O meu amigo Manel comprou há uns tempos esta imagem em barro de uma Madona. Com a escultura veio também um plinto em madeira, que é quase um pequeno oratório, forrado a damasco vermelho. No início, achei que fosse uma peça qualquer francesa no chamado estilo Saint-Sulpiciano, esse termo pejorativo, criado pelos franceses, para designar a arte religiosa produzida nos finais do século XIX pelas oficinas de santeiros e impressores de estampas piedosas, que existiam nas ruas em volta da Igreja de Saint-Sulpice, em Paris.
A madona com o seu pequeno oratório revestido de damasco vermelho |
Porém, à medida, que o tempo passava fui olhando para ela com outra atenção, sobretudo nalgumas horas do dia, em que a luz lhe acentuava as formas e encontrei-lhe uma simplicidade muito pura e tocante e recordei-me que no Museu Nacional de Arte Antiga já tinha visto umas esculturas semelhantes, do século XVI, figuras de calvário, provenientes do mundo germânico e executadas e madeira.
Santa Mulher (de deposição no túmulo). Áustria, séc. XVI. Colecção do Museu Nacional de Arte Antiga, inv. 509 esc |
Já depois dessa fase, em que começando a apreciar esta imagem em barro, passou-me um livro pelas mãos, The limewood sculptors of Renaissance Germany de Michael Baxandall, que me encantou particularmente e ao folheá-lo, descobri a escultura original, que serviu de modelo à peça do meu amigo Manel. Foi executada em madeira de tília, entre 1510 e 1520, e é uma peça emblemática da arte alemã, vulgarmente conhecida pela Madona de Nuremberga.
O original da Madona de Nuremberga. Germanisches Nationalmuseum |
Esta escultura fazia parte de um calvário e estava esquecida numa igreja de dominicanos na cidade de Nuremberga. Foi redescoberta em 1807 após a demolição da Igreja e até à sua entrada no Germanisches Nationalmuseum, em 1880, serviu como modelo para os estudantes de uma escola de artes. Logo nesse período, executaram-se várias cópias em gesso para que vários grupos de alunos a pudessem desenhar e estudar. Este interesse por esta Madona, enquadrava-se no espírito romântico da época, que valorizava a Idade Média, período onde se tinham formado as modernas nações europeias e a Alemanha, fragmentada em vários principados e reinos, aspirava à unificação, a constituir-se como nação unificada num único estado. Por outro lado, esta Nossa Senhora foi esculpida em Nuremberga, entre 1510 e 1520, num período em Albrecht Dürer estava activo. De modo, a escultura passou a ser associada a esse período de esplendor da cidade, que viu nascer e morrer esse mestre alemão.
Pelas razões acima enunciadas e porque a escultura era realmente bela, a Madona de Nuremberga tornou-se uma obra icónica da arte alemã e foi sendo reproduzida em gravura, em alabastro, madeira, metal, pedra ou barro, em diferentes dimensões, tornando-se um objecto decorativo presente na sala de uma qualquer família alemã e chegou mesmo a figurar em selos de correio.
A imagem não apresenta marca de fabricante |
Esta escultura em barro do Manel é uma das muitíssimas cópias dessa Virgem de Nuremberga, que se fizeram ao longo de mais de 150 anos e é difícil precisar em que período exactamente. O plinto onde se encontra parece mais uma coisa dos finais do XIX ou inícios do XX. Embora não ostente qualquer marca de fabrico, posso também presumir que esta cópia da Madona de Nuremberga teve origem na Alemanha, já que a popularidade desta imagem parece ser um fenómeno muito alemão. Em todo o caso, mesmo sendo uma cópia, esta figura em cerâmica traz-nos um pouco da beleza e do vigor da escultura tardo-gótica do mundo germânico
The limewood sculptors of Renaissance Germany / Michael Baxandall. - New Haven ; London : Yale University, 1980,
Obras em reserva : o museu que não se vê / coord. científica António Flipe Pimentel, Anísio Franco, José Alberto Seabra Carvalho. - Lisboa : Museu Nacional de Arte Antiga, 2016
https://www.ottmar-hoerl.de/en/projects/2017/2017_Madonna.php
Caro Luis
ResponderEliminarSempre tive uma atracção por essa imagem e também estudei a sua origem e bate certo com a informação que cuidadosamente escreveu. Existe um selo de correio circulado na Alemanha com a figura. Rafael Bordalo Pinheiro modelou esta figura na base de uma eventual cópia que tinha na sua posse( Foto existente de Rafael B.Pinheiro no seu atelier tendo esta imagem numa das prateleiras). Existe um modelo na Casa dos Patudos creio em vidrado branco.
Na colecção da Fábrica Bordalo Pinheiro é referenciada como D. Genoveva ou Senhora de Nuremberga e foram produzidas poucas figuras do molde original até aos nossos dias, talvez uma dúzia. A produção inicial era em barro vermelho e mais tarde em barro branco por amor à arte do último artista modelador da fábrica.
