segunda-feira, 23 de maio de 2011

Efebo

Durante muitos anos protelei a visita ao Louvre. As poucas vezes que tive oportunidade de visitar Paris apetecia-me mais andar nas ruas, apreciar l’air du temps, do que me fechar num gigantesco museu, no qual teria que passar um dia inteiro fechado, o que era muito, para quem dispunha de um curto período de 4 ou 5 dias para estar naquela cidade.

No entanto, sabia que tinha que o visitar. Embora não seja especialista, a escultura greco-romana sempre me causou arrepios de prazer e naquele museu estavam grande parte das obras-primas da arte clássica. E depois havia outro motivo para visitar o Louvre, a Yourcenar. Conforme conta nas suas memórias, durante a meninice o seu pai levava-a frequentemente ao Louvre. Passou horas esquecidas a admirar escultura antiga, a ouvir o seu pai discorrer sobre dela e obviamente isso determinou a sua obra futura, baseada na harmonia e no equilíbrio do estilo clássico e num profundo conhecimento da antiguidade greco-romana.

Por isso, há cinco ou seis anos, resolvi enfrentar o Louvre. O Manel foi para a pintura flamenga e holandesa e eu, à semelhança do que fiz no British Museum, segui para a secção de escultura greco-romana, decidido a não ver mais nada senão aquela colecção, nem que ao lado me aparecessem Leonardos da Vinci ou Fra Angelicos


Hermes. Cópia romana. Museu do Louvre

O núcleo de estatuária clássica é gigantesco. Impressiona. As estátuas mutiladas, os braços, pernas e cabeças acrescentados no período barroco, os restauros feitos no século XIX deixam-nos na dúvida se alguma fez chegaremos a conhecer as genuínas estátuas gregas, até porque a maioria do que vemos são cópias romanas dos originais helénicos. E enquanto via aquela colecção enorme e sofria horrores dos pés, percebi que o mais belo ensaio de Yourcenar, O tempo esse grande escultor, terá começado a esboçar-se nas salas daquele museu, talvez ainda quando fosse muito jovem. Nesse texto, apresenta a teoria que a criação de uma obra de arte não acaba no momento em que sai da oficina do artista. Ela continua em pleno processo de transformação, à mercê dos actos de vandalismo que sofre, das catástrofes, como os naufrágios ou incêndios que lhe acontecem, ou dos restauros bem-intencionados a que é sujeita. A beleza da Victoria de Samotrácia ou da Vénus de Milo são mérito do escultor, mas também do tempo, que as fragmentou, as alterou e lhes deu aquela forma incompleta que tanto apreciamos.
A Nike ou Vitória de Samotrácia. Museu do Louvre

Sai tão cansado e tão impressionado daquela visita, que me apeteceu trazer um pouco daquela beleza clássica comigo, para Lisboa. Apesar de séculos de cepticismo, continuamos com aquele espírito de crendice, dos antigos peregrinos cristãos, que precisavam de trazer um pedaço de osso, um fragmento de tecido, uma unha ou uma pedra, para sentir que transportavam para a casa a santidade do local ou a protecção do santo através daqueles objectos. Eu comprei a cópia de um fragmento de um jovem Efebo, muito belo.

O original é uma obra datada entre 447-432 a. C. e que a elegância do rosto, a firmeza do traçado no nariz, o desenho da boca e o modulado dos cabelos mostram a perfeição e o equilíbrio de um dos mais altos momentos da arte humana, o período clássico da arte helénica. É proveniente do friso norte do Partenon, e foi uma oferta do Rei Otão da Grécia ao Governo francês.

Um friso do Partenon no Museu britânico


Coloquei esta réplica aos pés da minha cama e à noite, quando a olho, recordo-me do episódio do roubo dos mármores do Partenon, por Lord Elgin, em 1801-1802, que os transportou com ele para Inglaterra e que já na época foi acusado de bárbaro por muitos dos seus conterrâneos, como foi o caso de Lord Byron, que escreveu.

Scaped from the ravage of the Turk and Goth,

Thy country sends a spoiler worse than both.

