sábado, 28 de novembro de 2020

Um candil de azeite ou uma forma imemorial



Este candil de azeite em latão amarelo é uma peça que herdei, provavelmente executada num tempo em que não havia luz eléctrica. Sei que da casa de onde veio, a electricidade chegou só nos anos 30 do século XX e portanto este candil será anterior a essa década. Terá pelo menos mais de 80 anos. Naturalmente, que depois do aparecimento da electricidade nessa terra transmontana, os candeeiros em azeite continuaram a ser usados nos velórios, conforme já escrevi no meu post de 28 de fevereiro de 2014, mas duvido que os continuassem a comprar depois disso. O mais certo era usarem as peças antigas que no passado tinham tido também uma função utilitária de iluminação. Ainda há pouco tempo uma senhora me escreveu contando-me que no século XIX um antepassado estudava à luz de um candeeiro de azeite, nos seus tempos de estudante, na Universidade de Coimbra.

Através de visitas aos museus ou da consulta de livros, sabia também que estes candeeiros mantiveram as mesmas formas durante séculos. Aliás, interrogo-me sempre como é que os conservadores de museu e os antiquários conseguem datar estas peças como sendo dos séculos XVII, XVIII, XIX. A mim parecem-me sempre iguais. Também já tinham lido algures que as estas formas não andavam longe de alguns candeeiros da antiga Roma.


Porém, ver as coisas ao vivo é muito diferente, do que ver a imagem num livro, na televisão ou na internet. Recentemente no Museu Nacional de Arte Antiga visitei a exposição Guerreiros & mártires: a cristandade e o Islão na formação de Portugal, que tem muitíssimas obras de arte islâmica, e qual é o meu espanto, quando numa das vitrinas encontro três candis datados entre os séculos XI e XIII, com formas muito semelhantes às da minha peça. Os três candis foram encontrados no Algarve e eram objectos correntes nas casas naqueles tempos em que o Islão dominava o Sul da península Ibérica. Os mais abastados usavam candis em metal como estes, mas a maioria da população utilizava os de cerâmica.

Imagem retirada de Guerreiros & mártires : a cristandade e o Islão na formação de Portugal / coord. científica Joaquim Oliveira Caetano, Santiago Macias. - Lisboa : Museu Nacional de Arte Antiga : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2020

Fiquei realmente surpreendido com a continuidade das formas que alguns objectos do quotidiano apresentam. Um candil manufacturado há talvez uns 90 anos no Norte de Portugal, pouco difere de outro feito há quase mil anos no Sul do País. Talvez para os mais entendidos nestas questões da etnografia e da arqueologia, eu esteja a descobrir a pólvora, mas para mim que vivo neste mundo, onde em cada dez anos há um modelo de electrodoméstico radicalmente novo e em que todos os dias no telemóvel aparecem-nos aplicações tão espantosas como incompreensíveis, esta continuidade das formas e da vida material é uma descoberta fascinante.



10 comentários:

  1. Caro Luís,
    de facto por vezes não é fácil datar os candeeiros de azeite.
    Muitos deles, especialmente os mais recuados, antigos, os acessórios ou pertences foram substituídos o que dificulta também a datação.
    Na mesma época nem sempre são feitos utilizando o mesmo metal ou liga variando conforme a oficina, artesão ou a bolsa do comprador. Assim desde prata ou bronze, ou até folha de latão de tudo aparece.

    Sabe-se muito pouco e infelizmente só conheço a coleção de Maria Faustina Margiochi do Museu de Évora e o catálogo da exposição Candeeiros de azeite do Museu de Évora: Colecção Margiochi.

    Portugal no seu vasto e rico património não valoriza os nossos candeeiros de azeite tão rico em formas ,feitios e tamanhos. São interessantes os miniaturas, candeeiros com uns escassos 15cm de altura, e que claro iluminam .

    Os nossos, portugueses, não se confundem com os italianos, "Lampada a olio fiorentina", nem com as poucas "lámparas de aceite" espanhóis.

    Reduzidos à sua ultima função, candeeiros dos mortes, tiveram pior sorte explicativa que as velas, que também com elas se fazem velórios.

    Para terminar de facto a luz deste não cintila.
    Na Casa Museu de Camilo, aqui em Famalicão, podem-se vê-los em cima da escrivaninha onde Camilo passava a noite a escrever com a sua luz firme.

    Mais um vez com um texto, artigo, soberbo com que sempre nos brinda.

