Nos últimos tempos tenho escrito pouco sobre faiança. Não porque faltem peças para mostrar, pois o meu amigo Manel tem imensas terrinas, bules e pratos de faiança portuguesas do século XIX, mas pelo motivo, de que sabemos muito pouco sobre elas. São louças sem qualquer marca e parece-me um bocadinho inútil estar a escrever, coisas como esta peça parece-nos do Norte ou esta de Coimbra, apenas por mera intuição. Ultimamente só escrevo de faiança, quando sai um livro ou um estudo novo sobre o tema, que nos esclarece sobre uma caneca ou uma travessa da qual o Manel e eu não sabíamos nada. Mas mesmo assim, a tentação é grande de escrever sobre peças das quais nada sei, quanto mais não seja para arrumar ideias.
Desta vez apresento-vos uma terrina de faiança de grandes dimensões, decorada com um bonito motivo floral e que o meu amigo Manel recebeu da sua avô materna, que por sua vez a herdou da sua mãe. Se a avô do Manel nasceu nos primeiros anos da década de 90 do século XIX, pode-se especular que esta terrina será talvez dos últimos anos do XIX ou do início do XX.
A terrina é pesadas e com um certo ar grosseiro, própria para famílias, que queriam objectos sólidos e duradouros, capaz de resistir a diferenças altas de temperatura e a lavagens frequentes. No entanto, a decoração é muito cuidada. Ostenta uma faixa floral, com coloridos vivos, que me recorda os bordados de alguns trajes regionais, talvez aqueles aventais que se vestiam em dias de feira ou de procissão ou um lenço dito de namorados.
Contracapa da obra Bordados tradicionais de Portugal / Maria Clementina Carneiro de Moura. - Lisboa : Comp. de Linha Coats & Clark, [D.L. 1962]. |
A pasta é amarelada, o que é uma característica da região do centro, segundo quase todos os manuais de faiança. Com efeito encontrei uma ou outra terrina com um formato muito semelhante a esta, a primeira no catálogo de uma pequena exposição, intitulado Humildes faianças: louça tradicional de uso comum no Concelho de Arganil. Arganil: Câmara Municipal, 2007 e está classificada como louça de Coimbra a segunda, no livro de António Pacheco Louça tradicional de Coimbra: 1869-1965. Coimbra: DGPC, 2015. Esta última terrina tem um formato idêntico à do Manel e está marcada como monograma da fábrica Viúva Alfredo de Oliveira, de Coimbra, provavelmente feita pouco depois de 1936.
A terrina reproduzida na obra Humildes faianças: louça tradicional de uso comum no Concelho de Arganil. Arganil: Câmara Municipal, 2007 |
A terrina reproduzida na obra Louça tradicional de Coimbra: 1869-1965. Coimbra: DGPC, 2015 |
A terrina do Manel não apresenta nenhuma marca de fábrica. No tardoz, ostenta apenas um número, o 2, que creio eu que se deve referir ao tamanho da peça e não ao fabricante. Recordo-me que quando há quase 40 anos trabalhei numa loja de loiças e utilidades domésticas na Baixa Lisboeta e as panelas tinham sempre no fundo marcado um n.º com o diâmetro da peça.
Apesar de ter encontrado uma terrina da Viúva Alfredo de Oliveira muito semelhante a esta, é um bocadinho arbitrário atribuir-lhe o fabrico, pois quem se dedica ao colecionismo de faiança portuguesa, sabe bem como os diversos fabricantes usavam os mesmos moldes e provavelmente décadas a fio. Por essa razão também complicado, data-la. Talvez tenha sido produzida algures nas três primeira décadas do século XX.
Em suma, esta terrina do Manel, será um fabrico de Coimbra ou da região à volta desta cidade, onde existiram fábricas hoje pouco conhecidas. Ainda não há muito tempo a Maria Isabel, apresentou numa seu blog https://leriasrendasvelhariasdamaria.blogspot.com/2017/01/terrina-da-fabrica-telles-de-cantanhede.html uma terrina de uma fábrica em Cantanhede, de um tal Sr. Manuel José Teles, cuja existência andava esquecida de todos.
