quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Um toucador de cómoda.


Hoje apresento-vos uma peça de mobiliário, que passou irremediavelmente de moda, um toucador de cómoda. Foi comprado pelo meu amigo Manuel em muito mau estado e que com a sua paciência e minúcia o restaurou integralmente.

É constituído por um espelho basculante, apoiado em duas traves com uma representação convencional de dois golfinhos e assenta uma caixa com uma gaveta. É folheado a nogueira e lacado à boneca. Foi uma peça destinada a estar pousada numa cómoda ou numa pequena mesa, com tampo de mármore, e em tempos serviu para uma qualquer jovem ou senhora arranjar os seus cabelos e na gavetinha guardaria uma escova, um pente, um ou outro unguento, fitas coloridas e uns ganchos.



Este toucador foi executado ao gosto do chamado estilo da Restauração, período compreendido entre os reinados de Luís XVIII (1814-1824) e de Carlos X (1824-1830). Foi época em que Napoleão Bonaparte foi afastado definitivamente do poder e a monarquia restaurada de novo em França. Contudo, apesar desta ruptura política, o estilo Império persistiu no mobiliário, só que mais suavizado, em que as pesadas ferragens e os bronzes desapareceram e preferindo-se as madeiras de cores mais claras. Os móveis lacados como este, continuaram igualmente na moda.


Contudo, apesar do seu estilo, este pequeno toucador, não será assim tão antigo. A partir de 1840, começou a moda dos revivalismos no mobiliário e que se estenderá pelo século XX adentro. Em 1870, 1890, 1910 ou mesmo em 1940 uma família burguesa encomendaria a réplica de um conjunto em estilo Luís XVI para a sala de estar, um conjunto Império para o escritório, uma sala de jantar renascença e os quartos em estilo D. João V, se por acaso vivesse em Portugal. A casa da minha família materna está em grande parte mobilidade neste estilo restauração e terá sido coisa encomendada nos anos 30 do século XX.

Embora, seja difícil precisar exactamente a época seu fabrico, é provável que este toucador de cómoda, seja uma peça dos finais do século XIX ou mesmo inícios do XX. Em todo o caso, é de um tempo em que a casa de banho ainda não estava generalizada e as pessoas faziam a sua toilette no quarto. Dispunham de uma mesa de mármore com um jarro de água e uma bacia para lavarem a cara, os braços e as mãos e um toucador como este para compor o penteado.


No verso, este toucador tem um papel, onde alguém escreveu Maria Teresa. É uma letra feminina, comum às senhoras que fizeram a sua instrução nos anos 20 e 30 do século XX. A minha mãe, que por acaso também era Teresa, tinha exactamente este tipo de letra e enfim, todos nós sabemos que a cada época, corresponde uma caligrafia. Provavelmente, durante umas partilhas familiares, alguém colou este papel no móvel destinando-o à Maria Teresa. Entretanto, passaram mais algumas décadas, a Maria Teresa morreu e os descendentes não quiseram saber mais deste móvel, tornado inútil pela casa de banho. Mas, talvez mais do que a casa de banho, o que condenou à extinção definitiva estes toucadores, bem como os seus parentes próximos, os psichés, foi a pressa da nossa sociedade contemporânea. Hoje as mulheres trabalham todas e acabam de se arranhar nos transportes públicos ou mesmo no carro. Quantas vezes, já não vi eu, logo de manhã, no carro, as mulheres aplicarem base, usando o espelho por cima do volante, no momento em que o sinal está vermelho.



