terça-feira, 21 de junho de 2016

S. Balbina: uma estampa do século XVIII de Augsburg

 
Nestes tempos, em que boa parte dos portugueses parecem andar entretidos nas redes sociais a cobrir com os piores insultos políticos, cómicos e cantores e a deixar nas páginas de facebook uns dos outros comentários com apelos à violência contra os muçulmanos, decidir-me por escrever um post sobre a Santa Balbina de Roma parece uma coisa um bocadinho bizantina. Mas, de facto este é um blog dirigido a pessoas educadas, que não garatujam palavrões nas redes sociais e se estão nas tintas para essas polémicas. Talvez a arte e história sejam caminhos de aprendizagem para lidarmos com os outros seres humanos de uma maneira um pouco mais civilizada, embora a simples condição de humanos nos faça estar em conflito permanente uns com os outros. 

Seja como for, esta nossa Balbina é uma santa de que se sabe muito pouco e está hoje esquecida por todos. Viveu no século II e é uma espécie de actriz secundária dos relatos da vida de Santos mais importante, como a do Papa Alexandre I, Quirino ou Hermes. Balbina terá estado ligada à descoberta das correntes, que serviram para prender S. Pedro e que ainda hoje se podem admirar na igreja de S. Pedro o Acorrentado em Roma.

As correntes de S. Pedro. Igreja de San Pietro in Vincoli, Roma

Em linhas muito gerais a história é a seguinte, Alexandre e Hermes foram aprisionados por serem cristãos e o seu carcereiro era Quirino. Cada um dos prisioneiros estava em prisões diferentes, incomunicáveis. Mas um dia um anjo quebrou as cadeias, que prendiam Alexandre e levou-o a visitar a cela de Hermes. Quirinus ficou muito surpreendido com este milagre e pediu-lhe que curasse a sua filha Balbina, que sofria de bócio. O Papa Alexandre respondeu-lhe que trouxesse a sua filha à sua cela e Quirino perguntou-lhe como era possível que ele regressasse lá. Aquele que aqui me trouxe, me trará de volta respondeu Alexandre. E de facto, quando Quirino trouxe a sua filha, lá encontrou o Papa acorrentado de novo. Balbina chorou quando o viu, ajoelhou-se e beijou-lhes as correntes, ao que Alexandre lhe disse para ir procurar as verdadeiras correntes, que tinham prendido S. Pedro e quando as encontrasse, beijasse-as com fervor que ficaria curada. Balbina com auxílio do pai, que era carcereiro e que conhecia os cantos todos das prisões de Roma foi procurar as correntes de S. Pedro, encontrou-as, beijou-as e curou-se. No final, o Papal Alexandre baptizou Quirino, a sua mulher e Balbina e é esse momento que esta estampa representa, o que é confirmado pela legenda latina da cena effunda super vos aqua mundam & mundabimini ab omnibus inquinamentis vestris, retirada da Bíblia, do Livro de Ezequiel, capítulo 36, versículo 25, o que em português quer dizer E derramarei sobre vós uma água pura, e vós sereis purificados de todas as vossas imundícies e eu vos purificarei de todos os vossos ídolos.


Basicamente, o que a história desta Balbina parece querer dizer é que a fé quebra as correntes de qualquer cadeia e talvez por isso no passado esta Santa tenha sido objecto de uma grande devoção. Em Roma há uma igreja dedicada a Santa Balbina e uma das obras-primas do Metropolitain Museum de Nova Iorque é um busto relicário desta santa. Aqui em Portugal, não há muitos anos, o nome de baptismo Balbina não era uma coisa assim muito rara.