Em todo o caso, quem decorou esta terrina, não lhe faltava talento e a orla florida de cores vivas tem toda a garridice de um traje popular português.
linda, linda! vocês dois tem o maior talento para garimpar peças muito especiais. achei curiosa a borda tão alta na terrina. concordo com o Luís sobre o contraste interessante de uma peça relativamente "bruta" com a pintura tão bem executada e até delicada, além do uso de tantas cores! Podia ser uma peça para o dia a dia, mas não para qualquer família.
ResponderEliminarabraços cheios de saudade!!
Fábio
EliminarObrigado pelo teu comentário.
É verdade, há aqui um contraste entre a forma "bruta", como tu referiste e a decoração floral, muito bonita e imaginativa. Não sei se a associação aos bordados é correcta, mas foi imediata, mal vi esta peça em casa do Manel, há mais de 15 anos.
Creio que esta terrina foi sempre estimada, até porque segundo o que o Manel me contou, foi a única peça de louça boa, que a sua avô herdou da mãe. Os serviços de Sacavém ficaram para as irmãs. Mas, o Manel virá aqui contar mais coisas que se lembra desta terrina, que já viu passar várias gerações.
Um abraço lisboeta cheio de saudades
É verdade que esta peça sempre foi das minhas favoritas. Lembro-me de ela ter servido uma única vez na minha vida.
ResponderEliminarA minha mãe, irmã e eu, em 1964, tínhamos acabado de regressar de Moçambique, justamente para casa da minha avó (materna), e esta avó decidiu dar um jantar onde foram recebidos dezenas de convidados, onde se contava a demais família e quiçá outros amigos, talvez para comemorar a nossa vinda, não sei bem se terá sido essa a razão principal. Perde-se na minha memória, que era a de uma criança ainda.
Não me lembro dela ter repetido esta façanha, pelo menos não o fez mais na minha presença.
Foi um acontecimento, tanto mais que esta minha avó era tida como uma pessoa muito agarrada ao dinheiro.
Gastá-lo em coisas supérfluas como esta não estava nos seus planos.
Talvez tivesse tido outra razão de peso que me escapa, poderia ser qualquer promessa que tenha feito ... não sei.
No entanto lembro-me que, na altura, pediu muita louça emprestada, dado o número de pessoas e lembro-me desta terrina, a qual já estava gatada, como se encontra ainda hoje.
Lembro-me disto porque eu estava curioso se por acaso ela aguentaria a sopa quente, pois foi uma discussão lá em casa entre a minha mãe e a minha avó. E eu fiquei de olho nela quando lhe foi posta a sopa a ferver dentro ... e o milagre deu-se: não verteu nem uma gota, veio à mesa e serviu quem quis fazê-lo. Serviu-se nela uma espécie de "sopa seca", aquilo que na região se denominava de "sopa do casamento", um caldo de cozer o carneiro, com alguns bocados de carne, vegetais variados cortados finos, bocados de massa igualmente cozida no caldo, tudo aromatizado com hortelã, e que se colocava a ferver sobre pão escuro, cozido em casa (talvez centeio, ou mistura), e cortado em bocados.
De comer e chorar por mais!!!! A minha avó, quando queria, era uma cozinheira de "mão-cheia".
Nunca mais vi esta terrina em uso. Mantinha o seu lugar num grande louceiro grande e alto. que tinha sido construído até ao teto, e que tinha sido meio embutido na parede. Talvez por isso mesmo resistiu até hoje.
Havia mais peças de louça antiga lá por casa, um edifício que tinha vindo do século XIX, mas a maior parte tinham-na levado os irmãos da minha avó. As pouquíssimas peças que sobreviveram fiquei com elas.
