terça-feira, 3 de novembro de 2015

Santa Joana Princesa, Rainha Santa Joana de Valois e as intrigas da corte francesa

S. Ionna
Quando o Manuel comprou este registo aguarelado, com a legenda S. Ioanna, emoldurado preciosamente no século XIX, pensámos de imediato que se trava de uma representação de S. Joana Princesa. De facto tudo parecia apontar para que aquela figura coroada, envergando um manto de arminho e entregando uma esmola a um pobrezinho, fosse a Infanta de Avis (1452-1490), filha de do Rei D. Afonso V e que ficou conhecida na história como Santa Joana Princesa.


Fui então consultar o Dicionário de iconografia portuguesa: retratos de portugueses e de estrangeiros em relações com Portugal / Ernesto Soares, Henrique de Campos Ferreira Lima. - Lisboa : Instituto para a Alta Cultura, 1947-1960 e andei a ler a entrada sobre a forma como S. Joana Princesa é representada na arte portuguesa e os dados não coincidiam com a estampa do Manel. Normalmente Santa Joana Princesa é mostrada como monja dominicana, com um crucifixo na mão e ainda, uma coroa real e uma caveira algures no chão ou pousada numa mesa.

O Dicionário de iconografia de Ernesto Soares remetia para a obra de Rocha Madahil Iconografia da infanta Santa Joana. - Coimbra: Coimbra Editora, 1957 e fui então consultar esse livro, que me deu informações muito detalhadas sobre a forma como na arte se mostrou a figura daquela infanta de Portugal.


Segundo Rocha Madahil, as estampas que representam S. Joana são de dois tipos.



Retrato de Santa Joana Princesa do Museu de Aveiro. Foto wikipedia
As do primeiro tipo inspiram-se de uma forma mais ou menos fiel na tábua quatrocentista do Museu de Aveiro, que é um retrato verdadeiro da Princesa. 
 
Uma representação típica de Santa Joana Princesa. "3 coroas reais jazem por terra, em alusão aos casamentos que lhe foram propostos e desprezou". Foto http://www.csarmento.uminho.pt/ 
O segundo tipo é constituído pelas estampas devotas e nelas a Princesa é representada em hábito de dominicana e tem como atributos a coroa de Espinhos, o crucifixo, um livro de orações, frequentemente uma caveira, e quase sempre aparece de corpo inteiro, 3 coroas reais jazem por terra, em alusão aos casamentos que lhe foram propostos e desprezou. O Brasão de armas de Portugal acompanha muito frequentemente as figurações da Infanta, bem como uma legenda identificadora mencionando expressamente a sua categoria social de Princesa.
 

Uma representação típica de Santa Joana Princesa. Santa Joana é sempre identificada como Princesa de Portugal. Foto
http://www.csarmento.uminho.pt/
Em suma, a estampa do Manel não era certamente uma representação da Santa Joana, Infanta de Aviz, pois esta não era identificada inequivocamente como Princesa de Portugal, não havia coroas pelo chão, nem um escudo de Portugal e nem a figura trajava um hábito dominicano.

Rocha Madahil adverte para o facto que as estampas com a legenda S. Ioanna e que mostram uma mulher coroada, com um manto de arminho, um crucifixo e diante dela, um Menino Jesus, que lhe coloca um anel no dedo mínimo da mão esquerda, representam na realidade a Rainha Santa Joana de Valois, cujo culto, em tempos idos terá conhecido também alguma popularidade em Portugal, pois existem uns quantos registos desta santa nas colecções das bibliotecas e museus portugueses
As gravuras com a legenda S. Ioanna, mostrando uma mulher coroada, com um manto de arminho, um crucifixo e diante dela, um Menino Jesus, que lhe coloca um anel no dedo mínimo da mão esquerda, representam na realidade a Rainha Santa Joana de Valois

