sábado, 11 de outubro de 2014

Frascos de um antigo estojo de viagem

Quando me casei, a minha mãe deu-me uns antigos frascos de vidro facetado com tampas em prata. Como alguns deles eram perfurados na tampa, na altura convenci-me que seriam um conjunto qualquer de pimenteiro e saleiro, uma espécie de especieiro, enfim, nem pensei muito no assunto e coloquei-os a uso. Entretanto uma mulher a dias cavalona partiu um e a minha ex-mulher também deu conta de outro e resolvi em boa altura retira-los de uso.

Só muitos anos mais tarde me apercebi da função original destes frascos, já não sei se durante a visita a algum museu ou a folhear um catálogo de leilões.  Na realidade, estes frasquinhos com tampas em prata eram os restos do conteúdo de um antigo estojo de viagem, provavelmente destinado a um cavalheiro janota.
Estojo de toilette do séc. XIX. Cabral Moncada Leilões
Estes estojos de viagem começaram a ser usados no no século XVIII, por uma elite, a nobreza, sobretudo por homens e eram feitos em materiais de grande qualidade, com madeiras exóticas, como pau-santo e eram organizados em compartimentos, que continham toda uma série de frascos e frasquinhos, destinados a unguentos, loções, perfumes, pó-dentífrico e ainda toda uma panóplia de produtos para o cabelo e a barba, para o tratamento das unhas e onde não faltava um sequer um espelho. Podiam também conter compartimentos secretos e por vezes, uma caixa com instrumentos destinados à escrita. Como o próprio nome indica estes estojos de viagens eram para ser transportados, e para evitar que as coisas se quebrassem ou se entornassem, os recipientes estavam normalmente presos por fitas ou encaixados numa estrutura desenhada à medida de cada frasquinho ou instrumento.

No século XIX, com a construção generalizada de redes de caminho-de-ferro por toda a Europa, o hábito de viajar tornou-se muito mais frequente e e estes estojos passaram a ser usados não só pela nobreza, mas também por uma burguesia abastada. Neste século as mulheres passaram a igualmente a viajar e os estojos que lhes eram destinados, tornaram-se absolutamente luxuosos e complicados, autênticos "Vanity Boxes", numa expressão feliz, dada pelos ingleses. Ainda nos hoje, nos espantamos com o preciosismo e riqueza destes estojos destinados a estas damas do passado.
http://www.antiquebox.org/history-of-dressing-cases-and-vanity-boxes/
Os frascos que tenho, são mais simples e creio que pertenceram ao estojo de um cavalheiro. Talvez datem dos finais do séc. XIX ou ainda primeira metade do XX. Tenho a ideia de depois da II Guerra Mundial estes luxos acabam progressivamente. Claro, o Hermés em Paris ainda deve fabricar estes estojos e vende-los a milionários chineses, sheiks árabes e as estrelas de rock, mas são peças de excepção.

Estes frasquinhos não tem grande valor. Não passam de restos de um desses estojos de luxo, mas quantas vezes do passado herdamos apenas fragmentos. O tempo encarrega-se sempre de apagar quase tudo.

Alguns links consultados: 



17 comentários:

  1. lindos frascos. adorei a expressão mulheres a dias e cavalona. kkkkk. aqui é diarista e abrutalhada. elas quebram tudo. felizmente estou com uma diarista ótima, mas recentemente percebi a campanhia do meu telefone verde da década de 70 quebrada, no chão. ódio!!! reclamei, mas n adianta...ainda bem que a sua cavalona não jogou a tampa de prata fora! abraços, luís!

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    1. Jorge

      A expressão mulher-a-dias também vai caindo em desuso por aqui. O termo politicamente mais correcto é empregada.

      É difícil arranjar empregadas cuidadosas. Agora não tenho nenhuma, mas quando estava casado tivemos uma série delas que nos partiram umas quantas coisas e depois diziam sempre "partiu-se", como se a chávena por um fenómeno físico estranho qualquer, se tivesse estilhaçado por si só, em mil pedaços.