Uma das irmãs com quem ainda privei, mostrava-me, impante de orgulho, um armário louceiro na sala de estar, cheio com um serviço de cavalinho rosa da Sacavém, proveniente lá da casa.
Os outros irmãos que conheci eram mais reservados, e nunca me mostraram o que quer que fosse, mas sei que tinham levado a sua parte, pois a minha avó tinha-mo dito.
Por altura do dito jantar a grande discussão entre a minha mãe e a minha avó era que aquela terrina tinha sido herdada da mãe da minha avó, e que seria um desastre se a sopa quente rachasse ainda mais a terrina que já estava gatada (conjeturo que talvez se tivesse rachado com outra sopa quente que lhe tenham posto dentro, que sei eu).
Creio que ela deve ter sido adquirida num qualquer mercado local onde se vendia louça (era comum irem ao mercado de S. Mateus a Soure, onde era hábito haver louça à venda), talvez em Pombal, ou mesmo na Redinha, onde, há muitos anos atrás, se fazia uma pequena feira agrícola ao Sábado, não faço nem ideia. Mas não eram pessoas que viajassem para fora da sua área de residência, pelo que deduzo que deverá ter sido produzida em algum centro próximo. Coimbra poderá ser uma hipótese.
Gostei muito deste post, onde se aborda uma peça ligada à história da minha família, além de estar muito bem ilustrado
Manel
Manel
EliminarHabitualmente vemos estas velhas terrinas como peças de colecção, há muito reformadas da sua função original. No teu comentário deste-nos uma ideia do que se servia numa destas terrinas, uma sopa bem mais substancial das de hoje em dia. Claro, tu trouxeste aqui uma história da Redinha e a culinária variava muito de região para região, mas não há dúvida, que nos deste a todos o sabor do que se serviria numa destas terrinas, nos dias especiais. Foi uma pequena viagem no tempo.
Um abraço
Um abraço
É uma bela terrina. Gosto deste tipo de cerâmica de cariz popular. Boa tarde!
ResponderEliminarMargarida
EliminarÉ verdade. Esta terrina tem o cunho daquilo que nós, criados na cidade, imaginamos como popular, romarias, casamentos campestres ao ar livre, comida substancial feita com os produtos da terra, um bom pão e um vinho qualquer pesado a acompanhar tudo.
Bjos e bom domingo
Linda! Pesadona, rústica e nobre! Altiva. tem uma cor diferente essa, amarelada. A faiança portuguesa não vejo aqui em antiquários, não sei por quê. Será que aqui achavam feia, cafonas e não eram vendidas? O bom e garantido era investir nas inglesas e francesas.
ResponderEliminarTodas as faianças portuguesas têm um aspecto de muito fortes, para aguentarem o tranco doméstico, iam para as mesas, depois lavadas e no outro dia a mesma coisa. Utilitária por excelência.
Que delícia uma sopa do século XIX servida em uma terrina dessas. Hum!
Os pratos desse serviço deviam ser lindos, uma tonelada cada um! Coitadas das criadas de dentro na lavagem das loiças do diário.
Sopas e abraços, Luís.
Jorge
EliminarEsta terrina é linda e esta cor amarelada é típica da faiança do centro de Portugal, da cidade de Coimbra e da região circundante.
Normalmente apresento aqui no blog faiança produzida no Norte de Portugal, da cidade do Porto, de Vila Nova de Gaia ou de Viana do Castelo, que apresenta uma pasta mais esbranquiçada. As fábricas do Norte exportavam para o Brasil louça, azulejos e ainda urnas e taças que enfeitavam os prédios e as os palacetes. Já vários seguidores do Brasil me enviaram fotografias de urnas de Miragaia ou de Santo António do Vale da Piedade em casas antigas do vosso País. Portanto, não perca a esperança de um dia encontrar aí uma terrina ou um prato em faiança portuguesa.
Um grande abraço lusitano