domingo, 13 de setembro de 2015

Uma cabeça decepada do século XVII

Como já aqui escrevi muitas vezes tenho sempre uma certa atracção por objectos estranhos ou bizarros, dos quais às vezes nem conheço a utilidade. Foi o caso desta peça, uma cabeça em madeira, cortada a metade, que estava na banca de um feirante de uma feira em Estremoz. Encantei-me logo com a qualidade escultórica do trabalho do cabelo e a expressão serena da figura. A peça também não estava repintada, como acontece com quase toda a arte sacra à venda naquela feira, em que as pintadelas modernas estragam irremediavelmente em dez minutos imagens, que sobreviveram ao tempo duzentos ou trezentos anos. Como o dono da banca, devia estar com dificuldade em vender uma meia cabeça, com um ar macabro, propôs-me um preço muito simpático e lá a levei eu todo contente. A peça estava colada a um prato de madeira, moderno, que me fez suspeitar que fosse um São João Baptista, mas como houve uns quantos santos cristãos decepados e esta meia cabeça, poderia ter feito parte de um qualquer grupo escultórico, representando, por exemplo os mártires de Marrocos.


Quando cheguei a casa, fiz algumas pesquisas. Os mártires de Marrocos, que coitados, foram decapitados eram todos franciscanos e portanto se esta cabeça tivesse feito parte de um grupo escultórico representando aqueles monges, teria obviamente uma tonsura. Depois lembrei-me que tinha vistos umas quantas cabeças de S. João Baptista, na exposição da colecção Franco Maria Ricci, que esteve patente, no Museu Nacional de Arte Antiga e fui consultar o catálogo e a iconografia, a forma como se apresentava a cabeça, exposta numa bandeja e como que cortada logo abaixo do queixo, coincidiam perfeitamente.

Cabeça de S. João Baptista, séc. XVI, a partir de Andrea Solario, col. Franco Maria Ricci
Portanto, conclui, que de facto, a minha pequena escultura, se tratava de uma cabeça degolada de S. João Baptista, à qual faltava apenas o prato. Aliás, na base desta pequena estatueta, existem uns quantos buracos, que deveriam servir para a encaixar numa bandeja, ou em alguma moldura de talha dourada, que representasse de alguma forma esse objecto


Este tipo de iconografia algo macabra desenvolveu-se na Europa, nos finais da Idade Média, depois de terem sido descobertas no Oriente e transportadas para a Europa, várias relíquias de João Baptista, sobretudo aquilo que se pensava ser a cabeça original do Santo. Apesar de segundo a tradição mais antiga os ossos de São João Baptista terem sido mandados carbonizar no século IV pelo imperador Juliano, o Apóstata, logo nos finais da Idade Média, por toda a Europa, miraculosamente, contava-se a soma impressionante de 12 cabeças e 60 dedos, que teriam pertencido ao referido Santo. Claro, o que acontecia, é que muito peregrinos traziam da Terra Santa ou da Ásia Menor cabeças das sepulturas de outros mártires, também chamados João. Mas o que interessava é que quando essas ossadas chegavam à Europa, as pessoas acreditavam que eram realmente verdadeiras e que continham em si poderes miraculosos.

Não vou contar a aqui a história de s. João Baptista, que é das figuras mais conhecidas da nossa cultura cristã e das mais representadas na arte. S. João Baptista é apresentado menino, só ou na companhia o Menino Jesus é pintado ou esculpido em adulto e depois existem todas aquelas cenas, à volta do seu martírio, que envolvem a bela Salomé e a sua dança dos sete véus, que inspiraram tantos artistas plásticos, escritores e até mesmo cineastas.
Uma das mais emblemáticas obras do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, Salomé com a cabeça de S. João Baptista de Lucas Cranach
A cabeça de S. João Baptista num prato é uma representação, que resume todo o seu martírio e à qual na Europa se atribuíam poderes curativos de enxaquecas, dores de garganta, sufocamento e todas as doenças, relativas à parte capital do corpo humano. Era também invocada pelos condenados à morte.

