quarta-feira, 16 de março de 2011

Peixes

A nossa segunda seguidora misteriosa enviou-me por e-mail mais um conjunto de faiança coimbrã, datada entre o século XVIII e XIX, dedicada a um único tema, os peixes. Por coincidência, ou por qualquer entendimento telepático entre amantes das belas artes, a nossa primeira seguidora misteriosa enviou-me pouco tempo depois outro prato subordinado ao mesmo tema, que remata em beleza esta pequena exposição de faiança de Coimbra dedicada aos peixes.

Os peixes são vulgares em toda a arte do Mediterrâneo. Creta, Grécia e Roma usaram-nos. O Cristianismo tornou-os um símbolo da sua fé. Em Portugal, o Peixe, ou melhor a pesca foi uma fonte de riqueza inesgotável desde o período romano. As costas portuguesas, desde Lisboa ao Algarve, estão cheias de vestígios de cetárias, os tanques onde os romanos produziam o garum, a célebre pasta de peixe, que era destas paragens exportado para todo o império. E por toda a nossa história a pesca permaneceu uma actividade essencial na vida portuguesa. Só agora com a União Europeia, abatemos quase por completo a nossa frota pesqueira. Portanto, é natural que este tema apareça com pujança na loiça portuguesa. Aliás é curioso, que a Maria Andrade há uns tempos apresentou uma travessa inglesa do Século XIX, com cavidades para o molho escorrer, que os britânicos usavam para servir a carne assada. Mais ou mesmo no mesmo período, Miragaia fabricou travessas com formas em tudo semelhantes às travessas inglesas, mas chamadas peixeiras, porque de facto em Portugal comer-se-ia muito mais peixe do que em Inglaterra.

Segundo as próprias palavras da segunda proprietária misteriosa, o primeiro prato apresenta uma borda que me encanta, julgo que como é hábito algum artista coimbrão resolveu fazer uma interpretação pessoal do motivo rendas do século XVII/XVIII. É sem dúvida uma peça de início de XVIII, de carácter sacro em que julgo ter-se tentado explorar também o motivo peixe na sua acepção religiosa!


De facto, o motivo é indubitavelmente de significado religioso. No topo está o Sagrado Coração de Jesus, uma devoção católica iniciada por Santa Margarida Maria Alacoque. Entre 1673 e 1675, Cristo terá aparecido a esta santa e terá prometido a todos os que comungarem nas primeiras sextas-feiras de nove meses consecutivos, a graça na penitência final e o Seu Divino Coração como refúgio na hora da morte.

À volta do coração de Jesus, aparecem os peixes, um símbolo cristão. O peixe, como toda a gente que já viu os filmes Quo Vadis, A Túnica ou Ben-Hur sabe, era um símbolo secreto para os primeiros cristãos se identificarem entre si. A palavra grega para peixe, transcrita em latim, Ichthus, tem cinco letras, que dispostas verticalmente, são as primeiras palavras das frases Jesus Cristo Filho de Deus Salvador, conforme se pode ver no esquema que retirei da wikipedia francesa :

I (I, Iota): ΙΗΣΟΥΣ (Iêsoûs) Jesus;

Χ (KH, Khi): ΧΡΙΣΤΟΣ (Khristòs) Cristo;

Θ (TH, Thêta): ΘΕΟΥ (Theoû) Deus;

Υ (U, Upsilon): ΥΙΟΣ (Huiòs) Filho;

Σ (S, Sigma): ΣΩΤΗΡ (Sôtếr) Salvador.


Depois, na continuação directa deste prato, e avançando um século na produção coimbrã, a nossa segunda misteriosa, apresentou-nos um ratinho, com um motivo que eu nunca tinha visto nesta loiça, um peixe, talvez uma garoupa, segundo a Maria Andrade, envolto naquilo que me parecem ser as flores do linho.

Deste prato, passamos para outro exemplar ratinho, também com um motivo central do peixe, um ruivo (segundo a Maria Andrade), mas desta vez propriedade da nossa primeira seguidora.


