quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Os olhos da prima Maria Esteves ou tentando identificar velhas fotografias




Trouxe comigo as velhas fotografias da casa da família materna, com a ideia de as estudar e organizar um álbum. Confesso que quando iniciei o trabalho experimentei um não sei o quê de pânico, ao descobrir mais uma vintena de imagens de gente completamente desconhecida, fotografada mais ou menos entre 1890 e 1920. Como iria eu identificar esses homens de bigodes, as damas de engalanadas rendas e as criancinhas de traje de marujo, agora que a minha mãe e cinco dos seus irmãos já morreram?
Os trajes à maruja

Comecei a organizar então esse núcleo mais antigo formando conjuntos de semelhanças físicas. Se é certo que numa fotografia a criancinha não está identificada, noutra tirada uns anos depois, posa ao lado da sua mãe e no reverso há uma preciosa dedicatória manuscrita, assinada com o nome dos dois, e com os seguintes dizeres: “à dedicada prima oferece esta fotografia…”. Estas pequenas notas manuscritas são o suficiente para começar estabelecer laços, relações e grupos.

O verso da carte de visite era destinado a um texto, uma dedicatória da fotografia à madrinha amada, ao pai venerado e oferecida pelo sobrinho dedicado ou primo muito amigo


Comecei também a perceber que dessas fotografias mais antigas, há mais imagens de primos e amigos, do que propriamente dos meus avôs ou bisavôs. É um pouco como os arquivos. Temos as cartas recebidas dos nossos parentes, mas as que os nossos antepassados enviaram estão na casa dos outros.


Estas fotografias impressas em cartão duro, conhecidas por retratos carte de visite eram nos primeiros anos do século XX ainda muito caras. As pessoas vestiam as melhores roupas e tiravam um único retrato para enviar à madrinha, à irmã ou primo. Muitas vezes nem ficariam com uma cópia para si. Os retratos carte de visite são ainda um símbolo de estatuto social e permitem auferir o bem-estar económico de uma família. Quem é fotografado tem dinheiro, tem estatuto social.

Mas voltando, ao assunto, consegui a partir desse método de associar semelhanças, estabelecer quatro grupos familiares que enviaram fotografias aos meus avós ou bisavós:
Os Campilho: retrato de Pedro Campilho dedicado aos meus bisavós Maria da Graça e Clemente em 1909
Primeiro, os Campilhos, amigos dos meus biavós maternos, cujos quintais confinavam. Hoje os Campilhos ligaram-se aos Palmela, mas na altura, ainda teriam com os meus bisavôs, que eram uns meros lavradores abastados, umas animadas conversas sobre maças e peras, debruçados no muro que dividia as propriedades.


Os Sampaio. Foto do Emílio Biel do Porto

Depois aparecem muitas fotografias dos Sampaios, primos por parte do meu bisavô materno, mas cuja relação exacta de parentesco não consegui ainda apurar.


Os irmãos Fernandes. Ainda conheci duas destas meninas. A mais pequena era Madrinha da minha mãe


Em terceiro lugar, também primos por parte desse mesmo avô, surgem os Fernandes, cujas fotografias consegui reconhecer sem dificuldades, pois ainda me lembro de alguns deles vivos e mantenho algum contacto com os filhos e netos. 


E finalmente apareceram uma dúzia de fotografias de um grupo de gente com o apelido Esteves, de quem eu nunca ouvi falar e que eram sem dúvida parentes, pois dedicam sempre a carte de visite ao seu querido primo ou sobrinho.

Os olhos portugueses da Maria Esteves em 1918

Tocou-me particularmente o retrato da Maria Esteves, uma jovem com um pescoço elegante e uns grandes olhos escuros um pouco tristes, mas bonitos. Enfim, uns verdadeiros olhos portugueses. A fotografia está datada de 1918 e nela a Maria Esteves escreve a minha avó Adelaide, queixando-se que o primo não lhe escreve e que lhe manda aquele retrato pois ainda não tiveram oportunidade de se conhecerem.