Se relativamente à iconografia, estava certo que a minha estatueta representava o S. João Baptista, quanto à época em que foi executado estava cheio de dúvidas. Ela pareceu-me desde logo antiga e muito bem executada, mas tenho sempre presente que os santeiros portugueses no início do século XIX, estavam apegados a tradições antigas da profissão e repetiam fórmulas dos séculos anteriores e portanto esta cabeça podia ser muito bem uma coisa bonita, mas sem grande antiguidade.


Mostrei a peça alguns colegas do Museu Nacional de Arte Antiga, nomeadamente ao Anísio Franco e à Maria João Vilhena, que fizeram o favor de me darem a sua opinião. Quer um quer outro, crêem que se tratará de um trabalho do século XVII, o bigode, é muito típico dessa época e a Maria João Vilhena pensa mesmo que poderá tratar-se de uma escultura indo-portuguesa, por causa da configuração dos olhos, amendoados e da orelha, em evidência. Normalmente na arte europeia, a orelha ou está escondida pelos cabelos ou pura e simplesmente não se destaca. Igualmente o trabalho goivado do cabelo, muito usado pelos escultores flamengos em século anterior, é um arcaísmo que os mestres ditos indo-portugueses, conservaram até muito tarde.
A cabeça de S. João Baptista foi juntar-se a outras beatices da minha casa
Fiquei satisfeito com a compra desta figura, que dorme um sono dos justos, numa serenidade oriental e que talvez tenha sido feita na longínqua Goa, no século XVII.

Alguma bibliografia: 

FMR: a colecção Franco Maria Ricci. Lisboa: MNAA, INCM, 2014
Iconographie de l’art chrétien / Louis Réau. Paris: Puf, 1958
Vita Christi: marfins luso-orientais. - Lisboa: MNAA, 2013

18 comentários:

  1. Margarida

    Muito obrigado pelo seu comentário. Uma boa semana também para si

    um abraço

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  2. Sigo o seu blog há algum tempo, e posso dizer que as suas "partilhas" despertam em mim um sentimento de inveja, mas uma inveja salutar, por assim dizer... fico sempre muito expectante no que toca a partilhas futuras, sei que irão ser do meu agrado!
    E agora, uma pergunta, em Estremoz há ainda muitos vendedores de Arte Sacra?
    Um abraço,
    Manel de Bragança

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    1. Caro Manuel de Bragança

      Muito obrigado pelas suas palavras tão amáveis.

      Na Feira de Estremoz vende-se muita arte sacra, mas a maioria são falsificações, ou foram já tão repintadas e restauradas, que já nem se percebe que são novas ou velhas. Por vezes aparecem boas peças, que escaparam à febre restauradora, mas os preços são normalmente proibitivos. Esta cabeça de São Baptista foi comprada a um bom preço, porque as pessoas deviam considera-la uma coisa macabra e como é muito pequena ninguém, nem o vendedor davam muito por ela. Enfim, foi um golpe de sorte

      Um abraço

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  3. Salve Luis,
    Uma peça muito interessante.
    Serei um tanto redundante neste comentário, mas valerá como demonstração de interesse pelo tema. Aliás, faz um tempinho que Você não postava nada de Arte Sacra (Talha, porque Gravura posta sempre).
    1- Pode ser sim uma cabeça de SJB, mas mesmo neste caso a peça é um fragmento de um todo maior. Ainda que pouco maior.
    2- Pode ser também a cabeça de um outro Santo (talvez jacente mas não decapitado). Então a condição de fragmento desta peça seria maior.
    3- E menos provável mas não impossível a hipótese de ser a cabeça de um santo vivo, um S. José, por exemplo. Então os olhos semi-serrados seriam de uma outra expressão; característica do escultor ou do período.
    4- Os cabelos goivados, orelha (s) aparente, bigodes bem trabalhados junto ao lábio e olhos amendoados, além da carnação e policromia direta ou quase sobre a madeira formam sim um conjunto de características do XVII Indo-português. Que adentrou o XVIII, e se alastrou por outras colônias com certeza. Mas nesta cabeça, este conjunto parece um registro irrefutável de sua antiguidade.