Finalmente, a segunda seguidora, mostra outro ratinho com um sorridente peixe no meio, que a nossa Maria Andrade identificou como um Atum, mas sem certeza


Segundo a classificação apresentada para esta faiança Cerâmica de Coimbra: do Século XVI – XX / de Alexandre Nobre Pais, João Coroado, António Pacheco. Lisboa: Edições Inapa, 2007, estes pratos pertencem ao tipo zoomórfico e pelos vistos a um subtipo muito específico, os peixes

O mais curioso disto tudo é que estes peixes representados nos ratinhos, parecem representações naturalistas de espécies existentes. Infelizmente, não percebo nada de ictiologia e não os consigo identificar, mas os meus leitores e seguidores deram-me já uma ajuda e continuo aberto a mais opiniões.


Por mim, vou ficar a contemplar estes maravilhosos peixes, que parecem ter saltado de algum fresco cretense para a louça ratinha de Coimbra e despeço-me com mais um prato da nosa primeira seguidora com mais um ratinho representando...um pescador.

17 comentários:

  1. Olá Luís
    Não há dúvidas que as suas seguidoras misteriosas tem raros exemplares de faiança portuguesa, e da BOA!
    Só há pouco tempo comecei a apreciar o motivo Peixes, confesso que privilegiei sempre mais os Galos.

    Foi há coisa de dois messes na feira de Paço D'Arcos, o vendedor um estrangeiro, sob a banca, um prato de Talavera, já os consigo deslumbrar...e outro de faiança portuguesa grande de esmalte brilhante com verdes deliciosos e um grande peixe ao centro, que dizia ser de Gaia.Pedia pouco mais de 100 €. Depois da 1ª ronda à feira ao passar já lá não estava, perguntei se o tinha vendido, disse que sim,e riu-se com o comentário que ele fez "cheira-me a Estremoz, sabe que era comum os pintores mudarem-se de fábrica e com eles levavam a técnica e os motivos, o que incita à descoberta de pormenores para a destrinça"
    Fiquei com uma pena, daquelas, nada ficava a dever a estes belos exemplares, aliás destacava-se pela grandeza e brilho, magnífico.

    Os exemplares apresentados de faiança Coimbrã, o 1º apresenta cores muito escuras, o que denota a sua antiguidade e o símbolo do coração usado no século XVI e que perdura até à faiança da Viúva Alfredo Oliveira de Coimbra, que tanto os pintou.

    As flores que diz, são de linho, quanto à espécie dos peixes...naquele tempo o que comiam? sardinha, chicharro,chaputa por ser mais bojuda e cinzenta será uma mera hipótese.

    Agora que são uma delícia...São!
    Desconhecia este motivo de peixes pintado em loiça ratinha.Sempre a aprender mais.
    Parabéns às suas donas que se deleitam a olhar para eles e nós neste blog também!
    Beijos
    Isabel

    ResponderEliminar
  2. A decoração da aba do 1º prato não me parece o motivo de rendas referido, mas antes o de um cordame que a circunda, provido dos respectivos flutuadores de cortiça, o qual parece apertar uma invisível rede que está com peixes no seu interior, quase como se exprimisse um desejo de uma boa pescaria, à semelhança do que sucedia no período pré-histórico, segundo algumas teorias explicativas do aparecimento da representação zoomórfica, onde surgem animais, isolados ou em cenas de caça, nas decorações parietais de grutas.
    As técnicas são indubitavelmente relacionadas com esta produção, com os esponjados ou traços feitos por pincel largo liderado por mão bem treinada e as cores são-nos já familiares: o translúcido verde água (a cor que mais prazer me dá observar), os amarelos fortes, os castanhos, alguns azuis, e as pontuações numa tonalidade bastante escura que ora me parece vinoso ora castanho escuro. Talvez estas duas cores sejam a mesma, variando a saturação do pigmento.
    Quanto à tua teoria sobre o significado religioso do peixe, estou completamente de acordo com ela, e também teria feito a mesma leitura.
    Como muito bem referes, não é nada de desprezar a influência que a pesca teve na nossa economia passada, algo que infelizmente desapareceu face às imposições da Comunidade Europeia, que nos obrigou a abater as frotas pesqueiras que tanto trabalho e riqueza produziam.
    Não é por nada que os pratos com peixes são tão populares na nossa cerâmica tradicional, muita dela produzida exactamente em centros que se estendiam ao longo da linha costeira, alguns mesmo detentores de concorridos portos de pesca: Viana, Porto, Aveiro, Coimbra, Caldas e, com certeza, Lisboa.
    Manel

    ResponderEliminar
  3. Manel

    Faz algum sentido a decoração do prato ser uma rede de pesca. Se assim for, poderia-se fazer outra leitura iconográfica do prato. Cristo, no centro, rodeado dos seus seguidores, que acalma a tempestade no mar da Galileia. Enfim, talvez seja eu a delirar e a ler coisas onde o artista pretendeu apenas divertir-se a pintar

    ResponderEliminar
  4. Cara Isabel

    Os pratos das nossas seguidoras misteriosas são de facto um espanto e enriquecem sem dúvida a nossa cultura visual. Gostaria imenso de identificar os peixes representados, ainda o vou tentar.