No verso da carte de visite, a Maria Esteves queixa-se a minha avô Adelaide que o primo não respondeu à sua carta. Data, 1918

Fiquei curioso por saber quem era esta prima desconhecida, que apresentava uma certa elegância já muito urbana. Por contraste, os outros Esteves, tem um ar mais grosseiro, de quem saiu há pouco tempo dos campos, mas que já possui dinheiro para se fazer fotografar com fatos de senhora, brincos e cordões de ouro.


Apesar da seda, dos fios e brincos de ouro, a Cândida Paulina Esteves apresenta o ar que ainda há pouco amanhava a terra. Carte de Visite de 1915, dedicada ao sobrinho, o meu avõ paterno António da Purificação
Fiz uns quantos telefonemas a uns primos mais velhos e percebi que estes Esteves eram primos por parte do meu avô materno, o António da Purificação, que proveio de um meio mais humilde que a mulher, o que explica que aquelas senhoras suas familiares tenham ainda aquele ar campónio, apesar das sedas e dos ouros.


Liguei ainda ao meu pai, uma espécie de conservatória dos registos familiares e lá me confirmou o parentesco destes Esteves com o meu avô materno e deu-me um esboço de árvore genealógica, de um ramo da família, que já nos tínhamos esquecido um pouco. A bonita Maria Esteves tinha por nome completo Maria Joaquina Esteves, era prima direita do meu avô materno e terá talvez nascido em 1898 e certamente, que já morreu por estes dias. Não herdou o ar de camponesa da mãe, a Cândida Paulina Esteves. O avô da Maria Joaquina, cujo nome desconhecemos era o meu trisavô e não sei quem era. Não conheço todos os meus trisavôs.

Quando começamos a estudar os nossos antepassados, temos tendência a concentrarmo-nos mais num ramo, normalmente o masculino ou até pode ser um feminino, desde que seja mais aristocrático. Esquecemo-nos frequentemente nesses estudos de genealogia, que descendemos de 4 avôs, 8 bisavôs, 16 trisavôs e 32 quatrisavós e não-sei-quantas dezenas de tetravôs e que esse número se vai multiplicado à medida que recuamos no tempo. Como dizia a Yourcenar, começamos a fazer genealogia por vaidade e acabamos angustiados junto ao enorme abismo onde jazem os milhares de mortos que nos antecederam.


E tudo descobri pela curiosidade que me despertaram os bonitos olhos da Maria Esteves.

22 comentários:

  1. Olá Luís
    Os olhos da Maria Esteves são magníficos.
    if

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  2. Salve Luís!
    Os olhos de Maria Esteves possuem uma tocante e doce melancolia. São olhos lusos, olhos de fado!
    Abraço
    Edwin Pinto Fickel

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  3. Cara If

    Muito obrigado. Os olhos desta senhora despertaram-me a curiosidade para descobrir um ramo familiar que andava esquecido.

    Abraços

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  4. Caro Edwin

    De facto este tipo de olhos só se encontram em Portugal ou obviamente no Brasil ou num dos outros países lusofonos. São os tais olhos castanhos, encantos tamanhos, que a canção do Francisco José enaltecia.

    Um abraço

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  5. Os olhos da senhora poderiam ser os da minha mãe, que não andavam muito longe destes.
    São olhos muito lusos, fruto de muita mistura, que, felizmente, saíu muito interessante.
    Gosto muito desta fotografia, pelas mesmas razões que expuseste no blog, e porque me fazem lembrar gente já desaparecida, e por quem sentia afinidade
    Manel

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  6. Manel

    Só depois de ter escrito deste post me lembrei que a fotografia foi tirada em 1918 e a que Maria Esteves está de cores escuras. Hoje habituámo-nos tanto a vestir o preto, que nem damos conta que é uma cor de luto.

    Será que Maria Joaquina Esteves não estará de luto por ter perdido o marido na grande guerra?

