segunda-feira, 21 de março de 2011

Algumas memória da sala de jantar do Solar de Outeiro Seco a partir dos restos de um serviço de chá

No meio desta crise com que os cidadãos portugueses são injustamente castigados, talvez pareça fútil escrever sobre velharias ou evocar acontecimentos ocorridos há muito. Contudo evocar o passado ou escrever sobre património é defender valores, que os nossos dirigentes desprezam. Escrever sobre o passado ou velharias é a minha modesta forma de resistir à gestão por objectivos, à interoperacionalidade, ao estilo IKEA, ao pensamento estratégico e outras tolices que não tenho espaço nem tempo para enumerar


Por essas razões apresento os restos de um bonito serviço de chá com florinhas românticas e decorações pintadas a ouro, do século XIX, provavelmente datado entre 1852-1869, a julgar pela marca pintada a azul de mufla.


É da Vista Alegre naturalmente e pertence a um período particularmente feliz desta fábrica, caracterizado por decorações com grinaldas deliciosas e um uso contido dos dourados.



É uma herança da minha família paterna, proveniente do solar de Outeiro Seco, onde estaria certamente no móvel renascença da sala de Jantar.

Há um inventário feito pela minha avó Mimi dos bens contidos nos armários dessa sala. Mas, é uma simples enumeração, destinada a fazer as partilhas com os seus irmãos, depois da morte do seu pai. Pouca ou nenhuma informação dá sobre as peças e nem eu consigo identificar entre os 4 serviços de chá arrolados, todos eles com florinhas, qual deles será este, cujas imagens apresento. Percebe-se que já nenhum dos serviços estava completo e às minhas mãos chegaram alguns restos de dois serviços, entre os quais este.

Em suma, o extenso inventário é pouco informativo. Percebemos que houve muitos serviços de chá, café, jantar e de copos, que se foram partindo ao longo de 100 ou 150 anos. Paralelamente, iam-se também comprando novos, mas ficavam as peças dos anteriores e o recheio à época do inventário da minha avó era uma coisa heterogénea de várias épocas e feitios.


As duas janelas da sala de jantar são a segunda e a terceira a contar da esquerda
 Do inventário da minha avó ficamos a saber que existia na sala de jantar um enorme móvel estilo renascença, que era tão grande, que após as partilhas, umas das primas do meu pai tentou leva-lo para sua casa e não consegui de modo nenhum retira-lo de lá. Havia também um aparador, uma cristaleira, uma grande mesa de sala de jantar, onde comiam pelo menos 16 pessoas, muitas cadeiras e ainda mesas de apoio, numa das quais comiam os mais jovens. A mesa era abundante ao tempo dos meus bisavós. Serviam-se sempre dois pratos.

Entre as duas janelas da sala, existia um fogão de sala, mas pouco ou nada foi usado. Na realidade, o solar era sobretudo usado como casa de Verão. O Inverno era passado numa casa que a família Montalvão possuía em Chaves, na Madalena, mesmo junto à ponte romana.

Um dos pormenores curiosos que o meu pai se recorda desta sala, era uma espécie de roda, que serviria talvez para passar comida para o quarto existente ao lado, mas na época do meu pai já estava desactivada. Confesso que já me recordei se ela não serviria para passar os alimentos ao meu tio trisavô, o Miguel Montalvão, que enlouqueceu e vivia isolado no seu quarto, cheio de livros, com uma enorme barba e que se escondia debaixo da cama quando entrava alguma criada. Talvez essa roda servisse para alimentar o pobre louco sem o perturbar, mas não tenho provas. Também é verdade que a sala de jantar é uma divisão recente na história das casas portuguesas. Começou a aparecer no século XVIII e difundiu-se pelas casas mais ricas ao longo do século XIX e por consequência é também possível que a roda seja anterior à existência da sala de jantar. Portanto a função dessa roda permanece um mistério.


A sala de jantar é o número 26 e o quarto servido por uma roda era o número 24

Não há imagens da sala de jantar. Não há uma única fotografia dela, pois antigamente nunca se tiravam instantâneos no interior das casas. Nos anos 60, o meu pai filmou os salões nobres da casa, o museu, a biblioteca e a sala de visitas, mas não se lembrou da sala de jantar. Eu lembro-me vagamente dela, de estar talvez sentado na mesa dos miúdos, mas não me consigo recordar de nenhum pormenor do mobiliário, só talvez de uma sensação geral, que nem consigo descrever. Aliás, penso por vezes que confundo as minhas lembranças com as histórias que ouvi em pequeno do meu pai, acerca daquela sala.

Hoje o chão e o tecto do que foi a sala de jantar do Solar dos Montalvões ruíram e não há qualquer vestígio do gigantesco móvel renascença que por lá existiu. A memória que ficou dela é pouco mais do que estas palavras que aqui escrevi.
O que resta da Sala de Jantar...

8 comentários:

  1. Belas peças Luis!
    E concordo plenamente que não está errado evocar o passado e valorizar antiguidades em um periodo em que tudo se torna rápido, prático, objetivo, e descartável, sem profundidade, sem valores, sem raízes e sentimentos.
    abraços!