    Beijos

    ResponderEliminar
  5. Luís,
    Não sei se já lhe aconteceu mas às vezes vemos coisas q nos impressionam de tal maneira q demoramos algum tempo a verbalizar o efeito q nos provocam.
    É o caso do conteúdo deste post, não só as imagens como também o texto q mais uma vez as acompanha adequadamente.
    Achei o primeiro prato uma maravilha e mais uma vez agradeço à sua segunda seguidora a disponibilização das fotos para nós admirarmos, mas também lhe agradeço ter já vindo aqui deixar um simpático comentário em q referiu o meu nome.
    Os três peixes desse prato com clara simbologia religiosa não me parece representarem nenhuma espécie em particular, mas já o do segundo prato é mais identificável, eu diria q é uma garoupa, mas pode ser outra espécie parecida.
    Já o do terceiro prato, neste caso amável partilha da sua primeira seguidora, penso tratar-se de um ruivo e o último,mais um belo e colorido ratinho parece-me ter um atum ao centro.
    Claro q não sou perita em peixes, isto é só um pequeno contributo para ir ao encontro da curiosidade manifestada pelo Luís...
    Abraços

    ResponderEliminar
  6. Maria Andrade

    Este conjunto de pratos tem efectivamente um efeito estonteante.

    Actualizei o post com as suas informações sobre os peixes. Alías conhecendo as suas inclinações para a Micologia, calculei que também fosse capaz de dar um parecer capaz na ictiologia.

    Abraços e obrigado

    ResponderEliminar
  7. Olá Luís, uma vez mais obrigada pelo excelente tratamento fotográfico e enquadramento de texto que deu às peças, como anteriormente lhe disse é um prazer seguir o seu blog e partilhar estas peças com todos vós!
    Ainda a bibliografia sobre a faiança ratinho, gostava de lançar um repto à Drª. Ivete Ferreira para editar a sua fantástica tese de mestrado(Os ratinhos [Texto policopiado] : cerâmica portuguesa de cariz popular / Ivete Vaz Martins Rodrigues Ferreira. - Lisboa : UCP, Escola das Artes, 2007. - 2 vol.; 30 cm)!
    Tive oportunidade de ver os dois volumes em casa de um amigo comum, o Dr. António Miranda, dono da Galeria da Arcada e um apaixonado pela faiança portuguesa, e para quem gosta da faiança ratinho aquela obra é fundamental!
    Uma vez mais parabéns e até breve, CC

    ResponderEliminar
  8. Cara CC

    Concordo. Editam-se tantos livros tontos, que não servem para nada. Os jornalistas, os socialites, os concorrentes dos big brothers publicam livros cretinos, atrás de livros cretinos e as boas obras ficam por editar nas casas das pessoas ou em circulação restricta numa biblioteca. Neste momento no mercado, não há nada à venda sobre Ratinhos

    ResponderEliminar
  9. Luís, não estava nada à espera q acrescentasse os meus palpites ao seu post. São meras suposições, há tantos peixes parecidos, às vezes diferem sobretudo no tamanho e isso nós aqui não sabemos. O único em q tenho mais certeza é o ruivo e quanto aos outros se calhar a Maria Isabel tem razão quando fala em sardinhas, o peixe mais acessível ao povo mais pobre, afinal os utilizadores destes ratinhos. Penso q o seu post pode ter perdido qualidade ou rigor com o acrescento dos meus palpites e ainda está a tempo de os suprimir...
    Abraços

    ResponderEliminar
  10. Cara Maria Andrade

    Obrigado. Acrescentei uns "talvez" junto à Garoupa e o Atum. Fiz umas pesquisas de imagens no google por Atum e de facto o último peixe parece um Atum. A Sardinha só tem uma barbatana dorsal. Mas...

