terça-feira, 22 de setembro de 2020

A varanda do adeus

Tenho muitas fotografias da minha avó materna, tiradas em vários momentos da sua vida, na infância e na idade adulta, mas esta apresenta-a mais ou menos com a idade com que ainda a conheci, com cerca 70 e pouco anos. Morreu em 1969 e era eu miúdo, teria uns seis anos. Aliás, nem sei se me recordo ainda desta avô, ou se a memória que dela tenho foi construída a partir desta fotografia, que se encontra na casa de Vinhais e que me habituei a ver nos quarto dos meus pais desde sempre. A nossa memória de acontecimentos da infância é muitas vezes enganadora e confundimos filmes e fotografias, ou relatos que ouvimos repetidas vezes acerca desta ou daquela pessoa com as nossas próprias recordações. Em todo o caso, este plano, este cenário, de alguém debruçado na balaustrada da varanda sempre foi muito usado nas fotografias da família. Creio que há fotografias de quase todos os membros da família, de quatro gerações seguidas, debruçados nesta balaustrada e tiradas por alguém, que está cá em baixo. Em todas as grandes casas de família há sempre uns cenários preferidos para as fotografias e encontramos instantâneos tirados no mesmo sítio ao longo de 40 ou 70 anos. 

A localização em que a minha avó Adelaide (1894-1969) se encontrava nesta fotografia era também um sítio preferido pela família para saudar alguém, que chegava ou alguém que partia. Quando chegávamos de Lisboa, depois de uma viagem indeterminável de 550 km por estradas nacionais, cheias de curvas e buracos, havia sempre alguém que assomava à varanda para nos receber e saudar. Da mesma forma, quando terminávamos as férias e partíamos de Vinhais, havia também gente naquela varanda para se despedir. Creio que ali vi a avó Adelaide, provavelmente pela última vez na minha vida, a tia Maria Adelaide, a tia Chica e a minha própria mãe na varanda a dizerem-nos adeus. Enquanto tinham saúde, desciam cá em baixo para de despedirem, depois quando envelheciam e lhes custava a andar, ficam lá em cima na varanda a fazerem as suas despedidas.

Nesta imagem, os olhos da minha avó parecem estar prestes a encherem-se de lágrimas, o que reforça a mais a sensação de que a fotografia foi feita numa dessas emotivas despedidas de filhos e netos, que partiam para Lisboa, para o Porto, Luanda ou até para o Rio de Janeiro. Na verdade, talvez não seja a partida de mais uma filha ou filho a razão do seu ar triste, pois a minha avô, tinha o saco lacrimal roto. Recordo-me de uma vez a minha tia Maria Adelaide me ter mostrado o lencinho todo amarrotado, que a sua mãe usou ainda para enxugar as lágrimas, umas horas antes da sua morte súbita. Estava guardado como uma pequena relíquia, numa caixinha da cómoda do quarto grande. A tia Maria Adelaide nunca o lavou, pois queria guardar as últimas lágrimas da mamã. Recentemente, já passados muitos anos, mas muitos anos mesmo, lembrei-me de procurar esse pequeno lenço com as últimas lágrimas da minha avó na cómoda do quarto, mas já não o encontrei. Creio que a Tia Chica ou a minha mãe, que eram menos sentimentais e mais práticas, mandaram lavar o pequeno lenço e arrumaram-no numa gaveta qualquer.

Este Verão quando regressei a Vinhais, resolvi digitalizar esta fotografia e tê-la comigo, pois é uma imagem muito emotiva, que simboliza esse tempo em que existia sempre alguém a saudar-nos ou despedir-se de nós na varanda da casa de Vinhais. Hoje a casa está vazia durante o ano inteiro e só a abrimos nas férias durante uns breves quinze dias. No momento da partida, quando olhamos lá para cima, para a varanda, não há ninguém a a dizer-nos adeus. Para trás deixamos o silêncio e as ausências de uma grande casa familiar nos seus últimos anos de vida.

11 comentários:

  1. luis
    é sempre triste a gente recordar alguem que nos foi querido e saber que não os voltamos a ver...nunca mais
    aconteceu comigo e com os meus irmãos
    Ao longo do tempo vamos saindo para fazer uma compra,dizemos até logo e...num estante perdemos alguém precioso. Num momento tudo nos é arrebatado sem termos tempo de nada
    Eu perdi 7 irmãos e uma menina com 15 anos
    A vida nunca mais é a mesma
    E essa foto da sua avó,com o olhar triste
    comoveu-me
    Eu nunca mais sorri desde o falecimento da minha menina
    A sua avó despediu-se com o olhar ternurento
    OLHAR MUITO TRISTE
    Nunca sabemos que aquele momento pode ser o ultimo momento que vemos aquele ser querido
    cumprimentos

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    1. Caro Anónimo(a)

      Como não sou crente, a minha forma de manter viva a memória dos que já partiram é através destas pequenas evocações. A memória dos que já partiram associam-se muitas vezes a casas, onde viveram várias gerações e cada divisão, um quarto, uma sala, uma varanda ou uma cozinha, recorda-nos aquela tia ou os nossos pais ou um momento do passado. Talvez a angustia maior que essas casas nos provocam seja precisamente as ausências de todos esses familiares que já morreram e o silêncio que se abate sobre as casas.

      Cumprimentos

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  2. Dou conta que a tónica hoje é mais introspetiva e de auto análise, pois prende-se com o adeus e com a nostalgia que as pessoas nos deixam, mas também com a morte e a despedida, que, igualmente, fazem parte da vida.

