Esta original pagela, que se desdobra em várias partes, foi impressa em França, nos finais do século XIX, ou nos inícios do Século XX e faz parte daquilo que se designa em França pelo estilo saint-sulpicien.
Conforme se pode ler no rodapé, o registo foi editado pela antiga casa C. Letaille, certamente depois de 1876, pois nesse ano Charles Letaille associou ao seu negócio o genro, Boumard. Portanto, se aqui diz Boumard et Fils, presumimos que já tivessem passado uns bons vinte anos do casamento do Sr. Boumard e a estampa por conseguinte deve ter sido impressa logo nos primeiros anos do Século XX.
A pagela antes de ser aberta |
Este Charles Letaille e o seu genro Boumard, juntamente com Bouasse Jeune, Bouasse Lebel e Turgis faziam parte de um conjunto de impressores, livreiros e comerciantes de artigos religiosos, que no século XIX, se agrupavam em Paris, nas cercanias da Igreja de Saint-Sulpice. Estes impressores produziam estampas devotas em grandes quantidades, sem grande qualidade artística e a baixo preço, que vendiam para todo o mundo católico, inclusive para as Américas. Esta imaginária religiosa de gosto duvidoso tomou em França o nome de estilo saint-sulpicien, que designa não só estes santinhos em papel, como as imagens de gesso ou madeira de Santa Teresinha de Lisieux, a Virgem de Lourdes, ou os Sagrados Corações de Maria e Jesus, pintados em tons rosa bombom e azul celeste e ainda todo tipo de bugigangas religiosas, como terços, medalhinhas benzidas, etc.
No entanto, apesar desse gosto algo duvidoso, que as pagelas saint-sulpicianas denotam é difícil resistir ao seu encanto sobretudo quando estas se abrem como armários secretos, protegidas pelos seus batentes, contendo por dentro outras imagens ainda. Eram pequenos tesouros, guardados com desvelo pelas nossas avós ou bisavós dentro dos seus missais e que apesar da fragilidade dos materiais, conseguiram chegar até aos nossos dias num estado impecável.
Se é bem verdade que estas imagens são esteticamente medíocres, elas são afectivamente belas, pois constituem um testemunho de um ideal, de um paraíso perdido. As pagelas com os rendilhados e os santinhos evocam um exílio, o nosso exílio do mundo da infância, do tempo do catecismo, em que a fé e o cristianismo proporcionavam uma segurança e certezas, que hoje perdemos de todo.
Fontes consultadas:
http://www.bm-lyon.fr/expo/virtuelles/chomarat/expo.htm
http://culture-et-debats.over-blog.com/article-877151.html
http://collezionaresantini.blogspot.pt/
http://fr.wikipedia.org/wiki/Style_sulpicien
Gostei muito.
ResponderEliminarMargarida
EliminarMuito obrigado. Um abraço para si
Luís
ResponderEliminarMais uma imagem curiosa. Nunca tinha visto em formato desdobrável. Fui ver os links que mencionou. Têm informações preciosas para quem, como nós se interessa por este tipo de ilustrações.
Um abraço
if
Cara If
EliminarTambém achei uma graça a este formato desdobrável e de facto estes links apresentam muitas informações sobre os impressores franceses de pagelas.
Um abraço
O facto de se guardarem entre as folhas de livros religiosos fez com que se mantivessem em bom estado, tanto mais que esses livros eram de uso regulado e consciencioso.
ResponderEliminarImagina tu se acaso fossem parar entre as folhas do "Justine" do Marquês de Sade? Hummmm ... tento imaginar o resultado, debalde! :-)
O gosto destas pagelas é realmente muito duvidoso. São o testemunho de uma época e representam os ideais religiosos de uma geração, no entanto não me "comovem" nem me fazem querer possuir um exemplar.
Lembram-se as "prendinhas" que os religiosos que infestavam o colégio onde estudava em miúdo, se trocavam entre si, ou, pior ainda, nos colocavam nas mãos como prémio (!!!!) por termos tido boas notas.
Ficava sempre com vontade de tê-las más ... não fora a ira dos meus pais quando chegasse a casa!
Não que tivesse algo contra aqueles religiosos, dos quais não guardo más memórias, pelo contrário, mas pela "pinderiquice" do prémio ... eu gostaria que me oferecessem um livro, por exemplo (como aliás me ofereceram mais tarde, devo repor a verdade, face ao repúdio que fiz notar sentir por mais um "santinho" oferecido! Até nisso aqueles religiosos mostraram ser pessoas com boa formação e grande "poder de encaixe" face à minha mostra de desagrado, ao alterarem a sua forma de premiarem o bom aproveitamento que, na altura, conseguia ter).