    5- Não considero uma peça tão pequena assim, sobretudo junto ao conjunto maravilhoso de suas beatices.

    Por fim- Aqui no Brasil temos pelo menos um caso curioso de uma Santa Cabeça. Fica no Estado do Espírito Santo. Há uma igreja dedicada à Santa Cabeça. Mas não se trata de SJB nem mesmo de N. Senhora da Cabeça, mas sim de uma cabeça de uma imagem encontrada no passado. Os padres se vêem em aflito ao tentar ligar esta devoção à alguma mais validada pela Tradição e pela História...

    Um abraço.

    ab
    OS. E que as Santas Cabeças, do Glorioso SJB, O Profeta do Altíssimo e de tantos outros mais nos ajudem a não perdermos as nossas.

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    1. Amarildo

      Obrigado pelas suas considerações, que são um bom pretexto para acrescentar algumas informações ao post, que na altura em que o escrevi pareceram-me tão óbvias, que acabei por me esquecer de as referir.

      Na verdade, além da iconografia, houve outro aspecto que me levou a concluir que esta cabeça representará provavelmente um S. João Baptista. Esta escultura foi concebida para ser vista de cima. Só tem uma leitura plena se nos colocarmos num plano superior a ela. Portanto, nunca poderia ser metade da cabeça de um S. José, que é preparada pelo escultor para ser admirada numa igreja pelo crente num plano igual ou inferior a ela. Acredite que é assim, pois quando andei a tentar arranjar-lhe um lugar em casa, experimentei coloca-la na parede e ficou uma coisa horrorosa, sem leitura. A fotografia que mostra o plano da cabeça no prato corresponde presumivelmente à vista que o escultor pretendia que tivessem dela.

      Claro, não estou inteiramente certo que seja o s. João Baptista, mas a conservadora de escultura do Museu Nacional de Arte Antiga, também foi dessa opinião.

      Com efeito, não mostro muitas vezes imaginária religiosa. Como já aqui referi a escultura sacra normalmente tem preços proibitivos, que não posso pagar e também não tenho espaço em casa, mas vontade não me falta de as comprar.

      Fiquei curioso com a Santa Cabeça que menciona. Irei averiguar.

      Um abraço e espero que a minha resposta tinha sido esclarecedora.

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    2. Luis,

      Nada como ter o objeto em mãos. Por melhor que seja a foto.

      Este efeito que você diz sobre o ângulo de observação, agora, com mais atenção, podemos perceber um pouco e concordar.

      Não deixei de observar a semelhança com a cabeça de A.Solario mas não comentei e mesmo achando que nesta sua lhe falta algum pedaço, o mesmo se poderia dizer desta pintura, pelo menos em parte. Ou que pelo menos foi sua cabeça devidamente arrumada sobre o prato. Aliás você também arrumou uma bela salva para a cabeça do Santo e um brocado de luxo também.

      Herodíades havia pedido sua cabeça mas a filha,.que biblicamente não se sabe o nome - Salomé vem de outros registros- acrescentou que a queria sobre um prato e logo. Foi atendida.

      Sobre a nossa Cabeça, ao comentar busquei algum link mas nada achei. O Santuário da Santa Cabeça que se acha fácil é de Cachoeira Paulista, Estado de São Paulo.

      Como esta história me foi contada há anos por um colega talvez eu tenha confundido o Estado.

      Um abraço.

      ab

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    3. Amarildo
      Vi algumas imagens da Senhora da Cabeça e de facto a iconografia cristã nunca nos deixará de surpreender. É pena que não ter encontrado imagens antigas desta devoção que se iniciou em Espanha já na Idade Média. Só encontrei esculturas do século XX.

      A salva de prata é uma herança da minha avó materna. Mas não é coisa antiga. Pela marca do contraste, presumo que tenha sido uma prenda de casamento, que a minha avó terá recebido por no final dos anos 20.