Esta Joana de Valois (1464-1505) era filha Luís XI de França e da Rainha Carlota de Sáboia e como todas as princesas reais daquela época, foi um mero joguete de uma prática, em que os casamentos eram contratos políticos, que variavam consoante os interesses das conjunturas do momento. Com efeito, o seu pai casou Joana com Luís de Orleães, uma família demasiado próxima do trono de França, com o objectivo maléfico de afastar os Orleães da sucessão real, pois sabia perfeitamente, que daquele matrimónio nunca sairiam filhos, uma vez que a jovem era coxa e corcunda. Se de facto, Luís de Orleães nunca fez uma vida matrimonial com pobre Joana, conhecida na época como la boiteuse, as contas saíram um bocadinho trocadas a Luís XI, quanto a afastar do trono o seu genro, pois o seu filho mais velho, Carlos VIII morreu acidentalmente, sem deixar filhos varões e Luís de Orleães, passou a ocupar o primeiro lugar na sucessão da linha do trono. No meio de uma intriga política complicadíssima, daquelas em que a corte francesa é pródiga, Luís de Orleães e a la boiteuse acabaram por se tornar reis de França, o que explica que a figura da estampa do Manel esteja coroada e com um manto de arminho. Contudo, a pobre Joana foi rainha por pouco tempo, pois Luís de Orleães, agora Luís XII, pediu ao Papa a anulação do matrimónio, para se casar com Ana da Bretanha, viúva de Carlos VIII, assegurando a integração definitiva daquela região no Reino de França. Depois de um processo complicado, em que Joana foi vilipendiada, o Papa Alexandre Bórgia acabou por anular o casamento e a La boiteuse, foi recompensada com o título de Duquesa Berry.

Santa Joana de Valois por Jean Mazoyer. Bordeaux, église Sainte-Eulalie. Foto http://inventaire.aquitaine.fr/
Apesar de coxa e corcunda, Joana de Valois era inteligente e sensível e logo depois de ser repudiada, dedicou-se à única actividade permitida a uma mulher da sua condição (para além dos lavores femininos), a religião e fundou a Ordem da Anunciação (Ordo de Annuntiatione Beatae Mariae Virginis), que ainda hoje existe. 

Voltando à gravura do Manel, depois de todas estas leituras, o que era uma simples imagem piedosa, transformou-se num pequeno símbolo das insídias da corte dos Valois, fonte inesgotável para a literatura, para o cinema e mesmo para aqueles historiadores, que se comprazem com a intriga política.
S. Ionna
 

17 comentários:

  1. Admiro essa persistência na investigação que faz para descobrir a história associada aos objetos que traz aqui. Cada post é uma lição. :)

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    1. Luisa

      A identificação destas velhas estampas devotas a que ninguém liga dá-me um gozo enorme. Hoje, como somos uns ignorantes em matéria de religião, estas gravuras constituem charadas, que é preciso descodificar, mas há 100, 200 ou 300 anos os crentes conheciam e identificavam estes santinhos. Entre as pessoas letradas eram vulgares as leituras dos flos sanctorum, um santo para cada dia do ano e a dos livros com vidas piedosas. Claro, os analfabetos, deviam confundir um bocado estes santos todos e mistura-los. Em todo o caso, cada santo era representado com uma simbologia muito própria, de modo a que fossem facilmente reconhecidos por toda a gente e estes registos religiosos eram impressos em grande quantidade e extremamente populares.

      Um abraço

      um abraço e obrigado

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  2. Luis.

    E Manel,


    Ando sumido, várias razões.

    Mas quando dá, passo por aqui e sei oque vou encontrar e, mesmo assim, é uma surpresa...

    Estas Joanas não conheço. Há muitas Joanas santas, muitas mesmo, inclusive uma do Evangelho de S. Lucas.

    E a humanidade sempre com suas intrigas e virtudes, também...

    Alguma questão:

    1- Sobre a S.Joana Princesa, de dominicana, vc mencionou 3 corações por terra, mas vemos 4. Ou o que é segurado pelo anjo indica que desposou o Cristo?

    2 - Vc datou a moldura no séc. XIX. A gravura pode ser anterior?

    3- Que todas estas Santas Joanas e tantas mais que existirem possam nos inspirar na busca pelo sentido da vida com suas intrigas e riquezas...

    Um abraço.

    ab


    PS. Estou para preparar uns posts e penso em louça inglesa, depois de um sacro, mas como esta louça é variada, atraente e sedutora mesmo, sobretudo os pratos de paisagens, etc.do XIX. E o que dizer dos florais franceses?...