    ResponderEliminar
  2. Gosto muito da forma do bule, que me parece vetusta, e, apesar de lhe faltar a elegância de outras peças de cariz mais interncional, este teu tem aquele ar de antanho, e enche-nos de nostalgia por outras épocas, no que ajuda a observação da delicada pintura manual, feita por quem, parece, ainda tinha tempo para se dedicar a ela.
    Não vejo qualquer mal em reviver-se o passado, se isso não conduz a situações mais gravosas de inadequação, o que não me parece de todo o caso.
    Julgo ser importante haver lugar para todo o tipo de abordagens ao passado, desde que não se perca o presente de mira, visto que afinal temos todos de viver nele, quer queiramos quer não.
    Assim, este refúgio que alguns de nós encontra em formas de estar e viver mais viradas para outras épocas, ao contrário do que muitos poderão julgar, acaba por nos ajudar a sobreviver e encontrar equilíbrio face às pressões e desmandos do presente, incaracterístico, padronizado e cada vez menos apelativo, onde a arte e a beleza parecem ter cada vez menos lugar.
    Hoje tudo deve estar pronto para ontem, a burocracia afoga-nos, as ordens de serviço, o IRS, os Censos, as contas que nos chegam todas via net fazem mossa na nossa, periclitante, sanidade mental - hoje em dia ver um serviço de notícias, ler um jornal, é algo que nos/me deprime. Vou-me mantendo ao corrente do que se passa, mas a que custo ...
    Não fora estes poucos recantos de recreio que, a custo, nos permitem possuir, creio que o acto de viver não nos seria tão gratificante
    Manel

    ResponderEliminar
  3. Antes de mais quero dizer-lhe q o q acho fútil e até sinal de imaturidade é querer andar sempre na crista da onda, sempre atrás das últimas modernices, quer na adesão imediata e pouco reflectida a novas metodologias na organização do trabalho, quer no seguimento cego da última moda em roupa e acessórios ou objectos decorativos, quer na procura e aquisição compulsiva dos últimos brinquedos tecnológicos. Afinal o conhecimento é feito de passado, de memórias, é algo q tem q viver de alguma permanência e não estar sujeito a esta transitoriedade constante q não chega a um estado de amadurecimento e só provoca insegurança e insatisfação.
    Quanto às suas delicadas peças de porcelana Vista Alegre, é mais um belo legado que a sua família lhe transmitiu e q a Vista Alegre deixou para o futuro, tendo felizmente caído em mãos q o souberam preservar. Gostei muito da maneira como relacionou o serviço de chá com o espaço onde terá sido utilizado, a sala de jantar de Outeiro Seco. São memórias q assim vão sendo preservadas não só para os mais jovens da sua família, mas para todos aqueles q se interessam pelo património em vias de desaparecer...
    Como já sabe, adoro estas florzinhas pintadas à mão à mistura com toques de dourado e estamos de novo em sintonia porq eu tinha preparado um post para participar esta semana no Tea Cup Tuesday com mais umas peças VA.
    Abraços

    ResponderEliminar
  4. Olá Luis,
    Muito bonitas estas peças, penso que o meu irmão tem uma chávena igual na sua casa da aldeia ou na de Chaves.
    Tenho nas minhas memórias de infância uma visita à casa por si referida, situada na Madalena, aquando do falecimento de um seu parente.
    Será isto verdade?
    Já lá vão mtos anos, sei lá se "fabriquei"este facto.
    cmps
    leonor moreira

    ResponderEliminar
  5. Caros amigos

    Obrigado pelos vossos simpáticos e solidários comentários. O estudo do passado é útil, porque nos ajuda a entender o presente e é também sentimentalmente positivo, porque é uma forma de prestar homenagem aos nossos mortos, uma actividade sempre presente em todas as sociedades humanas. Igualmente, o gosto pelas antiguidades ou velharias, como afirma o Manel, é também uma actividade lúdica que nos distrai de um presente particularmente agressivo.

    Partilho com a Maria Andrade a mesma embirração com o seguidismo de modas tontas quer no vestuário, quer nos meios profissionais ou na gestão das organizações. Como dizia a Coco Chanel, as modas passam, o estilo fica.

    Abraços a todos

    ResponderEliminar
  6. Cara Leonor

    Fico sempre contente quando recebo comentários das pessoas ligadas A Chaves e a Outeiro Seco.

    Eu já não conheci essa casa na Madalena. Talvez a Leonor lá tenha ido por ocasião da morte do meu bisavô em 1965. Tenho ideia que essa casa foi desactivada depois da morte dele. Não sei qual é a idade da Leonor e se assistiu a esse acontecimento.

    Um abraço

    ResponderEliminar
  7. Luis,
    Então eu tinha nessa altura onze anos e sim, foi o meu "baptismo"nesses acontecimentos.
    cmps
    leonor moreira

    ResponderEliminar
  8. Essa casa parece que era muito bonita, mas não tenho qualquer imagem de como era por dentro. Só umas descrições escritas do meu pai.

    Abraços

    Luís

    ResponderEliminar