Alguma bibliografia:


Reconnaître les meubles de style / P. M. Favelac. – Paris. Ch Massin, s. d.



https://www.galerie-atena.com/blog-le-style-restauration-18151830-pxl-28_42.html



11 comentários:

  1. Que bem ficaram as fotografias. Até parece um móvel mais impressionante do que é.
    Adquiri-o em mau estado, é verdade, os pés, ou não existiam, ou tinham sido substituídos por bocados toscos de madeira, todo o móvel tinha sido atacado pelos xilófagos e estava coberto dos pequenos orifícios típicos da atividade destes horríveis insetos, o folheado faltava em algumas áreas, e o que existia estava em grande parte solto, rachado e riscado, com bocados da superfície lacada totalmente destruídos pelas humidades ou riscada, porque alguém se tinha entretido a fazê-lo (?), pelo que porções de tinta, que alguém, sabe-se lá como, deixou cair sobre o tampo, se infiltraram para a própria madeira. Deve ter estado sujeito a um ambiente húmido durante bastante tempo, pois as poucas ferragens que restaram estavam muito oxidadas. Os pequenos pregos que as seguravam tinham-se corroído.
    O espelho tinha colado na parte de trás um pedaço de papel datado de 1930, e também tinha escrito nesse papel que tinha sido intervencionado nessa data por alguém, não especificado. Daí pressupus que o espelho original, talvez a prata, se tinha estragado ou partido, e sido substituído por este, que, neste momento, também se encontra já todo cheio de manchas de humidade, deixo-o, claro, pois tem mais encanto assim!

    Estou de alguma forma ligado a este tipo de móvel, por mais inútil que seja (que o é), talvez porque a minha irmã, em criança, tinha um pequeno toucador miniatura revestido com um lacado vermelho escuro, quase grená, com uns pequenos bonecos sob o lacado, e que eu gostava imenso de ver e mexer, rodando o espelho redondo para arrancar reflexos que depois se espalhavam por todo o quarto. Era quase hipnótico.
    Claro que, ao crescer, esqueci o pequeno móvel, mas algo deve ter ficado, pois sempre que os vejo em qualquer casa ou loja fico com vontade de lhes tocar e fazer rodar o espelho ... nada a fazer!!!!
    Calhou ver este em venda num preço muito razoável e não resisti.
    Ficou meses em cima da bancada, pois não sabia muito bem como o restaurar. Só depois de ter uma ideia do que fazer me decidi a tocar-lhe, mas não foi fácil.
    Tenho sempre receio de fazer algo que arruine a peça ao lhe alterar as caraterísticas e encanto originais.
    Uma ferragem mal escolhida, um acabamento que não seja consentâneo com a época, o uso de uma madeira que seja contrastante, no mau sentido, um dourado pouco adequado, a escolha de um tecido que destoe são coisas que destroem qualquer peça, ainda que a intenção seja a melhor.
    As fotos que tiraste e o texto estão muito bons! Parabéns
    Manel

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    1. Manel

      Embora seja um leigo, gostei muito do restauro que fizeste. Respeitou a simplicidade e elegância deste pequeno móvel e o acabamento da madeira ficou lindo.

      Não foi fácil conseguir uma boa fotografia deste móvel. A faiança é vem mais fácil de fotografar. Basta coloca-la cá fora à luz solar e com três ou quatro instantâneos está o serviço feito.

      Aqui houve o problema do espelho, que me reflectia a mim e à câmara fotográfica, de modo, que tive que cortar a imagem do espelho na terceira fotografia.

      Um abraço

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  2. Muito bonito o móvel, uma pena que tenha caído de moda, mas ele já teve os seus dias de grande utilidade nos quartos de mocinhas e das senhoras. Adorei os golfinhos ladeando o espelho. O móvel fica bem como decoração nos medonhos dias de hoje quando tudo é corrido e que, às vezes, nem se olha a própria cara. E ainda é útil.
    Foi um bom resgate e muito bem restaurado. Discreto. Chique.
    Abraços, Luís.

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    1. Jorge

      Creio que os peixes são golfinhos. É uma representação convencional daqueles cetáceos, que já vem de trás e se encontra em peças de faiança, em fontes de pedra ou na ourivesaria.

      Embora este móvel não tenha saído da oficina de um grande marceneiro, acaba por sempre muito elegante na sua simplicidade e simetria.

