luís e Manel,
      Os meus 5 anos de blogue foram muito intensos e estimulantes, também pelos conhecimentos e amizades que fui fazendo.
      Houve um virar de página, a menor disponibilidade afetou a motivação e o entusiasmo foi esmorecendo. Mas continuo a fazer as minhas visitas aos blogues amigos, a este sobretudo, e a apreciar o que por aqui vou encontrando...
      Retribuo ao Manel os votos de boas festas e torno-os extensivos ao Luís.
      E que tenham um ótimo 2017!
      Abraços

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