Estranho a sua figura não ter um carimbo da base, mas caso não tenha, poder ser de produção externa à Fábrica do Bordalo. É sem dúvida uma bela figura de um estilizado profundo e de um mistério cativante
Abraço
Vitor Pires
Caro Vítor Pires
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário, que foi muito útil. Desconhecia que a popularidade desta imagem tivesse chegado a Portugal e que por cá se tivessem também produzido cópias nas Caldas da Rainha.
Nas minhas pesquisas na net, encontrei à venda várias réplicas desta madona, umas em madeira esculpida ou prensada, outras em metal, em gesso e um busto em terracota e normalmente tinham origem alemã ou austríaca.
Esta figura não está marcada e foi falta minha, não ter referido isso no texto. Vou até acrescentar uma foto da base, onde não há qualquer marca ou sinalefa.
Mais uma vez obrigado pelo seu comentário, que acrescentou informação a este post.
Um abraço
Adorei a explicação.Sempre gostei destas madonas sòzinhas,a simplicidade destas imagens fascina-me,sejam elas de qualquer matéria.Tenho uma comprada em Israel,em madeira de Oliveira.Nâo tem qualquer valor,mas é tāo perfeita.!! Parabéns! Pelo seuempenho em descobrir a origem de todas essas belas peças,que o Manuel vai descobrindo,por esse país fora .Cumprimentos
ResponderEliminarGraciete
Graciete.
EliminarEstas imagens do gótico tardio do mundo germânico são lindas.
Eu também tenho réplicas de obras antigas em casa. Há peças que não aparecem nos mercados de velharias e só os museus as têm e não há mal nenhum termos uma boa cópia em casa, para pudermos admirar todos os dias, aquilo que está guardado nos museus.
Estas pesquisas dão-me muito prazer e também tenho a vantagem de trabalhar numa biblioteca de arte.
Um grande abraço
É uma madona muito invulgar neste seu sofrimento sereno. Parabéns Luís pelo trabalho de investigação que não deve ter sido fácil. Manuela
ResponderEliminarManuela.
EliminarSempre gostei destas figuras de calvário ou da deposição no túmulo. São sempre um exercício para os artistas representarem as emoções humanas.
bjos e muito obrigado
Esta peça esteve num antiquário ao meu lado durante mais de um ano. Ninguém se interessava por ela, e eu também não. Parecia-me algo meio "lamechas", e deixava-a ficar no seu canto. Assim, a peça, que esteve na sala principal, e em lugar de destaque no antiquário, foi-se-me introduzindo a pouco e pouco no espírito.
ResponderEliminarPassado algum tempo, porque ninguém se interessava por ela, passou para uma sala adjacente, quase escondida, mas ainda se via, se uma pessoa deambulasse pelo antiquário.
Eu lá a ia "catrapiscando", mas ainda não estava convencido.
Finalmente a pobre da escultura ficou mesmo escondida, só visível para quem soubesse onde estava.
Creio que a única coisa que me agradava era a espécie de baldaquino, que realmente não o é, talvez mais um "nicho", onde ela se encontrava.
Era antigo, uma estrutura em cartão grosso revestido a damasco vermelho já antigo e desbotado; todo o conjunto assenta numa mísula em madeira torneada pintada de negro, que me parece uma coisa de finais do XIX.
Foi por esta estrutura que iniciei o meu interesse por esta escultura. Gostava cada vez mais dela, como se fora um pequeno oratório particular e intimista. E, no sítio onde finalmente encontrou lugar, no antiquário, estava iluminada de forma a que os panejamentos pareciam ter quase movimento, com profundos contrastes luz sombra, o que me encantava. Mas ainda assim, pensei que fosse demasiado cara para mim, e fui deixando-a ficar.
Mais de um ano depois de a ter visto a primeira vez fiquei rendido e acabei por a adquirir por um preço ao alcance da minha bolsa, que não é profunda nem basta.
Hoje, ao olhar para ela, faz-me lembrar as célebres esculturas em madeira de tília do artista alemão Tilman Riemenschneider, que admiro profundamente.
A Gulbenkian também possui uma bela escultura em madeira de tília, creio, e igualmente deste período.
Não sabia que aqui, em Portugal, esta escultura também tinha sido reproduzida, um agradecimento ao Vítor Pires.
Manel
Manel
EliminarA luz transforma uma escultura.Há uns dois anos vi uma exposição no Museu Nacional de Arte Antiga de um artista, Manuel Botelho, que fotografava túmulos e esculturas da renascença e medievais apenas com a luz natural. Deslocava-se pela manhã às igrejas e pedias aos padres ou cuidadores para desligarem todas as luzes e o resultado era qualquer coisa de sublime. Nas fotografias dessa exposição, "A (Im)permanência do Gesto " víamos a escultura com os mesmos olhos e a mesma luz de alguém, que viveu nos séculos XIV ou XVI.
Creio que passei a gostar desta imagem a partir do momento, em que nalgumas horas do dia ela tinha a luz certa a modelar-lhe as formas.
Um abraço
Bem bonita. Boa tarde!
ResponderEliminarMargarida.
EliminarMuito obrigado. Apesar de ser uma cópia, é uma peça muito bonita. um abraço