quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Registos de Santos

Santos, santas, santinhos e santalhada constituem o objecto de uma das minhas paixões mais recorrentes. Talvez a psicologia possa explicar a razão misteriosa desta minha fixação nas imagens religiosas, pois não sou sequer crente num ser supremo, quanto mais em santos e beatos, que supostamente intercedem pela humanidade junto de Deus.

Talvez por ser completamente ateu, não me impressione com as imagens dos martírios, com olhos revirados para o céu, com as expressões beatíficas e com os pobres Cristos crucificados. Neles só consigo ver o trabalho magnífico dos artistas que no passado trabalharam quase em exclusivo para os temas religiosos. Por outro lado, hoje em dia já quase que nada sabemos de religião e somos completamente ignorantes em iconografia cristã e decifrar os símbolos cristãos é uma tarefa fascinante, é um poço sem fundo de pesquisas, em que se descobrem histórias fascinantes de símbolos, que remontam aos cultos primitivos, à Mesopotâmia ou que foram pedidos emprestados à arte grega e romana.

Como não tenho posses para adquirir as boas imagens barrocas portuguesas, que alcançam preços proibitivos no mercado de velharias, tenho-me dedicado a coleccionar registos de santos do século XVIII, que são de longe os mais bonitos. Para quem não saiba, os registos de santos eram pequenas folhas de papel com a imagem de um santo gravado, que eram vendidas em santuários ou nos próprios estabelecimentos dos livreiros-impressores. Serviam também para aquela função que Martinho Lutero designou muito ironicamente por tráfico de indulgências, isto é, quem comprasse aquela estampa e rezasse umas quantas orações, obtinha uns x número de dias de indulgência. As pessoas guardavam essas pequenas folhas volantes nos livrinhos de orações e outras obras de literatura piedosa (como bibliotecário, tenho encontrado muitos no meio das páginas dos livros) ou então as senhoras e meninas educadas em casas religiosas faziam-lhes umas molduras muito bonitas, com seda, florinhas em tecido, galões e papeis coloridos e eram afixadas nos oratórios, maquinetas ou pura e simplesmente na parede.
S. Vicente Ferreira. Em baixo, há uma legenda, cujo texto se reproduz Exmo Snr Card. Patriarc. conc.de 50 dias de indulg.a a qm. rezar hu. P. N. e Ave M, diante desta Estampa

Pela minha casa há registos desses espalhados por todo lado, no quarto, na sala, na cozinha e até na casa de banho já começaram a aparecer alguns. Alguns deles herdei-os, outros comprei-os em alfarrabistas ou na feira-da-da-ladra. No geral, não são peças caras, pois as pessoas apreciam pouco o género e acham-nos macabros. Há uns tempos, o meu amigo Manel e eu comprámos na Feira-da-Ladra uma dúzia de registos do século XVIII, por um euro cada, pois a vendedora, uma rapariga ainda nova, com muito bom ar, tipo “esquerda caviar”, achava os “registinhos de santos” uma coisa absolutamente pavorosa e nem quis acreditar que se pode livrar daqueles monos.

Como já acima anteriormente, não os acho nada macabros, até pelo contrário, há neles uma doçura muito teatral. As mártires cristãs são representadas como senhoras da Corte, os santos são afáveis, os meninos Jesus rechonchudos, os Cristos e os S. Sebastiões tem corpos atléticos e tudo isto normalmente é emoldurado em ornatos barrocos e rococó, enfeitados com flores. No fundo, quando olhamos para estas figuras, parece que estão representar uma pequena peça de teatro para um auditório íntimo de cortesãos, num palácio qualquer barroco do século XVIII. Creio que denotam o tal intimismo muito característico da pintura portuguesa barroca, de que a Josefa de Óbidos é um perfeito exemplo.


Uma Santa Ursula da minha colecção

Para quem gostar destes "santinhos", recomendo

- o belíssimo site da Casa de Sarmento, http://www.csarmento.uminho.pt/ndat_261.asp

- Inventário da colecção de registos de santos / org. e pref. Ernesto Soares. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1955 (on line na Biblioteca Naccional) http://purl.pt/700/3/ba-2633-v_PDF/ba-2633-v_PDF_24-C-R0075/ba-2633-v_0000_capa1-guardas8_t24-C-R0075.pdf

9 comentários:

  1. João Paulo Levezinho29 de outubro de 2009 às 18:59

    Meu caro Luis:

    Os seus posts têm sido uma verdadeira delicia para os amantes do passado(sobretudo o artístico) como eu...tenho aprendido imenso, o que me apraz bastante,os seus textos saõ simples e elucidativos; Quando voltar à feira da ladra, já irei com mais atenção para descobrir algumas preciosidades (esquerda caviar é terrivelmente belo....gostei, o meu amigo têm um sentido de humor refinado...), até breve e continue com o blogue...

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  2. Caro João Paulo.

    Muito obrigado. Embora fique quase envergonhado com os elogios feitos, não há dúvida que me dão mais alento para ir escrevendo.

    Abraço

    Luís

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  3. Quem diria que eu, um dia, iria um dia comprar "santinhos", como eram pejorativamente denominados em minha casa?
    Mas que a beleza destes registos me apanhou (sou um bom aluno não sou?), isso é indíscutivel para quem conhecer o meu tugúrio ... hehehehe.
    Manel

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  4. Lol. É verdade. Em pouco muito tempo, descobriste a beleza dos santinhos barrocos portugueses. Quanto tempo faltará para descobrires a paixão pelos cristos?

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  5. Sui generis! Calhou dar com o seu texto, que gostei muito de ler. Adorava ver a sua cara, quando um dia der de caras com esses Santos no céu..;)assumindo que para lá vai. Lá está uma coisa que tenho dúvida, é se vai para o céu quem nele não acredita.
    Mas no céu, onde vivem os santos de todos os tempos, acredito. Mas crendo ou não, é encantador descobrir estas pagelas.

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    1. Cara Lucinda

      Muito obrigado pelo seu comentário.

      Tenho um gosto muito grande por registos de santos, especialmente os do século XVIII e que se compram a bom preço nos mercados de velharias ou nos alfarrabistas. Hoje em dia ninguém quer santos em casa. Se navegar pelo meu blog encontrará 64 publicações sobre diferentes registos de santos.

      Eu não tenho qualquer espécie de crença e por conseguinte não me faz aflição nenhuma tê-los espalhados por toda a casa, até na casa-de-banho. Gosto deles enquanto objectos artísticos e testemunhos de uma época e não me preocupa se vou para o céu ou para o purgatório. Aliás, gosto também muito das representações de alminhas do Purgatório e tenho uma ou outra em casa.

      Um abraço e obrigado

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  6. Obrigada Luís.A sua partilha é enriquecedora. Tengo algumas pagelas e ofereceram- me agora um registo a imitar um antigo. Fiquei com vontade de angariar mais. Talvez comece a procurar e aquirir. Bem haja

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