      O facto de a peça ter uma marca de um antigo proprietário, a Maria Teresa, dá-lhe também uma poesia especial.

      Um grande abraço

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  3. Pois é, eu amei esse nome colado na peça...adoro essas marcas pessoais em objetos, móveis, livros. E gosto quando vem também os nomes de lojas e de antigos fabricantes.
    Eu tenho um móvel bem simples de duas portas que o que eu mais gostava era um adesivo na parte de trás da antiga fábrica que o produziu. Pois bem: mandei passar uma cera e a criatura arrancou o selo! Ódio!
    Ainda bem que a sua Maria Teresa ficou. É o que dá um toque especial.
    Abraços.

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    1. Jorge

      Peço-lhe desculpa pelo atraso da minha resposta, mas tenho estado de férias no Norte de Portugal e agora no Alentejo e mal abri o computador. São estas antigas marcas de posse que conferem uma história aos objectos. Ainda agora na casa da família materna voltei a reencontrar a letra da minha mãe, igual à desta senhora e quase que poderia ser sido ela a escreve-la, destinando o pequeno toucador à Maria Teresa, minha irmã. Mas enfim, são apenas meras coincidências. Um abraço

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  4. Luis e Manel,

    Muita paz.

    Há tanto estou para vir aqui onde mesmo um simples toucador revela tantos saberes e gostos.
    Um velho toucador, um belo nome de uma antiga dona, um restauro mais inspirado que simplesmente técnico... Por fim uma pequena aula de estilos, Política e História.
    Falando nisso aqui neste disforme país outrora tão risonho. Pobres sempre fomos, tristes nem sempre. Agora pobres e tristes. E ainda que venha alguma prosperidade a custa do que está custando para mim não tem valor.
    Não quero ser beato mas gosto muito de uma Escritura que diz: "Prefiro habitar no umbral da Casa de Deus que dentro das mansões dos malfeitores..."
    Espero que não tenham se assustado com minha aparição. Ainda muita coisa a me emperrar os passos para o que gosto tanto como as Velhinhas. E as Pessoas que tão bem lhes juntam, emendam... e tentam lhes recontar a história e enfim trazer-lhes à vida novamente.
    Meu muito obrigado.
    Espero retornar em breve.

    Deixo meu abraço.

    Amarildo.

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    1. Amarildo

      Que surpresa e que prazer. Confesso que temi que tivesse ido desta para melhor ou que pura e simplesmente se tivesse fartado de computadores e de internet

      O Manel fez um bom restauro, e o lacado à boneca ficou muito ao estilo dos móveis da Restauração.

      Por cá vão chegando notícias do Brasil e parece que muitos compatriotas seus partilham da sua opinião, que preferem habitar no umbral da casa de Deus, que dentro das mansões dos malfeitores. Nunca senti os brasileiros tão pessimistas como agora.

      Um abraço

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  5. Fico muito mais tranquilo depois de dar conta da sua presença aqui, pois, ainda que não queiramos, teme-se sempre que algo lhe pudesse ter acontecido.
    Por conseguinte, tranquilizou-me a sua presença.
    Quanto ao que refere, e vendo o problema pelo lado positivo, é que as situações, por piores que sejam, não duram.
    É isso que é bom saber.
    Seja quem for, por mais poderoso que seja, não será nunca permanente. Só custa enquanto está!
    Mas tenhamos a esperança (infelizmente nem sempre conseguida) que o futuro lhes traga a lição que merecem.
    Mais uma vez, é sempre bom verificar a sua presença.
    Envio-lhe os cumprimentos
    Manel

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  6. Muito interessante este texto, e gostei também desta peça de mobiliário, bem bonita. Boa tarde!

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    1. Margarida

      Muito obrigado pelo seu comentário. Creio que estas peças irremediavelmente fora de moda exercessem sobre nós um certo fascínio, pois traduzem hábitos que hoje já são históricos. Quem é que actualmente se senta em frente a um toucador a escovar o cabelo?

      Bjos

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