      Um abraço e obrigado

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  2. Luis,

    Perdão por demorar fazer uma visita e também por comentar tudo aqui, meio improvisado:
    - Parabéns pelo Velharias, ele é de grande inspiração.
    - Disse que voltaria ao anjo e ainda não fui...
    - Essas travessas inglesas (que não gostava muito) estão sendo uma tentação para mim. Cada vez mais as considero um objeto de Arte para atrair nosso olhar e toda atenção. Não entendi bem quando Você disse que perdeu a cabeça por esta última a um preço aceitável...
    São lindas e esta é especial pela fama da marca. Acho que Você estava com a cabeça em seu perfeito lugar: no que é belo de se ver e se ter. Ainda não tenho umazinha sequer (dessas azuis, violetas... estátuas, lagos...). Mas tenho algumas outras, que vou postar.
    - Sua casa é sim um templo e um palácio. Então aí Você é rei e sacerdote.
    - Sobre os fragmentos da vida que vão sobrando (e juntados por quem os valoriza) e tudo mais que o tempo vai devorando, como Você disse:
    Quando Você fazia esta postagem eu aqui vazia de uma gravura, que achei legal por ser da Deusa mãe de Júpiter, Opis, que o livrou de Cronos, seu pai que a todo filho devorava. Na Mitologia antiga havia esta exceção ao furor do Tempo. Em nossa Fé também, algo escapa da destruição absoluta. Talvez por isso vamos juntando cacos, de histórias e de vidas...
    Um dia desses entrei numa fazenda abandonada dos anos 20, já de tijolos e ladrilho hidráulico, com papel de parede e pinturas no grande salão principal: aves, uvas, crianças e anjos e murais imitando azulejos antigos; cada quarto (muitos) de uma cor, pintado a stencil (estrelas, raios, e um muito belo florido de verde e rosa). No quintal figueiras retorcidas junto a fontes de alvenaria, agora secas, que se juntavam a pedras e relevos naturais pelos fundos da casa. Nas varandas, pintura de parede que acompanhava a paisagem natural de montanhas (só que na pintura o vale foi aplainado por um grande lago). Tudo ruindo. Lembrei da Casa dos Mantolvão, sua família e de muitas mais. Como chegam a ficar assim? Mas enquanto houver beleza e Arte nesta vida haverá quem cuide, remenda ou lamente sua perda.
    Mas vamos concluir de um modo mais positivo: estes cacos, fragmentos e peças velhas, no olhar e no coração dos que os juntam e guardam, são inteiras alegrias e elo de ligação de muitas vidas.
    Um abração e parabéns pelos 5 aninhos.
    ab

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    1. Amarildo

      Muito obrigado pelos seus parabéns.

      Foi uma pena não ter fotografado as ruínas dessa casa abandonada. Eu encontro sempre tanta poesia nesses sítios condenados pelo tempo.

      A loiça inglesa do século XIX é muito bonita e sempre de uma qualidade excelente. Por cá é relativamente fácil compra-la por bons preços. Perdi a cabeça, porque a travessa é demasiado grande e vou-me ver aflito para encaixa-la em casa. Mas, as nossas compras são muitas vezes ditadas por um sentimentalismo que escapa à razão. Somos coleccionadores de memórias, de restos do passado.

      Um abraço

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  3. Luís
    Os seus frascos, parte do conjunto de um estojo de viagem são elegantes e merecem estar em exposição no museu que é a sua casa.
    Trouxe-me recordações felizes, pois o meu Pai, por razões profissionais, viajava muito. Tinha, precisamente, um estojo em couro (a que nós chamávamos da barba) com muitas divisórias e frascos facetados, com dimensões aceitáveis para viajar dentro da mala. Não tinha a sofisticação daqueles que nos mostra, mas era sóbrio e, sobretudo, quando pousado sobre uma das prateleiras da casa de banho, lembrava a figura do Pai, presença forte, que nos transmitia a segurança de que precisávamos.
    Um abraço
    if

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    1. Ivete

      Não faço a menor ideia como seria o estojo que albergava estes frasquinhos. Talvez fosse mais parecido com o do leilão do Cabral Moncada, mas não sei. A imagem do http://www.antiquebox.org foi escolhida para dar uma ideia do luxo que estes estojos de viagem atingiram.