    Abraço


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    1. Caro Joaquim

      Quando visitei a sua casa em Trás-os-Montes já tinha muitos candeeiros de azeite, que fizeram as minhas delícias. Claro, aceito de bom grado, o convite, pois entretanto já deve ter muitos mais e o Joaquim tem o chamado olho de colecionador.

      Creio que terá razão acerca das reparações, que estes objectos foram tendo ao longo de gerações. Antigamente, não se deitava nada fora e tudo era arranjado, reaproveitado e se algum pertence se estragava era substituído. Eu próprio tenho um desses candeeiros de três lumes e quando o recebi, faltavam-lhe muitos dos seus pertences, que posteriormente fui comprando aos poucos até o completar. O resultado, é uma mistura feita por vários latoeiros, que usaram diferente ligas…

      Também tenho esse catálogo da exposição do Museu de Évora, que deve ser a única publicação dedicada exclusivamente a esse assunto.

      Recordo-me de que tem uma bela colecção deste candeeiros é o Paço Ducal de Vila Viçosa.

      Um grande abraço e muito obrigatório pelo seu comentário, que trouxe um contributo interessante a este post

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  2. Luis,
    um dia que por aqui passe terei muito gosto em lhe mostrar a coleção.
    São 143 candeeiros que se misturam com naus e caravelas. Afinal ambos fizeram luz sobre o escuro o desconhecido.
    Ambos com velas e palas, mastros e colunas, cordas e correntes dos acessórios, naves e depósitos, bandeiras e pegas.

    Abraço

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  3. Interessantíssimo. Como as formas eram funcionais foram sendo mantidas, já que as alterações não eram necessárias. Conheço apenas aquele modelo decorativo que existia antigamente (como o que postou em 2014), mas nunca percebi como funcionavam na prática. Um abraço!

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    1. Margarida

      É bem verdade. Nas sociedades tradicionais houve objectos utilitários que se foram mantendo mais ou menos inalterados durante séculos. Nesta exposição do Museu de Arte Antiga, mostram-se muitos destes objectos do período islâmico, cujas formas e usos se mantiveram quase até aos dias de hoje. Além destes candis, na exposição está um cantil de barro com quase mil anos que é praticamente igual a um que o meu amigo Manel tem e que foi recolhido de uma casa abandonada no Algarve.

      Quanto ao funcionamento deste candeeiros de azeite, para nós que vivemos nesta era da electricidade, são um bocado complicados. No entanto, já experimentei por um deles a funcionar e resultou. Com o baldinho verti azeite no depósito, coloquei o fio de uma esfregona embebido em azeite de facto aquilo dá alguma luz.

      Um abraço

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    2. Gostava de ter assistido :-) Já nem sei onde está o do meu avô. Bom Feriado!

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  4. Mais uma candeia das muitas que mobilaram as noites das populações durante muitos séculos.
    Gosto imenso destas formas intemporais, que o uso continuado revelou ser a mais funcional.
    Iluminaram os vivos e, estando a energia elétrica difundida, ficaram relegadas aos mortos, no entanto, hoje, vejo mais uma luzinhas elétricas que irradiam uma luz fixa e amorfa, diferente daquela bruxuleante destas peças, que lançavam sombras que faziam dançar as sombras e que povoaram a minha imaginação de criança através da recriação de formas fantasiosas.
    Na minha casa de família, para os lados de Pombal, havia várias candeias, que a energia elétrica só ali chegou nos anos 70 do século XX.
    Ainda guardo uma candeia utilizada pela minha avó, feita em folha de Flandres, já muito danificada, e à qual já falta a tampa que fechava o depósito, o qual era enchido com o azeite do fim do cântaro, e que já não se usava na alimentação. A minha avó não era dada a desperdícios, que a vida foi-lhe assaz difícil.
    Este tipo de peça era destinada a uma classe mais abastada que a da minha família.
    Estás de parabéns com mais um bom texto, e aproveito para enviar cumprimentos ao Joaquim Malvar e à Ângela
    Manel

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    1. Manel

      Obrigado pelo teu comentário.

      No passado não havia desperdícios e claro usavam o azeite do fim do cântaro como combustível destes candeeiros. Li também que em muitas aldeias piscatórias usavam gordura de peixe como combustível, o que dava um cheiro horrível.

      As velas feitas de cera eram um produto demasiado caro.

      Durante séculos e séculos estes candeeiros feitos em folha de flandres, barro ou numa liga de latão iluminaram o interior das casas.

      Um abraço

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    2. Obrigado Manel,
      abraço nosso, meu e da Ângela

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    3. Um grande abraço também para a Ângela

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