    Também me é frequente pensar que, ao olhar para um amigo ou familiar, ou a despedir-me de alguém, possivelmente, nunca mais verei essa pessoa.
    É algo final que nos escapa, e que tendemos a passar para segundo plano, ou mesmo apagar da nossa memória, porque nos é desagradável a ideia.

    Quando penso no meu passado dou conta que foram muitas as vezes que tal me sucedeu: olhar para alguém, pensar que, não tarda nada, estarei de novo com essa pessoa e ... nunca mais sucede ... pura e simplesmente as pessoas desvanecem-se na vida, perdemos-lhes o rasto, preocupados que andamos no viver o nosso dia-a-dia.
    E o mais interessante é que temos sempre a vontade de ver essas pessoas, fazemos planos para estar com elas amanhã, no próximo mês, no próximo ano, recordamo-las amiúde, com mais ou menos saudade e ... acabam por se desvanecer no futuro.
    Um post nostálgico, sei, mas importante para analisarmos as nossas relações e a sua importância na nossa vida
    Manel

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    1. Como referi na resposta anterior, estas pequenas evocações do passado feitas a partir de fotografias ou objectos são a minha forma de prestar o culto aos mortos, já que não o posso fazer através da religião, pois falta-me a fé.

      Creio que tenho uma necessidade de manter a memória de acontecimentos do passado ou das pessoas que já partiram, numa luta contra o esquecimento. Enfim, este sentimento é uma constante da história humana.

      Esta varanda do adeus é também sobre o sentimento, que experimento todos os anos, no final das férias em Vinhais, quando fecho a casa e olho para aquela varanda vazia e penso sempre, que talvez aquela seja a última vez que vejo a casa, pois um dia muito próximo será vendida ou cairá em ruínas. No fundo, talvez esteja-me a habituar a dizer um adeus final à casa.

      Um abraço

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  3. Ah! O tempo, esse amigo do esquecimento. Nada escapa de sua voracidade, nem a morada dos homens. Aos poucos vão-se embora os risos, silenciam-se as vozes e secam-se as lágrimas. Os passos, antes céleres aos poucos se tornam arrastados, e por fim, vão-se para nunca mais. Um dia as janelas cerram-se e o pó lentamente se acumula como um véu. Móveis e objetos se espalham alhures e nas salas e quartos, agora vazios, o tempo e o esquecimento fazem seu bailado ao som do silêncio. Sim! As pessoas são a alma das casas, quando elas partem, de certa maneira as casas morrem também.
    Abraços d´além mar
    Edwin J.P. Fickel

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    1. Caro Edwin

      Muito obrigado pelas suas palavras muito bonitas e poéticas.

      O assunto da aparente alma das casas sempre me interessou. Talvez por ter conhecido casas onde viveram gerações e gerações de uma forma continuada ou talvez porque seja um sentimental, um romântico.

      Do lado a família Montalvão, existia uma grande casa fidalga, que foi vendida nos anos 80. Depois disso, o meu pai compilou tudo o que sabia daquela casa, num pequeno livro impresso no computador, onde se discriminava a função de cada uma das divisões, o que nelas existia e todo um sem número de histórias. O meu pai teve necessidade de conservar a memória daquela casa, como se isso se lhe permite regressar lá todas as noites, como que em sonhos. "Last night I dreamt I went to Manderley again", como escreveu Daphne du Maurier no seu admirável romance "Rebeca". Creio que assumi continuar esse trabalho do meu pai, na luta contra a maldição do esquecimento. Terei talvez o gosto pelas causas perdidas

      Um abraço de Lisboa, a velha capital

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  4. Que bonito, Luís. Boas recordações, ainda bem quem as têm.
    Feliz volta ao batente do blog.
    Um abraço.

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    1. Caro Jorge

      Talvez este texto pareça que sou demasiado saudosista e sentimental. Mas, guardo tão boas memórias das férias, que passava nesta casa do Norte de Portugal, que é impossível não cair num tom saudosista. Para nós os miúdos, criados num apartamento em Lisboa, a liberdade, que tínhamos naquela casa e na grande propriedade que a rodeava era uma coisa que hoje nem consigo sescrever e depois encontrávamos os primos do Porto e formávamos um grupo de cinco garotos, que vivíamos aquilo, que nos pareciam verdadeiras aventuras. Depois a natureza nesta terra portuguesa é também qualquer coisa de impressionante com as suas grandes montanhas, cobertas de carvalhos ou castanheiros. Para além disso é uma casa linda, muito bem construída e custa-me ver o abandono em que se encontra.

      Um grande abraço

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  5. Bonito texto Luís!
    Engraçado que ainda outro dia falava desse tema com um amigo: as lembranças que certas divisões ou locais nos deixam dos ente queridos que por lá andaram.
    "Oh as casas as casas as casas

    mudas testemunhas da vida

    elas morrem não só ao ser demolidas

    Elas morrem com a morte das pessoas" Ruy Belo

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    1. Caro JSantos

      Gostei muito do seu comentário e que oportuno é o texto de Ruy Belo. Os poetas conseguem sempre resumir os sentimentos complicados.

      Um abraço

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    2. Eu sou um nostálgico, inclusivamente das eras que não vivi e das pessoas que não conheci.
      Este excerto do poema, quando o li a primeira vez, tocou-me especialmente...
      A casa da minha bisavó nunca mais foi a mesma sem a imagem dela à janela, depois com a morte dos meus tios avós, tornou-se uma casa vazia, triste, sem vida...
      Secalhar é por isso que não consigo perceber que se abandonem as casas com todas as recordações, com toda uma vida lá dentro!
      Um abraço.
      João

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