Busto relicário de S. Balbina. The Metropolitan Museum of Art
Na estampa não estão identificados os impressores, nem o local de edição, mas é quase certo que seja alemã. Embora não saiba latim, a frase do canto inferior esquerdo, Cum Privil. Sac. Caes. Majest., quer dizer, mais ou menos, publicado com a autorização ou licença de Sua Majestade Imperial e era usada pelos impressores do Sagrado Império Romano Germânico, construção política, que correspondia grosso modo à Alemanha, Áustria, República Checa e parte da Polónia. O estilo é dos impressores de Augsburg, mais particularmente dos irmãos Klauber (Johann Baptist Klauber e Joseph Sebastian Klauber), de que já aqui mostrei duas estampas em 2013 e 2015 e cujas gravuras foram populares em Portugal, usadas como fonte de inspiração não só para os gravadores portugueses, como também para os artistas, que concebiam os grandes altares de talha dourada.

É também curioso, observar que toda esta cena à volta de Santa Balbina, decorre no meio de um cenário de destroços de casas e palácios antigos, uma antiga Roma esboçada em apenas 9,5 x 14,5 cm de papel, o que traduz já a valorização da ruína como elemento estético, nos finais do século XVIII.



Na parte superior da estampa, está indicado do lado esquerdo o dia em que se venera a santa, 31 de Março e foi talvez a data, que me levou a supor que esta estampa não fosse uma folha isolada e talvez tivesse feito parte de um livro, um martirológio romano, isto é, uma obra em que para cada dia do ano há uma imagem com um santo ou uma figura do Antigo Testamento. Fiz umas quantas pesquisas na net e de facto confirmei numa leiloeira alemã, a Galerie Bassenge, que esta gravura de S. Balbina foi uma entre as 392 páginas da obra Annus dierum Sanctorum, editada em Augsburg, em meados do século XVIII, assinadas pelos irmão Klauber, impressas em formato horizontal, com cerca de 9 x 14 cm. Ainda na tertúlia bibliófila encontrei uma colecção quase completa destas estampas, ricamente encadernadas. Com efeito, a minha impressão inicial, de que se tratava de uma obras dos irmãos Klauber estava correcta.

Foto de tertúlia bibliófila

8 comentários:

  1. Caro Luís Montalvão,

    Mais uma postagem que me maravilhou, quer pela espectacular e oportuna observação do quotidiano, mais propriamente da agressividade verbal, barata e inadequada que infelizmente de vê...

    Por outro, por mais uma interessante história ou conto na sequência de uma estampa.

    A mesma levou-me a ir ver o "dicionário de Santos", de Jorge Campos Tavares, Lello Editores, 3ª edição, Abril de 2001, e lá vinha a referencia a Santa Balbina de Roma (31 de Março), que teria encontrado as cadeias (correntes) usadas para prender S. Pedro, na prisão Mamertine, em Roma.

    E na imagem do busto relicário que apresenta, existente no The Metropolitan Museum of art, lá aparece o atributo de Santa Balbina, com as cadeias (correntes) à volta do pescoço.

    Mais uma postagem deslumbrante, correctíssima, impecável.

    Parabéns.
    Boa semana.
    Jorge Amaral

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    1. Caro Jorge

      Ultimamente tenho andado chocado com barbaridades que se escrevem nas páginas de facebook ou nos comentários dos jornais em linha. Já aqui se discutiu sobre a necessidade de quem escreve em público na internet ter uma certa responsabilidade, evitando contribuir para o ódio racial, ou insultar o próximo ou ainda espalhar informações falsas.

      Também costumo usar O dicionário de Santos de Jorge Campos Tavares, embora a melhor obra para a iconografia de santos é a do Louis Réau. Em todo o caso, quer um quer outro autor referenciam esta santa Balbina de forma quase telegráfica. Valeram-me o artigos da wikipedia inglesa sobre S. Balbina, S. Alexandre e S. Quirino.

      Quanto à identificação da estampa, usei os meus conhecimentos profissionais de bibliotecário e lá cheguei ao livro de onde a gravura foi destacada.

      Um abraço e muito obrigado

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  2. Que maravilha! Havia uma Balbina na minha família paterna. Gostei de aprender esta história. Bom dia!