Outro fragmento do Partenon no Museu Britânico

O belo efebo lembra-me também Melina Mercouri, quando era jovem e tão perturbadoramente bela como esta estátua. Os lábios são idênticos, Tenho sempre na memória o filme Phedra, em que contracenou com Anthony Perkins numa tragédia terrível.


Melina em Phedra
Mais tarde, quando a sua beleza se desvaneceu, lembro-me da coragem de Melina, enquanto Ministra da Cultura, reclamando a devolução dos mármores do Partenon à Grécia. Não conseguiu nada, mas chamou a atenção da opinião pública mundial para o facto de que a maioria das colecções dos grandes museus franceses, ingleses ou alemães foram mais ou menos pilhadas, na época em que a frança, a Inglaterra ou a Alemanha dominavam o mundo.

A beleza helénica dos lábios de Melina

Antes de me deitar, os lábios sensuais do meu Efebo, iguais aos de Melina Mercouri, fazem-me pensar que a arte cristã, só mostrou a beleza, enquanto meio para demonstrar que ela era efémera e vã e nada mais existia para além da fé em Cristo e na Salvação. Pelo contrário, a arte helénica mostrou-nos a beleza humana, sem pecado ou arrependimento. A beleza é em si mesmo divina.

Os lábios do Efebo

13 comentários:

  1. Olá Luís
    Interessantíssimo o seu post sobre a escultura greco-romana.Uma obra de arte é eterna. Assim foram os gregos, ímpares na execução da estatuária, mestres no conhecimento perfeito do corpo humano.
    Quando visitei o Louvre, fiquei estática perante perante a força intemporal da Vitória de Samotrácia. A sua serenidade frágil incute-nos respeito e, de certo modo, algum temor.
    O meu apreço e gosto pela arte, principalmente a grega, vêm desde o tempo do liceu, em que estudava com gosto pelos manuais Mattoso (que conservo) e que, de vez em quando, ainda me dissipam dúvidas.
    Cumprimentos
    if.

    ResponderEliminar
  2. Olá Luís.
    Belo post, gostei do local na quina do teto onde a colocou.

    Prefaciando as suas palavras...E depois havia outro motivo para visitar o Louvre, a Yourcenar. Conforme conta nas suas memórias, durante a meninice o seu pai levava-a frequentemente ao Louvre. Passou horas esquecidas a admirar escultura antiga, a ouvir o seu pai discorrer sobre dela e obviamente isso determinou a sua obra futura, baseada na harmonia e no equilíbrio do estilo clássico e num profundo conhecimento da antiguidade greco-romana.
    Adorei, adoro pedras, então trabalhadas, este Efebo em particular, lábios sedutores, emergi em sonhos!
    Também tenho o hábito de trazer uma réplica de uma peça dos Museus que visito.

    Beijos
    Isabel

    ResponderEliminar
  3. Olá Luís

    Parabéns por este post.Transversal a vários temas, fez-mo ler de fio a pavio.
    Toca na questão da devolução das obras de arte trazidas para a Europa à luz das mentalidades da época e de certos contextos históricos,questão polémica,em que eu me considero tendencialmente a favor da devolução aos seus países de origem.Mas que seria de alguns grandes museus, se assim fosse? O Museu Pergamon,por exemplo desapareceria..., talvez fazer réplicas, como nas grutas de Altamira,em Espanha, onde o interesse pelos célebres bisontes se mantém.

    Mas, tanta conversa e ainda não lhe disse que o seu Efebo é lindo e está muito bem colocado.
    Um abraço
    Maria Paula

    ResponderEliminar
  4. Cara if

    Também aprendi a gostar da escultura clássica nos livros de história da minha irmã mais velha, que eu desfolhava de ponta à ponta e conhecia todas as imagens de cor.

    Este post surgiu na sequência do interessante serão que a If e o seu marido me prorcionaram. Em quase todas as nossas conversas esteve sempre presente, o tempo esse grande escultor.

    ResponderEliminar
  5. Obrigado Maria Isabel

    A Yourcenar é sempre um mote deste blog. Aprendi com ela que a história pode ser mais do que um manual académico e atingir a dimensão da grande literatura. Claro, não tenho obviamente o seu talento, mas o que ela escreveu está presente em algumas ideias que fui aqui desenvolvendo.

