terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

N. S. May dos Homens

N. S. May dos Homens

Comprei há poucas semanas mais um registo religioso, mas curiosamente impresso em pano, o que não era muito vulgar no século XVIII. O facto de ser um coleccionador compulsivo de gravuras religiosas, já me permite afirmar com alguma segurança, que nesse século, a maioria das estampas em Portugal eram editadas em papel. Já encontrei registos religiosos em pano, mas normalmente são coisas muito pequeninas com menos de 5 cm de comprimento e datam já do século XIX. Esses pedacinhos de pano serviriam para aplicar em escapulários ou confeccionar medalhinhas, enfeitadas com contas e missangas.

Relativamente a esta estampa, consegui encontrar muitos dados sobre a origem da devoção a Nossa Senhora Mãe dos Homens, que está hoje esquecida nas terras lusas, mas que no Brasil ainda é muito viva. Graças às pistas dadas pelo Anísio Franco, localizei um excelente artigo de Sandra Costa Saldanha, intitulado Santa Maria Mãe dos Homens: difusão do culto pela imagem: arte e iconografia, que foi publicado na Invenire, revista de bens culturais da Igreja, nº 3, Jul-Dez de 2011, que conta detalhadamente como esta devoção se iniciou no século XVIII e de aqui farei um pequeno resumo.
Retrato de Fr. João de Nossa Senhora (1701-1758) por Bernardo Pereira Pegado. Biblioteca Nacional de Portugal
Tudo começou com um franciscano, Fr. João de Nossa Senhora (1701-1758), que andava pelas ruas de Lisboa a pregar a quem o quisesse ouvir, que Maria além de Mãe de Deus era mãe de todos os homens. Andava sempre acompanhado de uma imagem de Nossa Senhora a que chamava a Pequenina e esta figura excêntrica acabou por tornar-se muito popular e logrou congregar à sua volta um movimento suficientemente importante para conseguir encomendar a um escultor de mérito uma imagem da Virgem, tal como a imaginava, bem como as autorizações necessárias da Igreja para a edificação de uma capela, que acolhesse a referida escultura. A imagem foi encomendada ao escultor José de Almeida, um artista conceituado na época, que tinha estudado em Roma e a talha da capela a Santos Pacheco. Tudo isto foi conseguido à custa de esmolas, o que nos permite perceber o elevado grau de popularidade das pregações Fr. João de Nossa Senhora e o acolhimento que teve junto da sociedade portuguesa de então. Este processo começou em 1742 com a encomenda da imagem e concluiu-se em 1747, quando no Convento de Xabregas, em Lisboa, se inaugurou uma nova capela para Nossa Senhora Mãe dos Homens.
Nossa Senhora Mãe dos Homens. Foto de Invenire, revista de bens culturais da Igreja, nº 3, Jul-Dez de 2011
A devoção a Nossa Senhora Mãe dos Homens conheceu um rápido sucesso em Portugal, várias imagens decalcadas da escultura José de Almeida foram encomendadas para capelas e igrejas do país inteiro. O culto atravessou o Atlântico e chegou ao Brasil e ainda hoje existe uma igreja sob invocação de Nossa Senhora Mãe dos Homens, na cidade do Rio de Janeiro.

Por cá, a imagem esculpida por José de Almeida, colocada em Xabregas, desapareceu com a extinção das ordens religiosas em 1834 e o culto foi esmorecendo aqui e acolá e hoje os próprios crentes deixaram de conseguir identificar, Nossa Senhora Mãe dos Homens, com a sua iconografia muito típica do menino a apontar para a mãe. Muitas das esculturas que sobreviveram ao passar do tempo e que tomaram como o modelo a imagem talhada por José de Almeida são hoje confundidas com outras invocações marianas.


Santa Maria Mãe dos Homens: difusão do culto pela imagem: arte e iconografia / Sandra Costa Saldanha
in
Invenire, revista de bens culturais da Igreja, nº 3, Jul-Dez de 2011
 
 

14 comentários:

  1. Caro LuísY
    O post mostra-se interessante para fechar a proveniência do culto que desconhecia,e afinal me intrigava o nome da Imagem "Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens" por conheçer uma Imagem, na Igreja do Pragal, cuja fachada é visível na portagem da ponte 25 de abril vindo de Lisboa na meia encosta vestida de branco e remates em amarelo. Relata a história que “O povo do Pragal revoltado com a monarquia no ganho da liberdade com a instauração da República, não só apedrejou este templo como outros em Almada-, seriam contra a igreja, e os seus preceitos -, sobretudo a altivez da boavida dos padres, supostamente não os defendiam nem ajudavam, e o deveriam! “As imagens foram deitadas arriba abaixo apenas salvaram a da padroeira, que é semelhante ás que mostra, com o menino de braço esticado.
    Muito obrigado pelo testemunho, que me deixa agora mais enriquecida.
    Melhores cumprimentos
    Maria Isabel