      Em todo o caso, os frasquinhos só por si são feitos num vidro muito delicado e as tampas em prata dão-lhes muito charme.

      um abraço

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  4. Caro Luís,
    Como eu gostaria de ter esses frasquinhos.
    Fizeram-me recordar uma caixinha e espelho em prata que foram da minha avó paterna. Qualquer uma delas ornamentada com rosinhas. Infelizmente não ficaram para mim.
    Desde pequenina que os frascos e caixinhas me fascinam. Adoraria poder adquirir um daqueles conjuntos de toucador em prata, com espelho, escova, pente em marfim e respectiva caixinha de jóias. Mas o dinheiro não abunda...
    Os seus frasquinhos têm um charme irresistível. Pena foi que, à época, não tivesse questionado a sua mãe acerca da sua origem. No entanto, não sei porquê, tenho um feeling que talvez o seu pai se lembre da sua proveniência.
    Faço votos para que não apareçam mais "cavalonas" em sua casa...
    Curiosamente, na terra dos meus pais e avós -Sardoal - o termo cavalona aplica-se às mulheres muito altas, ou às moscas muito grandes ;), julgo que, e no que às moscas diz respeito, terá a ver com o facto deste insecto importunar o gado cavalar, já quanto às mulheres não consigo arranjar explicação tão óbvia..talvez porque os cavalos são animais de grande porte..
    Olhe, sabe que mais? Vou-me calar, porque os seus frascos é que são uma beleza!!

    Beijinho

    Alexandra Roldão


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    1. Alexandra

      Tenho que questionar o meu pai sobre a origem destes frasquinhos, até porque em sua casa ainda ficou um, mas não pode ser por telefone, terá que ser quando lá for novamente.

      Usei aqui cavalona como poderia ter usado a expressão um elefante numa loja de loiças. Enfim, um e outro animal não podem entrar em lojas de loiças sem partirem tudo à sua volta.

      Bjos

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  5. Luís,
    Também não sou nada indiferente a frasquinhos de toilette, masculina ou feminina, e escusado será dizer que, há tantos anos a gostar de objetos do passado, já me deixei seduzir por alguns frasquinhos destes, para estojo de cavalheiros. Aprecio sobretudo os mais altos, que acho muito elegantes assim vazios, mas julgo que originalmente se destinavam a guardar a prosaica escova de dentes. As tampinhas em prata acrescentam sempre ao charme de cada um deles.
    Claro que por aqui também já houve "baixas", mas acho quase inevitável em casas cheias de tanto objeto quebrável... ;)
    Nos livros mais generalistas sobre antiguidades aparecem estes estojos, alguns de extremo luxo e beleza, que foram tendo vários nomes em inglês ou em francês, mas julgo que Nécessaire é o mais comum, sobretudo se se trata de toilette feminina.
    Gostei muito de revisitar estes objetos, guiada por mais um bem conseguido poste do Velharias.
    Beijos

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    1. Maria Andrade

      Algumas das funções destas peças deste estojos de viagem ou de toilette já se nos escapam hoje em dia. Correspondiam a hábitos complicados de gente elegante, pontual, que não desciam escadas a correr e posavam cheios de dignidade para fotografias, num mundo onde cada um tinha o seu lugar bem definido e os senhores e a criadagem viviam em andares distintos.

      O charme destes objectos consiste precisamente na evocação dos hábitos desses perfeitos cavalheiros a viajarem em vagões ou paquetes de luxo.

      Muito obrigado pelas palavras simpáticas.

      Bjos

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  6. Luís,
    Os frasquinhos são muito elegantes.
    Adoraria ter um estojo destes pois o sabor a viagens é sempre aliciante. O fabrico do vidro mais ou menos elaborado com as tampas de prata tornam os objectos apreciáveis.
    Gosto especialmente dos frascos de perfume art Noveau de Lalique. Claro também gosto dos frascos de perfume art Deco.
    Um abraço!

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    1. Ana

      Obrigado pelo seu comentário.

      Quem não gosta do Lalique?

      Existe também um grande colecionismo de frascos de perfume, pois em França, a partir dos anos 20 e 30, as grandes casas de moda e de cosmética passaram a encomendar os recipientes de vidro a conhecidos artistas e designers, que produziram verdadeiras obras primas. Até esse momento, as senhoras e os homens compravam perfumes avulso, que depois decantavam em recipientes que tinham em casa para esse efeito.

