sábado, 18 de junho de 2022

Os sermões do Padre Liberal Sampaio

José Rodrigues Liberal Sampaio

Na família era conhecida a actividade de pregador do Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, meu trisavô. Sabíamos que foi particularmente brilhante, pois em 1873 foi nomeado por alvará de D. Luís pregador da sua Capela Real e a rainha D. Maria Pia ofereceu-lhe um anel com uma pedra grande de cor azulada como testemunho da sua consideração. Também tínhamos conhecimento que era chamado a pregar em muitas terras diferentes e que publicou mesmo um dos seus sermões, o Sermão da Imaculada Conceição. Coimbra: Tip. Reis Leitão, 1887.

Mais recentemente li a transcrição do artigo de um jornal da época, O Norte, 1 de Novembro de 1895 (*1), dando notícia de um comício do partido regenerador em Chaves, em que o meu trisavô foi um dos oradores e cuja intervenção é descrita da seguinte forma:

Estoirou então na escuridão do teatro a voz dominadora do sr. Padre Liberal Sampaio.

Numa época em que os registos sonoros eram raríssimos, este pequeno apontamento dá-me pelo menos uma ideia do que seria a voz do meu antepassado e o impacto, que causaria numa audiência.

Mas, agora que herdei o espólio familiar e que comecei a tratar as cartas, começo a ter uma ideia um pouco mais precisa desta sua actividade de pregador. Todos os documentos são cartas do tempo em que o meu trisavô, esteve a estudar em direito e teologia em Coimbra (1886-1891) e mesmo assim fornecem uma visão incompleta, pois só tenho acesso ao que o meu antepassado escreveu, mas desconheço a resposta, ou vice-versa, cartas que lhe escreveram a ele e que não tenho a réplica.

Em primeiro lugar, estes sermões ou missas, que meu antepassado proferia ou celebravam eram pagos e uma fonte de rendimento importante. Durante o tempo que esteve em Coimbra, escreveu muitas vezes à minha trisavô, com a qual continuava a manter uma relação, até porque o filho de ambos estava a viver com ele, pedindo-lhe dinheiro, pois os estudos em dois cursos superiores, ocupavam-lhe muito tempo e não podia aceitar todos os convites para prédicas.

O Palácio dos Lemos, em Condeixa-a-Nova. Foto monumentos.pt

Ainda assim, Liberal Sampaio arranjava tempo para dizer missas, no Palácio dos Lemos, em Condeixa-a-Nova, do qual era presença habitual, não só como sacerdote, mas como amigo da família. Há três cartas, uma de Manuel Ramalho, de 29-01-1888, que julgo ser de um dos filhos dos condes de Condeixa (Manuel Pereira Ramos Ramalho, 03.02.1864 - 04.08.1910) outra duas sem data, a primeira de Manuel de Sousa Brandão e a última da própria condessa de Condeixa, Amélia da Madre de Deus Santiago, convidando-o para dizer missas na capela da casa, ou pedindo-lhe para indicar um padre no caso de não poder aceitar, ou ainda tratando do assunto do pagamento, isto é, a esmola, como na altura se parece denominar.

Liberal Sampaio, apesar de ser um transmontano, parece ter feito rapidamente fama como pregador na região Centro. Logo em 29 de Janeiro de 1888, António Lopes Coelho de Abreu, pároco da Igreja de Nª Srª do Ó de Barcouço, Mealhada, convida-o para pregar o sermão, numa das festividades da terra, oferecendo a sua humilde choupana para o alojar. A esmola a pagar mereceu umas quantas linhas nesta carta.

Carta de José Henriques Firmino

Em 23-04-1891, José Henriques Firmino, um comerciante de Ança, convida-o para dizer missa na ermida Nossa Senhora do Despacho, numa carta deliciosa, que não resisto aqui a transcrever.

Temos no dia próximo 7 de Maio uma missa em uma ermida próxima à estrada que conduz à Figueira da Foz e perto de São Martinho das Árvores. Lembrei ao Director da dita ermida o nome de V. Exa. para lá ir dizer a missa e não lhe sendo penoso dizer meia dúzia de palavras relativas à padroeira Senhora do Bom Despacho. A esmola tem sido 5.000 r. . Vai na na diligência da Figueira, pela manhã, até S. Martinho, onde deve estar cavalgadura para o conduzir ao local e na volta torna a ser conduzido pelo mesmo local até ao mesmo sítio da diligência. A esmola é pequena, mas a pândega é superior a tudo. Jantar ao ar livre, sentando em um...relveiro aspirando sempre o aroma das inocentes florinhas.