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    1. Maria Isabel

      Obrigado pelo seu contributo. Com efeito, o culto de Nossa Senhora Mãe dos Homens espalhou-se rapidamente pelo País fora e ainda pelo Brasil e há notícia desta devoção em muitas igrejas, conventos e capelas pelo País fora. Muitas imagens desapareceram, outras o culto decaiu e as pessoas deixaram de identificar esta invocação e nalguns casos o culto mantem-se vivo. Creio que a rápida popularidade desta devoção terá ver a com a ideia de querer aproximar mais a Virgem Maria do plano humano e torna-la uma mãe carinhosa e protectora para cada um de nós. Nos dias de hoje, que vivemos numa época de segurança e estabilidade, estes fervores devocionais do século XVIII parecem-nos estranhos. Mas na época, a vida humana era tão frágil, que todos precisavam de acreditar na existência de uma entidade divina, que velasse pela vida de cada um.

      Naturalmente, que todos os estes excessos devocionais e o enorme peso que a Igreja Católica exercia na sociedade portuguesa, acabaram por desembocar na vaga de anticlericalismo durante a Primeira República, que se fez sentir nos grandes centros urbanos e nas áreas circundantes.

      Um abraço

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  2. A peça é interessante pelo inusitado do suporte.
    Claro que tinha conhecimento destas impressões em tecido, pois recordo-me de eu próprio, em miúdo, ter tido um livro infantil impresso neste material.
    Alguns eram até impermeáveis para se levar para o banho ... não tenho a certeza, mas creio que os meus sobrinhos, quando crianças, tiveram destes últimos.
    Aliás, na Feira de Estremoz andam à venda uma quantidade destes livros impressos em tecido, para uso infantil.
    Mas refiro-me a peças do século XX, que o tivessem feito em época tão atrasada é que considero curioso.
    Quanto ao culto, fico sempre admirado (apesar de, na verdade, não o dever ficar), da forma como uma pessoa com o poder da palavra ter conseguido arrebatar e arrebanhar um conjunto de fiéis tão grande que lhe permitiu construir um culto de alguma visibilidade e importância à sua volta.
    O poder da oratória aliado, julgo, a algum carisma, de mistura com a capacidade de fé dos homens, que, parece, tê-la-ão perdido entretanto ... ou talvez não. Talvez, por serem mais cultas e, consequentemente esclarecidas, tornaram-se mais exigentes, o que é perfeitamente natural
    Manel

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    1. Manel

      Com estas dimensões, nunca tinha visto uma estampa do século XVIII impressa em pano. Creio que dever-se-ia destinar a aplicar talvez numa capa de um crente que acompanhasse uma procissão, ou para coser a uma seda, que depois era enfeitada com missangas e contas e bordada a fio de prata e ouro. Talvez esta estampa em pano fosse vendida em Xabregas ou noutra igreja qualquer onde se prestasse culto a Nossa Senhora Mãe dos Homens, como no Pragal, enfim, quem sabe.

      Ao ler o texto da Sandra Costa Saldanha também me espantei como é um simples frade, que nós hoje consideraríamos uma espécie de tontinho, conseguiu reunir meios e apoios para encomendar uma escultura a um dos mestres mais conceituados da época e uma obra de talha a Santos Pacheco. Mais espantosa, é a velocidade a que a devoção se propagou. Penso que nós desconhecemos como que se vivia no século XVIII, como era a mentalidade das pessoas e este fenómeno de fervor devocional escapa-nos um bocado ou talvez não se pensarmos no ano de 1917, em Fátima e na fama mundial, que rapidamente o santuário alcançou.

      Um abraço

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  3. Caro Luís,

    Já aqui tinha vindo espreitar, mas só agora me detenho para escrever alguma palavras.
    É, sem sombra de dúvidas, um pedacinho de tecido bem especial. Lindíssimo para com ele se levar a cabo a construção de um registo.
    Na verdade, também nunca tinha visto nada semelhante, excepção feita àqueles pequeninos "selos" aos quais o Luís já havia feito alusão.
    Tal como o Manel referiu, nos anos 30, 40 do séc passado existiam livrinhos de histórias infantis impressos em tecido, mas santinhos desconhecia. Gostaria de ter a sorte de encontrar um...mas pelos vistos,e afinal de contas, deve ser mais difícil achar um "canivet" ;)

    Muito obrigada pela partilha, e por mais uma vez nos dar a conhecer algo que à partida desconhecíamos.