    Em todo o caso se aparecerem mais especialistas em peixes, corrige-se a informação, pois eu não sou como o outro que nunca se engana, nem tem dúvidas...lol

    ResponderEliminar
  11. Ó Maria Isabel, faça lá o favor de me explicar por números, qual dos peixes acha que é uma sardinha, uma chaputa ou um chicarro.

    Beijos

    Luís

    ResponderEliminar
  12. Olá Luís
    A tarefa não é fácil. Os pintores à época não tinham uma técnica apurada no desenho, vejam-se as flores de linho, enormes, quando são bem pequenas e graciosas em azul, o mesmo com a cabeça dos peixes desmesuradamente grande em relação ao corpo.O que não tira nada de grandioso à pintura, apenas na abordagem em querer agora decifrar a sua espécie;
    Como eu disse, e a Maria Andrade completou e bem, a loiça ratinha foi fabricada mais grosseira e barata para o povo, se viviam em pobreza num tempo que dividiam uma sardinha por três, sendo a cabeça, hoje deitada para o lixo, saboreada como se de carne se tratasse.O meu avô paterno começou a vida por ser peixeiro depois da 1ª guerra mundial, deslocava-se à Leirosa, a carroça abarrotava de canastras com sardinha, cavala, sarda, chicharro ( um carapau grande) e xaputa. Daí a minha pronta resposta.

    Analisando melhor sem contudo a vaidade de estar certa direi que :
    1º prato podem ser cavalas,sardas,sardinhas ou chicharros, pela risca longitudinal ao longo do dorso mais escura. A cavala,a sarda e o chicharro apresentam uma tonalidade em azul escura brilhante. A cavala e a sarda punha-se em salmoura de um dia para o outro,comia-se cozida. Na minha geração só a vi comprar por gente muito pobre.
    2º prato o peixe de barriga mais larga assemelha-se à Xaputa, peixe de pele escura tipo lixa habitualmente come-se frito depois de tirada a pele, também pode ser um pargo, goraz ou até um peixe de rio, boja ou outro.
    3º prato, assemelha-se a um ruivo pelo formato da cabeça, uma forte possibilidade.
    4º prato, inclino-me para a sardinha pela tonalidade amarela e verde, sem arcas frigorificas o peixe transportado em carroças durante quilómetros do litoral ao centro do país,poucas precauções,à sua roda moscas, cheiro forte,quando chegavam ao comprador de aspecto seco e amareladas.

    Não se deve descuidar também o peixe dos rios, bogas, carpas e outros.
    Claro que em Coimbra nas casas abastadas comia-se além da pescada, o pargo e o goraz,há 50 anos lembro de ver a peixeira no seu carrinho de madeira o amanhar à minha porta e nunca se esquecia do contrapeso na balança.

    Por certo de nada ajudei, como de costume, no entanto escrevi com o coração.

    Beijos
    Isabel

    ResponderEliminar
  13. Cara Isabel

    Ainda estou a reflectir sobre todos esses peixes e tenho dificuldade em concluir seja o que for. Fiz já umas quantas pesquisas no google por imagens e é muito complicado. Já reaparou que o segundo peixe, envolteonas ditas flores de linho, parece ter uns bigodes?

    ResponderEliminar
  14. Olá Luís
    Pois, tem toda a razão, tem bigodes. Este o peixe mais difícil de decifrar. Na minha próxima ida ao mercado vou olhar melhor para os peixes. Ainda se vai descobrir um dia destes.
    Beijos
    Isabel

    ResponderEliminar
  15. Ó ,miga
    Não será peixe gato?
    Se tem bigodes...
    Só pode ser peixe gato
    O Super mercado Continente ,vende peixe gato
    O dito tem bigodes...
    Só pode

    ResponderEliminar
  16. Respondendo ao Miguel...
    Os bigodes?
    O peixe pode muito bem ser a Faneca,aparece muito na Figueira da Foz e têm bigodes encurvados tal como os do prato...acabei por me lembrar.
    Muito barato, acessível nessa época ao povo, o peixe gato só é conhecido há poucos anos tal como a rede do Continente. Falamos em finais do século XVIII até meados do XX.

    ResponderEliminar
  17. boa noite tenho uma bacia bastante antiga com motivos de peixes mas nunca vi nada igual a minha penso tratar se de peça única já a tentei associar a outras pecas de coimbra estremos aveiro e não encontrei nada igual se alguém tiver interessado em identificar a peca agradeço o meu mail e jcgmendonca@gmail.com

    ResponderEliminar