Naquela feira de alfarrabistas do Chiado comprei esta estampa de um delirante estilo rococó, representando um episódio da vida de Sto. Agostinho. Como de costume, parti à procura de mais dados sobre esta gravura, pesquisando no google usando dois termos associados: uma palavra extraída da legenda, S. Augustini e Klauber Cath, a assinatura do que me pareceu o impressor. Rapidamente descobri, que esta estampa saiu de uma oficina de impressores alemã, que foi das mais activas de toda a Europa ao longo do Século XVIII. Esta oficina da cidade de Augsburg pertencia à família Klauber, uma dinastia de impressores, que ao longo de três gerações se especializou na produção de registos e ilustrações de carácter religioso.
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O frontispício da Vita Sancti Augustini Doctoris eximii in aere Universo orbi / exhibita a P. T. Z. A. - [Augustae Vindelicorum] : [in verlag Ios. und Ioan[n]. Klauber], 1758 |
Fiz mais umas pesquisas aqui e acolá e descobri que a minha gravurazinha fazia parte de obra intitulada, Vita Sancti Augustini Doctoris eximii in aere Universo orbi / exhibita a P.
T. Z. A, impressa em Augustae Vindelicorum, o nome latino para a Augsburgo, por Johann Baptis Klauber, em 1758. Segundo percebi na Biblioteca Nacional de Espanha, onde encontrei o registo catalográfico, esta Vita Sancti Augustini Doctoris não era propriamente um livro, mas antes um álbum de estampas, acompanhadas por algum texto em latim, descrevendo os principais episódios da Vida de Santo Agostinho de Hipona (354-430).
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A
cena que observamos na minha gravura mostra Sto. Agostinho recebendo o hábito das mãos de Santo Ambrósio, enquanto do lado esquerdo é observado por Santa Mónica, sua mãe e ainda pelo seu filho, Adeodato. Com efeito, Agostinho de Hipona antes se ter decidido pelo celibato e pela vida religiosa, manteve uma ligação com uma mulher durante 14 anos da qual teve um filho, Adeodato. Agostinho de Hipona é um homem que se decide pelo Cristianismo já tarde, com cerca de 32 anos.
Esta cena não é propriamente um episódio histórico, pois embora S. Ambrósio tenha sido o responsável, pelo baptismo de Agostinho, este não se encontrava com Agostinho, quando alguns anos mais tarde se tornou eclesiático e fundou o primeiro mosteiro em Hipona, uma antiga cidade do Norte de África, perto de Tunis, a actual capital da Tunísia. No fundo, a gravura quererá representar que foi sobre dos ensinamentos espirituais de Santo Ambrósio, que Santo Agostinho tomou o hábito religioso e fundou uma comunidade monástica. Mas, a importância daquele Santo de Hipona não foi só a fundação de uma comunidade monástica. Sto. Agostinho foi também o primeiro a escrever uma regra, ou seja um conjunto de normas, sobre a qual a uma comunidade religiosa deveria viver. Ele é por assim, dizer, juntamente com São Bento de Núrsia, um dos pais do monaquismo ocidental.
Naturalmente a importância de Santo Agostinho na história vai muito para além de ter esboçado a primeira regra monástica. Foi antes de tudo um pensador, que fez a síntese entre a filosofia grega e o judeio-cristianismo das Escrituras.
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Outra estampa do ciclo Vita Sancti Augustini Doctoris eximii in aere Universo orbi.
Santo Agostinho fez a síntese
entre a filosofia grega e o judeio-cristianismo das Escrituras |
Fiquei então muito contente por ter identificado a obra de onde foi extraída a minha estampa, Vita Sancti Augustini Doctoris eximii in aere Universo orbi, o nome dos seus gravadores Johann Baptist Klauber (1712-1787?) e Joseph Sebastian Klauber (1700?-1768) e ainda por ter encontrado uma explicação sobre a iconografia da estampa.
Fiz depois algumas investigações sobre o autor do desenho um tal Johann Anwander (1715-1770), um pintor alemão, rococó, célebre pelas suas pinturas a fresco em tectos de igrejas, cheias de complicados efeitos cenográficos, mas ao mesmo tempo graciosos e que os conseguiu reproduzir também no papel, como nestas estampas sobre a vida de Sto. Agostinho.
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Um fresco da autoria Johann Anwander |
Tinha ficado com as minhas investigações sobre esta gravura por aqui, quando por acaso me passou pelas mãos uma livrinho de Marie-Thérèse Mandroux-França Information artistique et «mass-media» au XVIIIe siècle : la diffusion de l'ornement gravé rococo au Portugal - Braga : [s.n.], 1974, que me ajudou a entender como é que uma gravurazinha alemã de Augsburgo veio parar em Portugal.
Augsburgo foi durante todo o século XVIII um centro de edição particularmente activo. Os seus impressores copiaram os tratados de arquitectura e de desenho de ornato franceses, que continham os novos modelos do estilo rococó, e difundiram-nos por toda Alemanha através de estampas contra faccionadas. O que eram modelos imaginários nos manuais franceses, tornaram-se edifícios concretos no Sul da Alemanha e e a assimetria, a curva e a contra curva foram exploradas até às últimas consequências, criando um barroco, absolutamente delirante.
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Gravura da Biblioteca Nacional de Portugal. As estampas impressas em
Augusburgo foram veículos privilegiados para os arquitectos e entalhadores portugueses tomarem conhecimento das formas rococó |
Em meados do século XVIII, em Augusburgo já se tinha desenvolvido uma verdadeira indústria de estampas rocaille, que traduziam e reflectiam a arquitectura das igrejas de peregrinação da Baviera. Essas gravuras eram na sua maioria registos ou imagens de livros religiosos, que eram depois vendidas em grandes quantidades para toda a Europa, inclusive para Portugal. Marie-Thérèse Mandroux-França descobriu centenas dessas estampas de Augsburgo, nas bibliotecas e arquivos portugueses, muitas provenientes de antigas livrarias conventuais, como da Abadia beneditina de Tibães e pensa mesmo, que foi através delas que arquitectos como André Soares ou escultores como Frei José António Vilaça (1731-1809) tomaram contacto com o estilo rocaille, que depois aplicaram em obras emblemáticas portuguesas, como o Mosteiro de Tibães.
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Detalhe de Tibães. Talha de André Soares |
Mas, segundo Marie-Thérèse Mandroux-França as estampas dos impressores de Augusburgo não influenciaram só os arquitectos e entalhadores portugueses. Serviram também de modelo aos gravadores de registos de santos em Portugal, que ignorando as complicações espaciais e de pespectiva dos gravadores alemães, copiaram as molduras rocailles, que enquadram os santinhos, nas quais parecem às vezes deslocados. A influência dos registos alemães não se fez só sentir na gravura como se estendeu também aos registos de azulejos.
Concluídas estas pequenas investigações, a minha estampa ganhou um novo significado. Foi uma das muitas imagens provenientes de Augusburgo, que serviram de modelo para a difusão do estilo rococó em Portugal. Só fiquei com pena de não ter comprado as restantes estampas que por lá ficaram.