    Beijinho

    Alexandra Roldão

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    1. Alexandra.

      Quem anda neste mundo das velharias está sempre a encontrar novas surpresas. Já tinha visto registos em pano, mas muito pequeninos e mais tardios, mas em pano, com este tamanho é o primeiro que encontro. A maioria dos registos portugueses do XVIII são impressos em papel. Por vezes aparecem estampas em impressas em pergaminho, mas não são portuguesas.

      Bjos e muito obrigado pelo seu comentário

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  4. Luís,
    Mais uma história cheia de interesse que pesquisou e aqui tão bem nos transmite!
    E, a acrecentar à história, o facto de o suporte do registo ser em pano, acrescenta valor a este objeto que vai enriquecer a sua coleção!
    É curioso como pormenores que passariam despercebidos a um leigo, como os braços estendidos de mãe e filho, dão logo a chave para se chegar à invocação que a imagem representa! E é lindsa a moldura com os elementos vegetalistas e os concheados!É realmente um mundo de descobertas este dos registos religiosos!
    Parabéns pela aquisição e obrigada pela partilha!
    Beijos

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    1. Maria Andrade

      Normalmente, quando me dedico a apurar mais qualquer coisa sobre os registos que vou comprando, só encontro informações acerca do impressor ou acerca da iconografia da figura representada. Aqui tive a sorte de encontrar um trabalho, o Sandra Costa Saldanha, que estudou de forma rigorosa o nascimento e difusão da devoção a Nossa Senhora Mãe dos Homens, de que esta estampa em pano é um pequeno testemunho.

      O Manuel contou-me que anda com uma vida muito complicada e que não dispõe de tempo nem cabeça para continuar o seu blog, o que é uma pena, mas compreensível.

      Bjos e obrigado por ter arranjado um tempinho para vir até aqui

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  5. Eu nunca tinha atentado para a Nossa Senhora Mãe dos Homens, a imagem, a devoção eu conheço. São tantas as iconografias que a gente acaba ou confundindo ou não percebendo os pequenos detalhes que as diferencia. Estampa em tecido pra mim é novidade. É linda! Abraços, Luís.

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    1. Jorge

      O nº de invocações mariana é quase infinito. Seria até interessante tentar fazer um levantamento sistemático das devoções marianas e respectivas iconografias pelo menos em Portugal e no Brasil.

      Os colecionadores de arte, os museus, os párocos e o cidadão curioso, amante das belas artes, agradeceriam esse trabalho de inventariação.

      Pessoalmente tenho sempre a maior das dificuldades em identificar as imagens Marianas, tirando algumas mais óbvias, como Nossa Senhora do Carmo, da Conceição, das Dores ou da Piedade.

      Um abraço

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  6. Mais uma vez, obrigado pela partilha conhecimentos que não adquiriria de outra forma mas que acho extremamente curiosos. A iconografia não é um tema que me suscite curiosidade e interesse suficiente para fazer essas pesquisas e consultas, mas confesso que a pouco e pouco já vou olhando para os registos, estampas e alminhas com outros olhos e outra atenção. Há sempre espaço para novos saberes e quão gratificantes eles conseguem ser.
    Bem haja Luís
    Cumprimentos,
    Ana Silva

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    1. Ana Silva

      Para nós, que vivemos numa sociedade cada vez mais descristianizada, em que entramos numa igreja e já não sabemos exactamente o que querem dizer todas aquelas estátuas, pinturas e peças de ourivesaria sacra, decifrar o significado das imagens religiosas é uma charada muito entusiasmante. Uns gostam de fazer palavras cruzadas e outros doidos como eu entusiasmam-se com reconstituir o significado de algumas dessas beatices.

      Um abraço e fico contente por lhe ter transmitido algum do meu interesse por estes registos religiosos

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  7. O culto de facto espalhou-se com bastante rapidez no patriarcado de Lisboa e também pelos espaços ultramarinos ....

    Quanto à ermida do Pragal, em Almada, a mesma foi construída depois do terramoto de 1755 e aberta ao culto em Setembro de 1763. Tinha uma irmandade fundada em 1800, mas que já se achava extinta em 1911, razão pela qual a ermida foi secularizada na 1.ª república e parte os seus bens (execpto as imagens da padroeira e de S. Sebastião) vendidos ...

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    1. Caro Rui Manuel Mesquita Mendes

      Muito lhe agradeço o seu contributo sobre a ermida do Pragal, que acrescentou uma informação interessante a este post. Provavelmente esta estampa em tecido foi vendida numa das muitas igrejas onde se cultuava Nossa Senhora Mãe dos Homens

      Um abraço

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