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    1. Creio que está muito bem observado, pois a tristeza patente nos olhos da senhora é profunda, sintoma plausível de um luto por um marido perdido na grande guerra, onde tantos e tantos portugueses pereceram.
      E o negro na altura era uma cor que nada teria a ver com modas punk ou gótica, era um cor sentida e levada a rigor.
      A minha mãe, que nasceu pouco depois de ter sido tirada esta fotografia, recusava completamente usar o negro, por ser uma cor sinónimo de grande tragédia ou tristeza por morte na família.
      Assim, a tua hipótese é muito plausível, e não me tinha ocorrido anteriormente
      Manel

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  7. Luís
    A Maria Esteves para além da evidente beleza tem um porte muito elegante, uma elegância contida, que dispensava grandes atavios. Repare-se nos brincos discretos.
    Abraços

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    1. Tem razão Maria Paula.

      foram essas características que enunciou e os olhos dela que me atrairam.

      O preto, julgo que estaria de luto, confere sempre elegância.

      Por outro lado, foi muito giro, que por causa desta senhora, consegui perceber quais eram os laços familares com estes Esteves.

      um abraço

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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  9. Amigo Luís,
    Já não é preciso acrescentar nada sobre o porte bonito desta senhora, provavelmente viúva.
    Mas também podia estar enlutada por pai, filho ou irmão e ter tirado esta foto para enviar a um marido ausente... pura especulação.
    Também gostei muito da foto das três crianças. :)
    O que eu gostaria de salientar é o trabalho meritório que o Luís está a fazer ao reunir e tentar catalogar este pequeno(?) acervo fotográfico que tantas histórias pode contar, como se viu neste post. Adorei acompanhar o método que seguiu para a identificação ou estabelecimento do grau de parentesco com a sua família mais próxima.
    Quem dera que outras famílias valorizassem e disponibilizassem as fotos que têm guardadas, identificando primeiro os retratados! Seria um belíssimo contributo para a história local e social das pequenas ou grandes comunidades.
    Beijos

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  10. Maria Andrade

    Muito obrigado.

    Esta identificação das personagens por associação de imagens é muito engraçada. Depois há também o trabalho de juntar numa manta de retalhos as várias recordações, que as pessoas da família ainda mantiveram. Ontem através do telefone com a minha irmã, consegui identificar mais uma desconhecida no album, uma tal Alice Garcia, fotografada em 1902, que era a matriarca de uma família que manteve uma relação de amizade com a minha família, pelos vistos por mais de 100 anos. Ainda hoje quando vou a Vinhais falo muito bem aos seus bisnetos e a minha mãe era muito amiga das netas. Uma dessas netas era precisamente a Alice Garcia e foi a partir daí que identificámos a senhora da fotografia de 1902. A Menina ficou certamente com o nome da avó.

    Também estas amizades centenárias, estas cumplicidades, que passam de pais para filhos, só eram possíveis em meios muito pequenos, como Vinhais.

    Este fenómeno sociológico de amizades entre famílias que duram cerca de 100 anos é novo para mim.

    Beijos e obrigado

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  11. Gostei particularmente desta postagem, adoro fotografias antigas é quase como se nos tocassem a alma com os seus olhares, sempre tive imensa curiosidade a relaçao entre a fotografia e o estatuto social continue luis por favor, cumprimentos.
    Rita

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    1. Cara Rita

      Também penso como a Rita. Parece que os olhos delas nos tocam e depois, o mistério que encerram em si tornam-nas fascinantes. Queremos saber mais sobre estas pessoas, quem foram, o que pensaram e as mais das vezes, o máximo que conseguimos saber são as datas de nascimento, casamento e morte. O resto temos que adivinhar ou recriar através de pequenos sinais, como as jóias, as roupas, os cenários e juntar esses dados com uma memória, que ainda subsistiu dessas pessoas nos que ainda estão vivos

      Abraços e volte sempre ao meu blog

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  12. Olá Luís!
    realmente a senhora era muito bonita e penso que, dada a rigidez dos códigos sociais da época, estaria de luto: se não foi por morte de algum parente masculino na grande guerra, poderia ser por qualquer um familiar vitimado pela gripe espanhola (se não for por uma razão comum, se quisermos enquadrar a história da família nos acontecimentos da época, muito ao modo dos romances históricos que adoro!).
    Gostei muito do post e dos comentários suscitados. Este recuperar da memória familiar parece-me importante, numa sociedade cada vez mais monoparental, em que a maioria dos miúdos na escola nem sabem os nomes dos 2 avôs e 2 avós. E o mais fantástico é que até a internet facilita essa mesma preservação, desde sites para elaborar albuns digitais - já fiz vários, com todas as fotos familiares por ordem cronológica, para distribuir no Natal - a sites para construir a árvore geneológica.
    Bjs, Luísa

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  13. Luisa

    A gripe espanhola é uma boa hipótese. A primeira vaga de gripe espanhola terminou em Agosto de 1918 e esta "carte de visite" é de Setembro de 1918.