Há arraial, onde se goza um bocado da tarde.

Espero pois na volta do correio a sua resposta afirmativa ou negativa para governo do Director.

Mas a maior parte dos convites são feitos da província de Trás-os-Montes, de onde era oriundo o meu trisavô. De Chaves, em 17.01.1890, Manuel Faria, da casa Viúva Faria e filho, na qualidade de encarregado faz festividades da Semana Santa, convidou liberal Sampaio, para proferir três sermões insistindo para que pelo menos aceite dois dos cinco, soledade e enterro.



Também de Chaves, o seu amigo, o comerciante António Gonçalves Roma, o pai do que viria a ser o célebre Coronel Bento Roma, um herói de guerra português, escreveu duas cartas ao meu trisavô, uma em 30 de junho de 1889 a propósito do sermão de São Tiago e novamente em 19 de Junho de 1891, outra vez, para convida-lo a proferir o sermão de São Tiago no dia 26 de Julho e o de São Caetano, depois do dia 7 de Agosto.

António Gonçalves Roma. Fotografia do álbum da família

Mas os pedidos para fazer prédicas chegam ainda de mais longe, como das terras frias e montanhosas de Vinhais. Em 7 de Abril de 1889, Manuel de Jesus Pires e Silva, escreveu-lhe daquela vila dando conta das preocupações, que lhe causavam a construção do edifício dos Paços do Concelho e que o esperava ver novamente pregar em Vinhais. Também Francisco António Teixeira, de Lebucão, a 11 de maio de 1891, convidou-o para dizer um sermão em Rebordelo, na festa do Santíssimo Coração de Jesus, no dia 5 de Junho, daquele ano.

Ao fazer esta enumeração de convites, pergunto-me a mim próprio como Liberal Sampaio arranjava tempo para estas deslocações e ainda para mais frequentando dois cursos superiores em Coimbra. As comunicações neste Portugal das décadas de 80 e 90 do século XIX eram ainda incipientes. Para ir a Chaves, o meu antepassado só tinha comboio até à Régua, o resto do caminho, seria feito por diligência e para as terras frias de Vinhais, a linha férrea ia até Mirandela e o resto do caminho seria no dorso de uma cavalgadura por montes e vales. Recordo-me eu que em meados dos anos 70 a estrada de Vinhais para Mirandela, através da Boiça, não estava ainda pavimentada.

Talvez por essa razão, em 11 de Novembro de 1888, o meu trisavô recebeu uma carta muito seca da Comissão Administrativa da Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Vinhais, queixando-se de que o meu antepassado, ainda não tinha respondido ao convite para pregar um sermão na festa da Imaculada Conceição, a 8 de Dezembro. A missiva está assinada por Adílio Augusto da Silva Buiça, Abade de Vinhais e o pai de Manuel Buiça (1875-1908), um dos homens que matou o Rei D. Carlos e o Príncipe D. Luís em 1908!

O regicídio em 1908


Sabe-se que este Manuel Buiça era filho de Adílio Augusto da Silva Buiça através do Abade de Baçal, bem como através do testamento escrito, pelo próprio, poucas horas antes do atentado, além que na época, toda a gente em Vinhais saberia de quem era filho.

Este conjunto de cartas do espólio familiar permitiu-me conhecer melhor a vida de Liberal Sampaio, a ampla rede de conhecimentos, que tinha pelo País, mas também uma época mais devota, em que uma das atracções de uma festa religiosa, era o sermão de um pregador célebre, um período em que se viajava de diligência ou no dorso de uma cavalgadura e em que as famílias fidalgas ouviam missa na capela das suas casas. 

António Gonçalves Roma e a família. O bebé será o futuro Coronel Bento Roma. Fotografia do álbum da família

Também é interessante encontrar aqui cartas dos pais de personagens históricas em Portugal, como o do Coronel Bento Roma ou do regicida Manuel Buiça. Liberal Sampaio certamente, conheceu o pequeno Bento Roma e terá talvez afagado os cabelos do ainda menino Manuel Buiça, depois de lhe dar a sua bênção.

Manuel Buiça. Foto wikipédia


(*1) História moderna e contemporânea da Vila de Chaves através das actas e jornais da época / Júlio Montalvão Machado. – Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae, 2012, p.151-52

terça-feira, 14 de junho de 2022

Um prato de Talavera-Puente


O Manel comprou há já alguns anos este prato de faiança. É uma peça obviamente antiga, que já se partiu várias vezes e foi restaurada. O formato e decoração são estranhos à faiança portuguesa. Normalmente, na nossa faiança a aba e o covo são muito bem definidos e a decoração, também não tem nada a ver com o cá se produziu. Por essas razões, o Manel e eu achámos que deveria ser uma peça espanhola, até porque foi comprada em Estremoz, onde é relativamente vulgar encontrar louça de Talavera e outros fabricos da sempre presente vizinha Espanha.




