quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Matheus d'Oliveira Xavier, patriarca das Índias Orientais

 
O meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, foi um homem excepcional, que em 1886, já com 40 anos de idade partiu para Coimbra, para fazer dois cursos universitários em simultâneo, o de Direito e Teologia e em 1891 completou com êxito as duas licenciaturas.
 
No álbum de fotografias que o meu trisavô formou, consta uma significativa galeria de jovens padres, seus condiscípulos de Coimbra, que ora se formaram em Direito, ora em Teologia. A maioria desses retratos estão-lhe dedicados com frases afectuosas, idênticas aquelas que os finalistas dos dias de hoje escrevem nas fitas. Talvez neste último quartel do século XIX, estas dedicatórias fossem ainda mais sentidas, já que quase todos eles eram oriundos de fora de Coimbra, encontravam-se longe das suas terras e da família, partilhando quartos e uma intensa vida em comum durante cinco anos. Quando finalizavam os cursos, trocavam as fotografias em formato carte-de-visite, escrevendo no verso pequenas, mas sentidas manifestações de amizade, pois como toda a gente sabe, Coimbra tem mais encanto na hora da despedida.
 
Verso da fotografia de Mateus de Oliveira Xavier, dedicada a José Rodrigues Liberal Sampaio.
 
As fotografias desses jovens condiscípulos do meu trisavô foram todas tiradas em Coimbra, a maioria delas no estúdio de Adriano da Silva Sousa (9 retratos), que devia ser o fotógrafo mais popular entre os estudantes e ainda duas no atelier de J. M. dos Santos e uma no J. Sartoris.
A maioria das fotografias dos condiscípulos de Coimbra do meu trisavô foram feitas pelo estúdio de Adriano da Silva Sousa, que devia ser o fotógrafo mais popular entre os estudantes.  
 
À luz do nosso olhar contemporâneo, estes jovens padres não nos parecem muito entusiasmantes. Uns arvoram um ar seráfico, outros manifestam evidente falta de exercício físico e de actividades ao ar livre e outros ainda são definitivamente uns campónios. Mas também a boa aparência física, tão importante nos nossos dias, não era certamente o seu objectivo como homens de religião. E o que é certo, é que muitos destes homens vieram a ocupar cargos importantes na vida local ou distinguiram-se na actividade educativa. O Padre José Gonçalves Lage publicou 25 manuais escolares ao longo da sua vida. Manuel de Jesus Pimenta foi o primeiro reitor do Liceu Nacional de Guimarães e o seu irmão, que também consta deste álbum, João Nepomoceno Pimenta foi Vice-Reitor do Seminário de Braga. Isidoro Martins Pereira de Andrade foi professor do Liceu Central e do Seminário Episcopal de Viseu e por fim, José Albino Ferreira veio a ser Presidente da Câmara Municipal de Penacova e ainda colaborou regularmente na imprensa local. Enfim, estes são apenas alguns dos exemplos das personalidades retratadas neste álbum e das quais já consegui traçar um pouco dos seus percursos de vida.
 
Mateus de Oliveira Xavier em 1888. Um belo homem
 
Desta galeria de clérigos, houve a figura de um jovem, que me impressionou desde logo, Mateus de Oliveira Xavier. Era em 1888, à data da fotografia, um homem bonito, de testa alta, bem penteado, um olhar inteligente e que posou para a câmara sem artifícios de beato. Posteriormente, as pesquisas, que fiz sobre ele não desfizeram esta impressão inicial. Mateus de Oliveira Xavier, que nasceu em 1858 em Vale da Urra, aldeia próxima de Vila de Rei, teve uma carreira admirável. Partiu para a Índia portuguesa, em 1894, como secretário do Patriarca, D. António Sebastião Valente e aqui rapidamente foi nomeado reitor do seminário de Rachol. Reformou os planos de estudo desta casa e fundou nela uma faculdade de teologia. Em 1898, foi sagrado bispo de Cochim, onde desenvolveu uma grande actividade na educação, criando escolas e um liceu para ambos os sexos, o que para a época era notável. Percorria toda a sua diocese de lés a lés e exerceu uma administração moderna e eficiente. Era também um homem fluente em línguas, além do português, escrevia correctamente o latim, dominava o francês, o inglês e o concani. Para os mais esquecidos da história portuguesa, recorde-se que Cochim, foi uma possessão portuguesa entre 1503 e 1663 e na época de D. Mateus de Oliveira Xavier estava já sobre domínio britânico, embora continuasse a existir uma grande comunidade católica indo-portuguesa. Ainda hoje, os cristãos constituem 35 por cento da população daquela cidade indiana.
 