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    1. Amarildo

      Estranhava já a sua ausência.

      Santa Joana Princesa é uma figura muito conhecida em Portugal. O seu túmulo no Museu de Aveiro é considerado um dos tesouros nacionais. Já a Santa Joana de Valois é pouco conhecida pelas terras lusitanas.

      Relativamente às suas perguntas, o quarto escudo é o de Portugal, elemento obrigatório da iconografia daquela figura. Os outros escudos coroados representam os pretendentes, que a infanta rejeitou.

      A estampa é seguramente do século XVIII ou anterior. No geral, no século XIX as estampas religiosas tem sempre uma estética mais piegas.

      Esta Santa Joana é de facto uma mulher curiosa, pois apesar das suas deficiências físicas era inteligente e bem formada.

      Um abraço

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  3. Fiquei impressionada com esta história. Foi uma bela investigação, bem detectivesca. Um abraço!

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    1. Margarida.

      Obrigado. Como sou bibliotecário e tenho prática de catalogação de livro antigo, desembaraço-me bem com o chamado material impresso e depois estas pesquisas são coisas engraçadíssimas de fazer.

      Um abraço

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    2. tenho um livro de 1750 santa joana

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  4. Caro Luís,

    Adorável a imagem e a moldura. Já a história em si é digna de um romance bem ao estilo de um Dan Brown, com toda a espécie de intrigas e enigmas.
    Parabéns aos dois, a si pela suas sempre inebriantes pesquisas, e ao Manel pela bela aquisição!

    Beijinho

    Alexandra Roldão

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    1. Alexandra

      Temos sentido a sua falta.

      A história de Joana de Valois é uma intrigalhada terrível, da qual procurei fazer um resumo, tentando apanhar os traços essenciais, até porque o tema do central do post era a iconografia das duas Santas Joanas. Para se contar a história desta dinastia onde a seda branca se manchava de sangue é preciso ter o talento de Alexandre Dumas.

      Bjos

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  5. Esta Joana era a filha segunda de Luís XI, denominado a "A Aranha Universal", pelas suas estratégias políticas, onde se incluíam os casamentos reais, de consolidação do poder real, abalado pela guerra dos 100 anos e pelo poderio dos grandes senhores feudais, de que os duques de Orleães e Bourbon eram exemplo.
    Assim, Luís XI casou esta pobre filha, aos 12 anos, com o duque de Orleães, o qual, por sua vez, era a grande paixão da sua outra filha, mais velha, Ana de França.
    Esta última, igualmente com 12 anos, destinada inicialmente ao duque de Lorena, que desgraçadamente a repudiou (pagou com a vida por este facto), acabou por casar, mais uma vez por obrigação real, com o que veio a ser duque de Bourbon, 23 anos mais velho que ela. Parece terem constituído um casal sólido e dotado de excelentes relações.
    Os grandes domínios destes senhores passaram a estar sob alçada da coroa, ainda que não lhe pertencessem diretamente.
    Esta filha mais velha, Ana, devido ao seu mérito como regente de França, e por ser uma administradora competente, durante a menoridade de Carlos VIII (o último filho de Luís XI), passou a ser denominada por "Madame La Grande"; esta princesa acabou por falecer sem descendente varão.
    Foi esta mulher que decidiu acudir à situação da irmâ. Joana, cujo marido se recusava a dar-lhe qualquer meio de subsistência, instituindo-lhe uma pensão que lhe permitisse manter a sua dignidade como princesa de França e filha, afinal, do defunto rei, Luís XI.
    Assim, esta pobre Joana, após 22 anos de casamento, foi repudiada pelo marido, duque de Orleães, agora Luís XII de França, para que este pudesse casar com Ana de Bretanha, no intuito de ter um filho que herdasse o trono.
    Os céus não perdoaram a Luís XII, que acabou por morrer sem descendência direta, acabando por lhe suceder no trono o seu primo Francisco I.
    Joana, apesar das referências dos seus contemporâneas a darem como uma criança de feições regulares, mesmo agradáveis, desenvolve deficiências físicas que lhe valeram, logo em criança, ser afastada da corte, tendo sido criada em local bem afastado por um nobre, primo do rei, o qual lhe deu uma formação sólida e culta; parece mesmo ter sido dotada de uma inteligência que lhe permitiu ser apreciada e respeitada pelos seus pares.
    Uma mulher que, julgo, talvez tivesse sido infeliz, mas que, à sua maneira, se conseguiu adaptar e ultrapassar a sua triste situação, transformando a sua vida num exemplo para o futuro.