    Beijos

    Luís

    ResponderEliminar
  6. Origado pelo seu comentário Maria Paula.

    O tema do post era algo ambicioso e temi tornar-me chato ou pretencioso.

    A Melina Mercouri colocou nos jornais o debate sobre a devolução dos bens culturais saídos ilicitamente dos países de origem e tenho por isso uma grande simpatia por ela. Aprecio sempre os mais fracos que lutam contra os fortes. Mas, a questão não é linear. O British Museum afirma que os mármores do Partenon são um bem da humanidade e que em Londres estão bem preservados e acessíveis gratuitamente a milhões de visitantes.

    Ainda a propósito da Melina Mercouri, que poderia ser tomada por uma nacionalista feroz, tenho que dizer em seu favor que era uma europeista convicta. Foi responsável pela iniciativa as Capitais europeias da cultura, que é um dos projectos mais populares da UE.

    Bjos

    Luís

    ResponderEliminar
  7. Vamos lá a ver se, finalmente, me sobra algum tempo, ainda que roubado à minha noite de sono.
    Não poderia contabilizar as horas que já passei no Louvre, perdi-lhes a conta.
    Passei lá finais de semana quase inteiros ou aquilo que me deixaram lá ficar ... mais ficaria, se me deixassem. Houve tempo em que cheguei a levar comida, hoje não sei se mo deixariam fazer.
    E, tal como tu, raro visito este museu, ou outro qualquer deste calibre, sem possuir de antemão um objectivo definido, sob pena de me perder e não ver nada daquilo que tinha em mente. E como é fácil uma pessoa perder-se nestes museus de 1ª grandeza!
    Ainda que em escala mais modesta, raro vou ao MNAA sem objectivo bem definido ...
    Gostei imenso do paralelismo que estabeleceste com a Melina Mercouri, a qual me pareceu sempre melhor política que atriz, ou pelo menos, mais convincente. Creio que ela própria se deve ter dado conta do facto também, inteligente como era.
    Quanto à polémica que envolve os mármores de Elgin, e, afinal, todas as obras pilhadas que atafulham os museus da civilização ocidental não estou bem certo sobre o caminho a seguir. Conheço bem os museus de Atenas, por exemplo, e a forma como as peças estão expostas deixam muito a desejar, sobretudo quanto à informação fornecida.
    Ou uma pessoa é culta e sensível à arte, tendo alguns conhecimentos no campo, ou então sai como entrou ... "fartinha de pedras, que, ainda por cima, estão já gastas" como dizia com enfado uma conhecida, "tia" de Cascais e dona de uma escola qualquer na Linha (por isso, até com alguma responsabilidade na área da cultura), com quem tive o desprazer de partilhar uma subida ao Tubkal no Norte de África!
    Penso que a forma como os ocidentais tratam a arte e como a difundem é de longe superior à forma com que o fazem os países de origem dessas mesmas peças.
    Basta ver o que se passou recentemente com as riquezas que se amontoavam no Museu de Bagdad, que ficou completamente a saque durante o período de convulsão recente (é bem certo que por culpa dos EUA e dos seus compinchas europeus apoiantes, como os governantes de Inglaterra e Espanha e até do "nosso Cherne"!).
    Mas é uma dó de alma ver o principal Museu de Valetta! Eu só não tirei uma das muitas, e fabulosas, peças em exibição, porque realmente não tenho esse hábito, nem creio que seja coisa que se deva fazer ... mas ... era só estender a mão e guardar na mochila!
    Quanto a informação sobre o que estava a ver ... nada, era um vazio. De quando em vez aparecia uma informação manuscrita, numa escrita já muito sumida pelo tempo, e levada a cabo por um qualquer "estudioso empenhado" que deve ter tomado conta do museu nos seus primórdios ... e ali ficou. Mas era uma adivinhação!
    Espero que entretanto, e para bem dos malteses, a situação se tenha alterado, pois era absolutamente degradante, chegando mesmo a ser ridículo!
    Nestas situações prefiro ver as coisas por quem as sabe expor e, sobretudo, referenciar!
    Aprendo muito mais e passo a olhar a arte com outros olhos, e, se isto me sucede a mim, haverá grande probabilidade de suceder igualmente a outro qualquer! A arte agradece
    Manel