A Sé de Cochim. Foto Wikipédia
 
Uma das obras fundamentais de D. Mateus de Oliveira Xavier foi a construção da nova sé de Cochim, que foi inaugurada em 1905 e ainda hoje existe. Mas a sua carreira não parou por aí. Em 1908 foi nomeado Patriarca das Índias Orientais, cargo importantíssimo, já que Goa, a Roma do Oriente, era ainda na época o centro do catolicismo em todas essas longínquas paragens. Em fevereiro de 1909, D. Mateus de Oliveira Xavier foi capa da popular revista Ocidente, que lhe dedicou um extenso artigo e publicou uma fotografia sua, agora com cinquenta anos e o jovem bonito e inteligente retratado em 1888, no álbum do meu trisavô, transformou-se num poderoso patriarca, com impressionantes barbas, capaz de conduzir o seu povo pelas areias do deserto até a terra prometida. Só os olhos se mantiveram iguais.
 
Mateus de Oliveira Xavier em 1908. Foto revista Ocidente
 
Bibliografia consultada:
D. Mateus de Oliveira Xavier: patriarca das Índias Orientais
In O occidente : revista illustrada de Portugal e do estrangeiro, N.º 1084 ( 10 Fev. 1909 )

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

São Bento de Núrsia: um canivet


Recentemente comprei mais um canivet, representando São Bento de Núrsia. Canivet é um termo francês, que significa à letra canivete e refere-se à técnica com que estes registos eram executados, isto é, eram picotados com o recurso a um estilete. Os mais antigos, feitos entre os séculos XVII e XVIII eram picotados à mão, decorando uma folhinha de pergaminho, velino, tecido ou papel de muito boa qualidade onde uma freira habilidosa tinha pintado à mão a imagem de um santinho, de Cristo ou da Virgem Maria. Depois, nos séculos XIX e XX, a imagem passou a ser impressa e o picotado feito mecanicamente. Este São Bento é dos mais antigos, pois foi todo pintando e picotado à mão. Provavelmente data do século XVIII.

Se fizermos uma pesquisa por Canivet na net, normalmente vamos parar a sites franceses ou italianos, onde encontramos muitas destas imagens e a sua produção é atribuída sobretudo a conventos femininos na Alemanha, Flandres, mas também em França ou em Itália. Segundo essas páginas da internet as freiras faziam estes delicados registos para ganharem algum dinheiro.


Apesar de já ter apresentado alguns destes canivets aqui no blog, continuo sem saber se foram também feitos em Portugal. Aliás, nem sequer sei qual o termo português para designar estes registos de santos picotados à mão e no entanto estas imagens aparecem em Portugal nos mercados de velharias e nas colecções dos museus portugueses. A Casa-Museu José Régio em Portalegre tem uns quantos destes canivets preciosamente encaixilhados em pano, decorados com passamanaria e contas. Será que estes canivets vinham da Alemanha e da França e eram depois encaixilhados cá?

Sabemos por exemplo que os gravadores de estampas religiosas de Augsburgo na Alemanha, vendiam os seus registos para todo mundo Católico, portanto não é de estranhar que por cá se comercializassem estes santinhos, vindos dessas paragens. Por cá, além dos doces de ovos, as religiosas portuguesas distinguiram-se pelo fabrico de flores em papel e pano, bem como folhas de papel artisticamente recortadas, destinadas a guardar os boles e doces. Talento manual e tempo não lhes faltava para executarem estes canivets, mas nunca encontrei referência nenhuma a sua execução nas terras lusitanas.

Enfim, é um pequeno mistério que ainda torna estes canivets ainda mais preciosos aos coleccionadores de inúteis beatices como eu.