Sempre estive mais ou menos convencido de que seria uma peça dos finais do século XIX ou inícios do XX, até que decidi fazer uma pesquisa mais aprofunda e bati os catálogos sobre faiança espanhola na biblioteca de onde trabalho e encontrei uns quantos pratos da mesma família, reproduzidos nas seguintes obras e datados do século XVII.


Talaveras en la coleccion Carranza / [Estudo introd. e catálogo] Alfonso Pleguezuelo. - Talavera de la Reina : Ayuntamiento, 1994.

Lozas y azulejos de la colección Carranza / Alfonso Pleguezuelo. - [Toledo] : Junta de Comunidades de Castilla-La Mancha, 2002

Imagem reproduzida de Talaveras en la coleccion Carranza


Este prato parece ser saído das oficinas de Talavera ou Puente del Arzobispo. Para grande parte da produção entre os séculos XVI e XVIII, o autor dos textos sobre estes centros cerâmicos, Alfonso Pleguezuelo não distingue ente o que é manufacturado em Talavera e Puente del Arzobispo, usando a designação mais abrangente Talavera-Puente. As terras são próximas umas das outras e os materiais e os estilos eram muito próximos. Por outro lado, em Talavera ou Puente del Arzobispo houve muitas oficinas a fabricar louça fina, isto é faiança, bem como olaria e ainda azulejos. E portanto, quando hoje se refere que uma travessa ou um canudo é de Talavera-Puente, estamos a falar de um centro de produção regional e não de uma fábrica ou oficina em particular.

Segundo as obras atrás referidas, o prato do meu amigo Manel será da segunda metade do século XVII e pertence à série tricolor, da subsérie Palmetas ou encomienda ou estrellas de plumas. Com efeito, do motivo central do prato, partem palmetas e plumas e este padrão inspirou-se num tecido em voga na época. O motivo que rodeia a extremidade do prato é a chamada cenefa oriental, composto com ss, estilizados inspirados na porcelana chinesa. A faiança de Talavera-Puente da segunda metade do século XVII apresenta uma pasta amarelada, pois neste tempo Portugal tinha restaurado a sua independência e estava em guerra com Espanha e os artífices espanhóis viram-se privados do chumbo e do estanho, vindos do nosso País e essenciais no fabrico de uma faiança mais branca e fina.



Apesar destas minhas leituras me indicarem que o prato do Manel foi produzido em Talavera-Puente no século XVII, não fiquei muito convencido. Louça do século XVII não aparece nas feiras de velharias. Eu pelo menos nunca vi um prato seiscentista de aranhões português no chão de uma feira e bem que gostava de ter um. Confesso que receava que este prato fosse uma coisa dos finais do século XIX ou inícios do XX, pois nesse período houve um renascimento da cerâmica de Talavera, inspirado nos motivos do passado, tal como aconteceu aqui em Portugal, em que várias fábricas começaram a produzir louça historicista, ao gosto do século XVII ou do XVIII.



Mas não encontrei referência a que o motivo estrellas de plumas tenha sido retomado nos finais do XIX ou inícios do XX. Contudo, no texto de uma revista, Boletin de la sociedad española Cerámica y Vidrio (1) e numa tese de doutoramento Técnica y estética de la cerámica de Talavera de la Reina: Recursos iconográfico de María del Carmen López Fernández (2), percebi que o uso da decoração estrellas de plumas se manteve pelo século XVIII fora.

Em suma, este prato de poderá ter sido fabricado em Talavera ou Puente del Arzobispo entre os séculos XVII e XVIII, embora quase por uma questão de bom senso, inclino-me mais para último século, pois como referi anteriormente, peças seiscentistas não aparecem nos mercados de velharias.





(1)“Los fondos del museo de cerámica Ruiz de Luna: una aportación a la historia de las lozas de Talavera y Puente /R. García Serrano, D. Portela Hernando e J. l. Reneo Guerrers no Boletin de la sociedad española Cerámica y Vidrio, Vol. 38 Núm. 4 Julio-Agosto 1999, onde consta um prato desta família, mas já datado do século XVIII.

(2)“Técnica y estética de la cerámica de Talavera de la Reina: Recursos iconográfico” de María del Carmen López Fernández. Madrid, 2015