    ResponderEliminar
  8. Demorei a vir comentar este post porque há aqui um cruzamento de temas que me são caros e me exigiam tempo para verbalizar, nem sabia bem por onde começar.
    Agora o Manel forneceu-me uma boa deixa sobre a apropriação de património de outros países pelos grandes museus europeus.
    Tal como o Manel, sinto-me muito dividida quanto a esta questão. É verdade que as primeiras vezes que visitei quer o Louvre, quer o Museu Britânico, este muito antes daquele, me senti um pouco chocada com a quantidade de objetos arqueológicos vindos de países mais ou menos longínquos, que atafulhavam as salas de exposição. Mas agora também acho que foi uma mais-valia para esses objetos terem sido devidamente estudados, cuidados e expostos nas melhores condições para qualquer visitante admirar, ainda por cima a título gratuito, pelo menos no caso dos grandes museus de Londres. Embora o ideal fosse que eles tivessem permanecido "in situ" ou pelo menos no país de origem, é forçoso admitir que lá não teriam tido a mesma sorte.
    Também ainda hoje me indigno com o que aconteceu no Museu de Bagdad, isso por culpa dos grandes defensores da democracia e dos valores ocidentais, que não souberam ou não quiseram acautelar aquelas preciosidades.
    Havia aqui pano para mangas para continuar a discorrer sobre estes assuntos, mas ponto final na conversa que tenho alguém a dar sinais de que são horas da papa... :)
    Muito obrigada, Luís, por trazer para aqui temas tão interessantes.
    Abraços

    ResponderEliminar
  9. Maria Andrade e Manel

    Desculpem responder-vos em conjunto, mas os vossos comentários foram direccionados no mesmo sentido.

    Quando visitei o Louvre e o British Museum fiquei com a nítida ideia, que estes espaços reflectem a história do imperialismo europeu. Julgo que se passará o mesmo com os museus de Berlim e o Kunsthistorisches Museum de Viena, que não conheço. No entanto, foi também nesses museus que essas obras-primas foram estudadas e catalogadas e salvas do vandalismo e da incúria. Mas era natural, que isso acontecesse, pois era nos grandes impérios mundiais que se concentrava o saber e a investigação e ainda hoje assim o é.

    Não tenho uma opinião muito formada sobre isso pois não sou um moralista e muito menos um especialista em direito do património, mas simpatizo de alguma forma com as pretensões gregas. Imagino as sensações terríveis de um grego culto quando entra no Louvre ou no British Museum.

    Mas o assunto é complicado. Esta semana assisti a uma conferência de um conservador alemão dos palácios de Potsdam, conjunto no qual se encontra a célebre residência de Frederico II, o Sans Souci. Este senhor queixava-se que o recheio destes palácios foi pilhado em larga escala pelas tropas soviéticas e que hoje, apesar de muitas negociações com o governo russo, só conseguiram reaver uma pequena parte. Também é verdade que os alemães em 1939-45 pilharam toda a Europa e que muitos desses bens culturais ainda estão perdidos ou não foram devolvidos aos seus proprietários, entre os quais se contavam muito judeus. Quem se arrisca a dizer que um é culpado e outro inocente?

    ResponderEliminar
  10. Sim senhor, ... aprende-se aqui muita coisa !!!
    Obrigada.
    emília reis

    ResponderEliminar
  11. Mesmo sendo eu de História e com uma paixão especial pelas artes ,que mais acrescentar à sua descrição sobre a escultura grega que o Museu do Louvre vai conservando desde Napoleão.
    Uma visita ao Louvre é sempre inesquecível...
    Saudações raianas
    Quina

    ResponderEliminar
  12. Cara Emília

    Obrigado pelo seu comentário. Fico muito contente quando o que escrevo no blog e aquilo que os outros comentam é útil. Volte sempre, que tenho muito gosto na sua presença.

    Abraços

    ResponderEliminar
  13. Cara quina

    De facto, o Louvre marca. Não lhe ficamos indiferentes e este post é precisamente à volta dos pensamentos que aquele museu francês me despertou.

    abraços

    ResponderEliminar