      Um abraço

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  7. Olá!
    Investigando a origem de uma peça de louça da Lusitânia de Coimbra, vi o seu blogue e apenas pude olhar de relance... porque vou ter de sair. No regresso virei aqui com mais calma e atenção.
    Tenho algumas velharias, algumas não terão qualquer valor comercial, nem eu as venderia, mas para mim são tesouros.
    Vou já segui-lo porque o seu blogue é muito interessante e para ver se aprendo alguma coisa sobre o assunto!
    Ggostava de o convidar a espreitar o meu blog: outrascoisasdat.blogspot.com,
    pois o outro:
    dasmaosdateresinha.blogspot.com
    é mais tricôs, comidas e conversa!...
    Vou mostrar a chaveninha que referi e uma ou outra velharia que tenho aqui em Coimbra, porque as de família ainda estão nos Açores.
    Um abraço
    Teresinha

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    1. Teresinha

      Seja muito bem-vinda a este blog e ainda bem que encontrou utilidade nestas páginas. Fico sempre muito contente.

      Conservar os objectos de família é um pouco como preservar a memória dos que já partiram.

      Já fui espreitar os seus blogs.

      Um abraço

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  8. Bem, o termo mais politicamente correto para a "mulher a dias cavalona" é "colaboradora"!!!!
    Próximo do meu emprego existia uma empresa (desapareceu, sabe-se lá para onde) que se dedicava a preparar estas auxiliares de limpeza e tinham o cuidado de as chamar de "colaboradoras".
    Para mim são "despachadoras de coisas que se partem, ótimas para resolver o destino das prendinhas que se recebe, e de que não se gosta, e são o paraíso dos fabricantes de eletrodomésticos", porque pouco resta depois da passagem de uma destas senhoras por uma casa!
    Mas que algumas, poucas e, por isso, raridades, são umas donas de casa maravilhosas, dotadas de umas mãos de fada fantásticas, lá isso é verdade - algumas ATÉ COZINHAM!!!!!. Também as existem, apesar de nunca me ter calhado a mim nenhuma ... essas coisas só acontecem aos outros!
    Eu não tenho qualquer "colaboradora" na minha casa, sou eu que vou resolvendo esta situação de forma metódica e tranquila ... se o pó tomou conta da casa ... pois assim vai ficar!
    Que ele, o pó, não se limpa sozinho, também já dei conta que é verdade, mas sou paciente ... pode ser que qualquer dia haja uma ventania por aqui e o pó desapareça como que por encanto, como aquelas "varinhas de condão", de que, infelizmente, só conheço dos filmes ... :-(

    Também tenho um pequeno e normal estojo de toilette que pertenceu ao meu pai, mas é vulgaríssimo de Lineu, em couro, e com poucos objetos no interior. No entanto sempre me lembro de ele o levar quando viajava.
    Nas minhas vitrines sobra um frasquinho destes, muito esguio e alto, que, por isso, o considero muito elegante, mas, apesar destas qualidades, não lhe ligo muito, confesso.
    Como diz um nosso amigo, é mais um apanha-pó!
    Manel

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    1. Manuel

      Quem tem casas como as nossas dificilmente poderá ter mulher-a-dias. É o preço a pagar por ter uma casas cheias de velharias até à loucura.

      Também gosto muitos vidrinhos dos quais não faço a menor ideia da origem, se serão portugueses, ingleses ou franceses e talvez nem nunca venha a descobrir.

      Um abraço

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  9. Salve!
    A maior tragédia de nossos dias é a perda do mistério. Tudo se explica cartesianamente, se disseca se apreende pela razão. O passado contudo, é um dos últimos bastiões do mistério justamente por nos legar estes fragmentos. O tempo é caprichoso, não se permite revelar em toda sua grandeza, ele é como o mar que vez por outra leva a praia da memória fragmento de realidades há muito naufragadas no oceano das efêmeras paixões e vaidades humanas. Por isso nos encanta com seu canto de sereia. Perdão pelo devaneio em meu comentário, mas teu artigo suscitou tais pensamentos.
    Abraços d´além mar
    Edwin J. Pinto Fickel

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