    Cara Luisa, nem estava à espera que as pessoas gostassem deste post. Afinal de contas só escrevi sobre assuntos que importam à minha família. No entanto, quando passamos nas feiras de velharias e vemos fotografias antigas de estranhos à venda, sentimos o mesmo fascínio por essa gente morta há muito, que sentimos pelas pessoas da nossa família. E depois fazer a história destas personagens anónimas é também fazer um pouco a história da sociedade portuguesa.

    Prometo voltar as fotografias

    Beijos

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  14. A titulo de curiosidade,o luis por acaso conhece algum caso da sua familia que possuia o album dos mortos - "Post Mortem" ? sempre me fez imensa confusao e curiosidade,penso que seria um bom tema a abordar..
    Voltarei certamente, cumprimentos
    Rita

    Ps: caso não conheça aqui fica um link - http://www.alemdaimaginacao.com/Fotos%20do%20Alem/fotos_post_mortem.html

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  15. Cara Rita

    De facto esse costume também era vulgar em Portugal, pelo menos nos anos 30. Já publiquei duas dessas fotos em: http://velhariasdoluis.blogspot.pt/2012/02/o-leque-da-pequena-candida-1919-1929.html

    http://velhariasdoluis.blogspot.pt/2010/03/pequenos-anjos.html

    Não apresentam a encenação tão complicada das fotografias do link que indicou, mas em todo o caso há uma mise-en-scéne.

    julgo que estas fotografias eram feitas para os familiares ficarem com uma recordação da criança morta. As fotografias eram caras, os filhos eram muitos e muitas vezes só a criança era pela primeira vez fotografada depois da sua morte.

    Bjos

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  16. Adorei o seu blogue. Sou descendente pela parte materna de Esteves e Fernandes de Vinhais (quem sabe se não temos parentes comuns...) e gostei imensos das fotografias e da forma como apresentou os seus familiares. Obrigada pela partilha!

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  17. Cara Miquinhas

    É curioso. Miquinhas era um diminuitivo muito comum na família da minha mãe. Provavelmente seremos até parentes. Neste post devia ter publicado um esboço de árvore genealógica da ligação dos Esteves aos Ferreira, mas informaticamente dá algum trabalho fazer uma imagem com uma genealogia. No entanto, tentarei fazer esse esboço de árvore e prometo voltar a este assunto das velhas fotografias familiares. Quem sabe se não encontrará nessas fotografias uma bisavó sua.

    Abraços

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    1. Miquinhas era o nome pelo qual a minha avó paterna era conhecida, e como ela tinha uma mercearia na Calçada da Serra em Gaia, decidi prestar-lhe uma singela homenagem, dando este nome ao meu blogue. O meu nome é Isabel e na minha árvore genealógica do ramo de Vinhais, já consegui chegar ao início do século XVIII. Quem sabe se de facto não nos conseguiremos cruzar neste ramo dos Esteves e Fernandes. Como nomes de família em Vinhais ainda possuo os Lopes da Silva, os Afonso e Rodrigues. Tive muito gosto em descobrir este blogue, pois como adoro tudo o que está relacionado com o passado, tradições e história do nosso país, encontrei aqui um pouco de tudo isso, escrito com grande qualidade e rigor!

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  18. Cara Isabel (Miquinhas)

    Mal tiver o meu pc em casa a funcionar, passarei a acompanhar estes textos de esboços de árvores genealógicas, de forma a que os Vinhaenses possam descobrir parentescos ou ligações com as pessoas sobre as quais escrevo.

    Do conjunto de fotografias antigas que tenho há imensas personagens dos finais do XIX, inícios do XX e talvez algumas delas sejam bisavós ou trisavós de pessoas que aqui venham.

    Um abraço

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