Os "santinhos" nem faço ideia o que lhes terá acontecido (devem ter sido varridos porta fora, se acaso tivessem aportado a casa dos meus pais, ou então discretamente rasgados em pedacinhos minúsculos - eu julgava que assim passariam despercebidos - e atirados para o próximo caixote do lixo junto da cama), no entanto os livros, por milagre, ainda hoje os mantenho.
Manel
Manel
EliminarCom efeito, entre outras utilidades muitas destas pagelas serviam para oferecer aos alunos bem comportados e com bons resultados.
Num dos links que consultei para redigir este texto,
http://culture-et-debats.over-blog.com/article-877151.html, o autor explora os aspectos sexuais subjacentes a estas pagelas algo piegas. Acredita que algumas destas imagens são mesmo lascivas ou equívocas. Os anjos são pedófilos e os Cristos ambíguos. Assim sendo, se um destes registos fosse usado para marcar a página de uma obra licenciosa, talvez o efeito fosse até excitante para quem o aí o encontrasse.
Eu já não sou do tempo em que se recebiam santinhos como prémio de um bom rendimento escolar. Talvez por isso, olhe sempre para esta pagelas devotas com a nostalgia de quem há muito se exilou do mundo do catolicismo.
Um abraço
Este registo é mesmo um objeto extraordinário! Não conhecia nada assim, com todas estas partes desdobráveis, ao jeito dos trípticos em madeira, mas com mais duas meias folhas, pelo que percebi. É efetivamente espantoso como ele se manteve em tão bom estado por cerca de um século, só dentro de um livro, claro...
ResponderEliminarSó conhecia exemplares singelos com rendilhados e guardo alguns desde a infância. Trocavam-se entre amigos na altura da comunhão solene ou então recebiam-se por bom comportamento, mas na catequese, não no ensino regular, já que nunca frequentei colégios religiosos.
Fiquei a saber num dos links que aqui deixou que há grandes colecionadores destes “santinhos” e que alguns atingem preços muito elevados. O Luís deve ter feito um bom investimento! : )
Parabéns pela descoberta e obrigada por a trazer até nós.
Beijos
Maria Andrade
ResponderEliminarEsta pagela vai abrindo-se sucessivamente em várias imagens e deve ser sido um tesouro muito estimado por alguém da minha família materna. Talvez tenha sido uma oferta por ocasião de alguma comunhão solene, imagino que a da minha avó Adelaide, mulher ainda nascida no século XIX. Eu como sou cusca, ando sempre a abrir os livros de devoções (que há mais de 5 décadas ninguém folheia) resgatando estes pequenos tesouros do esquecimento.
Bjos
Caro Luís,
ResponderEliminarTal como até agora tem acontecido com aqueles que já comentaram este seu post, também eu nunca havia visto este tipo de registo em tríptico.
Contrariamente ao seu amigo Manel, não tenho uma ideia assim tão negativa destas imagens. Apesar de, e tal como ele, não me comover com beatices de meia tigela, podendo mesmo apelidar-me de ímpia, não consigo resistir a esses pequeninos pedaços de papel, coloridos ou a branco e preto, com rendilhados ou dourados.
E, é curioso que, o Manel remeteu-me para uma outra área da qual também gosto muito que são os chamados Prémios de Mérito (Rewards of Merit). Estes tiveram na época victoriana o seu auge, existindo exemplares belíssimos, nos quais eram escritos os nomes do aluno/a, bem como o do Professor/a que atribuía o louvor, e em alguns casos a data respectiva.
Seja como for, julgo que na altura em que o Manel estudou,existia toda uma cultura arreigada aos religiosos, os quais gostavam de presentear os meninos/as bem comportados/as com essas figurinhas de santinhos. Digo isto, porque o meu pai me deu uma serie delas que lhe haviam sido dadas por freiras aquando das idas à catequese, e do seu internamento para fazer operação à apêndice (as enfermeiras eram freiras) Tudo isto se passou nos idos de 40 e troca o passo, e o meu pai era menino com 10/12 anitos.
E pronto vou acabar por aqui esta missiva,senão os assuntos começam a entroncar-se e não saímos daqui...
Beijo
Alexandra Roldão
Alexandra
ResponderEliminarO encanto destes pequenos objectos é remeterem-nos para períodos do passado. Estuda-los ainda que superficialmente, transforma-nos a todos por um momento apenas em historiadores dos costumes e das mentalidades.
Estas imagens piedosas são um testemunho muito revelador da religiosidade católica do início do século.
Bjos
Gostei de ler, nunca tinha visto em triptíco.