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    1. Margarida

      É curioso observar que embora no passado o nome Balbina fosse relativamente comum, o que eventualmente poder ser o indício de uma devoção significativa, actualmente as informações sobre esta santa são muito escassas.

      Bjos e obrigado

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  3. Belíssima investigação. Quando a vi a primeira vez não me pareceu uma peça do século XVIII, mas, pelas tuas pesquisas, parece que lá chegamos.

    Quando vejo estas relíquias guardadas dentro de ouro, cristal, prata, bronze e pedras preciosas fico sempre a pensar como tem de ser forte e excecional a fé de um ser humano.
    Só uma pessoa dotada de uma capacidade infinita de fé consegue ver nestes objetos, algo dotado de capacidades sobrenaturais, o que pressupõe uma crença inabalável num mundo que escapa aos nossos sentidos e à nossa razão.
    Infelizmente não fui bafejado por esta capacidade (acreditar, para lá de implicar responsabilidade, torna igualmente a vida de um ser humano muito mais fácil), pois aos meus olhos não passam de "quinquilharia" mais ou menos preciosa, em termos monetários, mas não muito mais.
    Testes recentes feitos ao "Santo Sudário" (é realmente muito corajoso da parte da Igreja deixar que tais testes fossem levados a cabo!) revelam que é um tecido da época medieval, o que faz cair por terra a crença de ter sido a mortalha de Cristo.
    E o busto do Met é absolutamente fabuloso, como obra de arte, e só por isso vale a pena que alguém tenha acreditado, pois foi responsável por dar um contributo notável para o mundo estético que, afinal, se estendeu até hoje. Vale bem a pena ser admirado!
    Manel

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    1. Manel

      Foi a data do dia em que se celebra a santa aposta no canto superior esquerdo, que me levou a suspeitar que esta estampa tivesse feito parte de um flos sanctorum. Enfim, a minha experiência de bibliotecário dá-me algum à vontade na área da gravura.

      O relicário busto de Santa Balbina é umas das obras mais emblemáticas do Metropolitan Museum of Art. Ao longo dos tempos, quase todos os humanos acreditaram que nos objectos ficava sempre algo do seu antigo possuídor. Ainda hoje, num leilão um simples leque ou um par de luvas, que tenha pertencido à Imperatiz Isabel da Áustria será certamente arrematado por um preço milionário, muitíssimo superior ao real valor de mercado dessas antiguidades. No entanto, as relíquias do Cristianismo ultrapassam todos os limites. Na idade Média havia por exemplo uma igreja que se gabava de ter umas gotas do leite com que Nossa Senhora alimentou o Menino Jesus e outra ainda orgulhava-se de possuir uma pena da pomba do Espírito Santo. O reverso da medalha é que essa fé no poder das relíquias originou a encomenda de relicários que são obras-primas de ourivesaria ou escultura e que hoje só admiramos pelo seu valor artístico.

      Um abraço

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  4. Olá, Luís! Esta Santa Balbina está na lista daqueles santos, hoje, totalmente no ostracismo, no esquecimento e cuja a devoção perdeu-se.
    Fui ao Flos Sanctorum e lá está a vida dela, e já nem me lembrava de ter lido a vida da santa.
    São tantas as esquecidas...acabei de ver o nome de Santa Pomposa kkk como será a vida dela, meu deus!?
    A estampa é linda demais e o seu texto perfeito, bom de ler.
    Outro dia te respondi, falei de meu bisavô português e cometi um erro, ele não era vidraceiro e sim, vidreiro, fazia objetos de vidro.
    Quando eu era menino tinha um consertador hidráulico, era um negro forte, voz grossa e o nome dele era Balbino, Seu Balbino.
    Nunca mais conheci alguém com este nome por aqui
    A mãe dele devia ser devota de Santa Balbina!
    Abraços.

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    1. Jorge

      O Jorge Santori e eu partilhamos esta paixão pelas coisas há muito esquecidas. A pobre Balbina deve estar no top teen das santas esquecidas. Vou espreitar a sua resposta no seu blog.

      Um abraço

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