    Conhecia a história desta mulher, mas não sabia que a estampa que tinha adquirido a representava, pois quando a comprei pensava ser a "nossa" Santa Joana Princesa.

    Agradeço as sempre simpáticas palavras da Alexandra e do Amarildo

    Manel

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    1. Manel

      Uma das razões que não me alonguei muito sobre a história de Joana de Valois, foi porque sabia que no teu comentário não irias resistir a contar mais uns quantos episódios destas intrigas tão características dos Valois. E só não escreveste mais, porque o limite de caracteres não te o permitiu. Mas, percebo-te porque o assunto é fascinante.

      Mesmo o assédio que Luís de Orleães fez a Ana de Bretanha é cheio de episódios rocambolescos, pois esta chegou a mandar aprisiona-lo num dos seus castelos.

      Em todo o caso, Luís de Orleães ter-se-á arrependido do tratamento indigno dado a sua mulher e depois da morte desta prestou-lhe grandes honras fúnebres.

      Um abraço

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  6. Adoro o tema e estas investigações.
    Obrigada pela partilha e pela bibliografia que acompanha sempre a sua procura e o seu registo.
    Parabéns ao Manuel pela aquisição.
    Um abraço. :))

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  7. Ana

    Muito obrigado. Neste post recorri sobretudo à pesquisa bibliográfica, embora claro a wikipédia, versão francesa, dá sempre um jeitão e as pesquisas na net ajudam sempre a encontrar aquela imagem que queremos para elucidar melhor o texto.

    Um abraço

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  8. Luis,
    Quando conheci esta peça "in situ" ;) também a associei logo à Santa Joana Princesa, aqui minha vizinha, tão venerada que é em Aveiro e bem presente no respetivo museu.
    Não sabia nada desta Joana de Valois nem da sua história e por isso foi com muito gosto e interesse que li as conclusões a que chegou, graças a mais uma pesquisa séria e muito bem sucedida, como é habitual...
    A pequena estampa ganhou mais valor e interesse e o Manel, com o seu olho clínico, está também de parabéns!
    Abraços

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    1. Maria Clara

      É verdade. Santa Joana Princesa é muito conhecida em Portugal, quer como figura histórica, quer como devoção. Curiosamente, a julgar pelo Amarildo o seu culto não passou para o Brasil.

      Ter-me debruçado sobre esta gravura foi uma oportunidade para conhecer um pouco mais sobre Santa Joana Princesa e também sobre Joana de Valois, de que tinha uma ideia muito vaga. Aliás, cada post é sempre um pretexto para aprofundar mais um assunto.

      Bjos e obrigado

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  9. Santa Joana de valois é pra mim uma surpresa! Não conhecia, a estampa é linda, a representação, manto de arminho, anel de ouro colocado por Jesus!
    É o máximo a santa Joana de Valois, ainda bem que ainda há novidades celestiais, santos que ainda se reapresentam a nós.
    Abraços, Luís.

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    1. Jorge

      Desculpe só agora lhe responder.

      Os santos e mártires da Igreja não têm fim. Há vários por cada dia do ano. No passado, nos séculos XVII e XVII existiam uns livros muito populares, os flos sanctorum, as flores dos santos, organizados como calendários, em que se contava a vida de um ou mais santos por cada dia do ano. Essas narrativas eram acompanhadas por umas orações ou recomendações de exercícios espirituais a fazer naquele dia. A popularidade desses livros manteve-se até muito tarde, e ainda no século XX era corrente nas colónias portuguesas como Angola ou Moçambique, os padres das missões usarem estes livros para escolher nomes para os meninos africanos, o que por vezes dava uns resultados muito curiosos.

      Um abraço para si

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