ResponderEliminarQuanto ao gosto estético é de sabor popular. Registam a religiosidade sentida e o afecto e o imaginário na relação com Deus.
Abraço, Luís e um Natal feliz!
Ana
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu comentário e um feliz Natal também para si
Um abraço
Caro Luís
ResponderEliminarNada mais posso acrescentar ao que já foi dito, nem sequer que os santinhos também fizeram parte da minha infância pelos mesmos motivos já apresentados pelos outros comentadores, pois, também isto, já lhe disse num dos posts que dedicou a estas imagens.Mesmo assim, não quero deixar de dizer que nunca tinha visto nenhuma pagela desdobrável.Admirável como chegou intacta aos nossos dias!
Resta-me desejar-lhe um feliz Natal e um novo ano cheio de felicidades.
Maria Paula
EliminarTenho uma grande atracção por estas imagens piedosas e cada vez que apresento uma peça nova, torna-se um pretexto para alinhavar mais uns conhecimentos, que fui adquirindo aqui e ali.
A sua presença tranquila neste blog é sempre um prazer.
Bjos e um bom Natal para si e os seus
O Luís,já nos habituou a estas investigações tão cuidadas acerca de objectos que fizeram parte do nosso passado.Também fui coleccionadora de santinhos,alguns centenários,que acabei por distribuir pelos meninos e meninas que eram meus alunos,quando deixei o ensino.Na altura eram as prendas que se trocavam.Bons tempos em que as pessoas se contentavam com tão pouco.Um Natal muito feliz para si,sua família e todos os comentadores que tiveram a sorte de encontrar estes posts,deste grupo magnífico de pessoas.Cumprimentos ,Graciete
ResponderEliminarGraciete
EliminarMuito obrigado por palavras tão simpáticas. Com efeito, os comentadores deste blog são responsáveis pela sua qualidade. Acrescentam dados novos, fazem reparos a algumas incorrecções e estimulam-me a procurar mais informações sobre os temas, redigindo outros posts, com novos desenvolvimentos sobre faianças, estampas religiosas, porcelana ou outro assunto qualquer. No fundo, criou-se aqui uma salutar e descontraída tertúlia virtual.
Um abraço e bom Natal
Luís se me permite deixo aqui os meus votos de Boas Festas para o Manuel com o desejo de um Feliz Ano Novo.:))
ResponderEliminarFeliz Natal e um esplendoroso Ano Novo, Luís.
Ana
EliminarMuito obrigado e um feliz Natal também para si!!!!!!
Bjos
Olá, Luís
ResponderEliminarCuriosamente, possuo um "santinho" idêntico a este teu, e mais uns dois ou três no mesmo estilo. Tanto o "guilloché" das gravuras quanto os rendilhados são admiráveis, não obstante o mau gosto de certos temas. O universo estético saint-sulpiciano atingiu em cheio a produção de imaginária sacra dos tradicionais atelieres portugueses do último quartel do século XIX, que abandonaram principalmente os padrões policrômicos sobreviventes do Barroco para adotar os suaves tons de azul e rosa, com a infame orla de relevos dourados e pedrarias baratas, que acabaram por caracterizar a produção portuguesa, estendendo-se ao Brasil. Peças antigas houve que foram reestofadas ao novo gosto, como um caso que eu descobri, de uma imagem da Senhora da Luz esculpida no Porto em 1824 e venerada originalmente em uma ermida no então arrabalde da minha cidade, Pelotas, aqui no extremo Sul do Brasil. Graças a um velho registo em aquarela, pude constatar que a policromia original era totalmente outra, e que, ao ser demolida a ermida para construir-se a segunda igreja, na viragem do século XIX para o XX (também posteriormente demolida para dar lugar a uma horrenda igreja moderna), a Virgem foi "renovada" ao gosto da época. Como sempre, me enriqueço na leitura do blog.
Grande abraço.
Jonas
Caro Jonas
EliminarGostei imenso do teu comentário.
As pagelas deste universo estético saint-sulpiciano ainda são suportáveis. Talvez porque sejam muito pequenas e não ambicionem a serem obras de arte. E depois são aqueles objectos que não valendo nada, feitos em papel, são ao mesmo tempo pequenos tesouros e testemunhos de um tempo passado em que a crença em Deus e nos Santos dava segurança às pessoas.
Em Portugal nos séculos XVII e XVIII existiu uma belíssima tradição de escultura sacra. Já a escultura religiosa dos finais do XIX é francamente insuportável e então quando chega ao século XX derrapa completamente para o pior dos gostos. Também é um período burguês em que a religião se torna piegas e o mau gosto invade a arte sacra, desde a escultura, até a arquitectura.
Muito obrigado pelas tuas palavras. Um grande abraço