sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Maria Montalvão Cunha, Liberal Sampaio e o Abade de Baçal

Maria de Montalvão Cunha (1907-2000)


Maria de Montalvão Cunha não foi exactamente uma avó carinhosa, nem tão pouco uma mãe extremosa ou uma esposa afectiva. Só quando entrei na adolescência é que passei a aprecia-la e a descobrir as suas qualidades. Como já não eramos uns miúdos parvos, conversava então connosco sobre história, o passado da família, mostrava as relíquias familiares e acompanhava-nos nas visitas ao Solar de Outeiro Seco e até ao Museu Municipal de Chaves, que na altura estava fechado ao público e ela lá conseguia uma visita especial para nós. Era uma mulher que apreciava rodear-se de coisas boas e dela herdei um certo gosto quase eclesiástico pelos damascos e móveis pesados nos estilos portugueses. Intelectualmente tinha o seu valor. Foi uma colaboradora assídua na imprensa periódica de Chaves de Bragança, mas também do Comércio do Porto, um jornal muito lido no Norte, mas também com uma difusão nacional. Para uma senhora de província nos anos 30, 40 ou 50 esta actividade literária era notável. Quando recentemente andei a organizar os jornais onde escreveu, reparei que naquela época as poucas colaboradoras no Comercio do Porto escreviam sobre modas, culinária, bordados ou davam conselhos úteis sobre como tirar nódoas difíceis das camisas do marido. É certo que a minha avó estava também confinada à página feminina, mas fazia contos e crónicas. Além dela, a única execepção à essa regra que encontrei foi a Ilse Losa.

A minha avó tinha um estilo um bocadinho floreado e era superficial, mas em plena época da ditadura salazarista não se queriam ideias muito profundas, nem temas polémicos, muito menos escritos pela mão de uma senhora. Mas por vezes, no meio daqueles devaneios literários tinha momentos de verdade ou pelo menos convincentes, pois é certo que a verdade é uma coisa relativa e cada um a constrói à sua maneira.

O capote do avô, evocação de Liberal Sampaio, escrito por Maria de Montalvão Cunha e publicado no Comércio do Porto em 20-3-1947


Nestas férias, quando aproveitei para avançar mais no tratamento do espólio encontrei uma carta do abade de Baçal, dirigida aos meus avós, anexando um artigo do comércio Porto, de 20-3-1947, escrito pela minha avó, a Mimi, como nós a conhecíamos, que o tocou particularmente e é de facto um texto sensível.

É uma evocação dos seus tempos de infância, das noites do rigoroso Inverno transmontano, em frente à lareira, quando o avô, o padre José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935), sentado no escano, abrigava os seus netos debaixo do seu capote, como uma galinha aninhava os seus pintainhos. Depois refere, o tempo em que os irmãos e ela cresceram, são adultos e sentem pudor em se agarrar e acarinhar o avô, embora às vezes, como ela própria escreve, parecia-nos até que o avô, ao olhar para o seu capote vazio, ficava triste e desolado. Sublinha também a importância que o avô teve no seu crescimento cultural, com as histórias maravilhosas, que contava, das terras todas que tinha corrido, do amor pela natureza e ainda quando o ajudava a limpar a sua extensa biblioteca.

Liberal Sampaio com o filho, nora e os netos. Estes últimos tratavam o avô carinhosamente por Lili


O Abade Baçal, como ficou conhecido Francisco Manuel Alves (1865-1947), tinha conhecido muito bem Liberal Sampaio, o meu trisavô. Com efeito, aquele historiador e etnógrafo foi Abade de Mairos entre 1889 e 1896, uma aldeia nas cercanias de Chaves e nessa época os dois padres terão travado conhecimento e estabelecido uma relação intelectual. Referindo-se ao meu trisavô, o Abade de Baçal escreveu foi ele que me indicou os livros a consultar. Foi ele que me facilitou a leitura de preciosas raridades bibliográficas da sua enorme biblioteca que por serem raríssimas, senão únicas, por serem caríssimas, só acessíveis a amadores ricos, eu nunca chegaria a ler.

Por essa razão, o Abade Baçal ter-se-á encantado tanto com a evocação que a Mimi fez de Liberal Sampaio e tenha pegado na caneta para lhe escrever. Mas, não terá só sido só por esse motivo, mas também pelo talento e sensibilidade com que minha avó captou as noites geladas dos Invernos transmontanos, onde toda a família se juntava na cozinha, junto do fogo, aninhados nos escanos, protegendo os mais pequenos do frio. Para os que não são transmontanos, os escanos são uma espécie de bancos longos, com costas e com uma prancha de madeira, que se pode rebater, servindo de mesa de refeições.
Cenário do conto o Capote do avô, a cozinha do Solar de Outeiro Seco, já no tempo em que a casa tinha sido vendida à Câmara Municipal de Chaves e estava já ao abandono. Vê-se ainda um escano, embora eu tenha ideia, que houvesse dois.

Transcrevo aqui um excerto dessa carta do Abade de Baçal, como homenagem à minha avó Mimi, que embora não soubesse cozinhar, nem dar mimos aos netos, foi uma mulher com o seu valor, aliás no tempo em que viveu em Bragança, juntamente com o marido, o meu avô Silvino fizeram parte do círculo daquele historiador.

Li e reli o belo artigo do Capote do avô no Comércio do Porto.

Que grandiosidade de sentimentos, de ternura, de piedade. Quanta meiguice, devoção, saudade inculcam aqueles traços magistrais referentes à descrição do avô, metódica em tudo, de “voz compassada e terna” a contar histórias aos netos, tendentes a despertar neles o amor da beleza e do bem fazer.

Com que graça eu estava a ver os miúdos montalvãozinhos a formigar em volta do sábio e bondoso doutor José Rodrigues Liberal Sampaio, que sorridente, bonacheirão, abrigava a ninhada sobre complacente o amplo capote, como a galinha congrega os pintainhos "sub alas" na frase bíblica e complacente olhava satisfeito as cabecitas dos que assomavam à janela.

Com que arte e relevo V. Exa. Soube dispor tudo isto e despertar nos leitores de tão belo artigo, a comoção por esse espírito que a “sorrir, a fitar-nos, a dizer-nos um adeus que era uma saudade, um adeus que era um mundo de ternura, que nos deixou” e partiu para a eternidade.




Carta do Abade de Baçal



Bibliografia:

BAÇAL, Abade de / Ana Celeste Glória
In Dicionário Quem é Quem na Museologia Portuguesa. Lisboa: Instituto de História da Arte, 2019 https://research.unl.pt/ws/portalfiles/portal/29007003/30_33.pdf

Dr. Padre José Rodrigues Liberal Sampaio / Maria do Espírito Santo Ferreira Alves Montalvão Cunha
in
I Jogos florais de Montalegre. - Montalegre: Câmara Municipal de Montalegre, 1981. - 47-53 p

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