      Um abraço

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  4. Bem, a peça, como bem sabes, foi um achado, e ainda bem para ti, que tens prazer nesta tipologia da arte sacra.
    Quando fui ver a coleção do Franco Maria Ricci, houve algo que passei em "vol-d'oiseau", e foi exatamente este tipo de peças, que me parecem ser algo "doentias" e às quais não me consigo ligar, por mais que considere que são também uma expressão da arte.
    Algo semelhante sucede com os Cristos crucificados, que deixo sempre para quem os quiser, pois não sinto qualquer apetência por eles, e os poucos que tive foram parar a tua casa ... e quando os encontro remeto-os para ti de imediato ... hehehe ainda bem para ti.
    Ainda bem que assim é, pois assim deixo as peças que vou encontrando para os verdadeiros apreciadores como tu e muitas outras pessoas de gosto.
    Aliás, tinha passado por esta cabeça cerca de 5 minutos antes de ti, vi-a, achei-a algo macabra, e continuei em frente, mas por sorte vieste tu com o teu olho clínico, que a apreciou devidamente e a adquiriste.
    Confesso que nunca o teria feito e, assim, acabo por perder a hipótese de possuir uma peça de escultura sacra do século XVII.
    Mas creio que isso me vai acontecer até ao final da minha vida ... nada a fazer.
    Mas concordo que a peça tem qualidade e fica lindamente na tua casa.
    Manel

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    1. Manel

      Pessoalmente não acho que esta imagem seja muito tétrica. O seu rosto é tranquilo e sereno, de quem dorme um sono dos justos, ao contrário da imagem do S. João Baptista que está no quadro do Lucas Cranach, que é uma coisa perfeitamente atormentada. Mas, enfim, gostos são gostos e eu realmente tenho esta tendência para um estilo eclesiástico. Ao fim de muitos anos começo a aperceber-me por intuição daquilo que é bom.


      Um abraço

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    1. Meu caro, Luís,
      Gostei muito do post, parabéns por este seu achado tão interessante e pelas conclusões a que chegou sobre datação e o que a peça representa.
      Acho todo o seu raciocínio muito lógico, mas eu nunca lá chegaria e também não me parece que me deixasse encantar por esta cabeça - para mim seria apenas um fragmento - a ponto de a trazer para casa e investigar sobre ela. Aqui, comungo mais dos gostos do Manel, embora ache, como ele, que em sua casa todas estas peças ficam bem enquadradas!
      Mas a verdade é que graças ao seu olho clínico, vai formando uma boa coleção de Arte Sacra... a preços comportáveis!!!
      Bjs

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    2. Maria Andrade

      À conta de visitar tanta igreja, tantos museus e passarem-me tantos catálogos de arte pela mão, tenho desenvolvido algum olho clínico para a arte sacra. Também ao longo de anos fui acumulando conhecimentos de iconografia cristã, ou pelo menos sei onde procurar informações sobre esta matéria, como por exemplo na obra Iconographie de l’art chrétien de Louis Réau, que é fundamental para se identificar um santo, um anjo, uma virgem ou uma cena do Antigo Testamento.

      Em todo, o caso, para chegar à conclusão que a peça será provavelmente indo-portuguesa e do século XVII, tive que faze-lo com a ajuda da opinião de amigos, que esse sim tem um grande conhecimento nesta área.

      Bjos

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  6. Luís,
    Parabéns por esta aquisição. Invejo-o, não só por me fazer lembrar Goa mas porque a peça é muito bonita.
    Gosto das suas "beatices".
    Beijinho. :))

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    1. Ana

      Obrigado. O facto de esta peça traduzir a síntese entre Ocidente e Oriente de toda a arte dos descobrimentos portugueses dá-lhe um interesse acrescido.

      Beijinho

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  7. Maravilha, Luís. Que achado!!!! Simplesmente linda esta cabeça, solta, assim sem o prato, sem bandeja! Ô, rapaz de sorte!!!!

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    1. Caro Jorge Santori

      É verdade. Esta peça é tem o encanto dos Cristos sem braços. Por vezes parece que o tempo se encarrega de completar uma obra, retirando-lhe o que está a mais.

      Um abraço de Lisboa

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