quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Ainda a biblioteca do Solar de Outeiro Seco ou as andanças de um livro

Enchiridium Missarum Sollemnium

Escrever repetidamente neste blog sobre uma casa que já não é da família e cujo recheio foi irremediavelmente disperso pode parecer um exercício inútil e saudosista. Com efeito, esse velho solar transmontano foi pela família vendido à Câmara Municipal de Chaves, que o deixou arruinar e esta, por sua vez vendeu-o a um privado, que se propõe fazer um projecto de reconstrução criminoso. No fundo, as mobílias do solar, o museu e a biblioteca desapareceram e o próprio edifício vai ser engolido e descaracterizado por uns anexos sem gosto.


O passado: a fachada poente do Solar


O passado: a fachada Sul do Solar



O futuro: o novo e criminoso projecto para o Solar de Outeiro Seco!!!!

Mas sempre tive a convicção, que todos os meus escritos, compilando as memórias de uma velha casa senhorial da província, acabariam por ser úteis não só para a herança cultural da aldeia de Outeiro Seco e do Concelho de Chaves, como também para a história da cultura e da sociedade. O solar dos Montalvões tal como existiu é afinal um exemplo das casas senhoriais transmontanas no passado.

A biblioteca do Solar dos Montalvões

Uma das riquezas daquela casa era a biblioteca, com os seus quase dois mil títulos, datados dos séculos XIX, XVIII, XVII e mesmo do XVI. Foi vendida em 1986 a dois alfarrabistas de Lisboa, um com loja em S. Domingos de Benfica e outro na Feira da Ladra e dela restou o catálogo realizado pelos meus avós paternos, Maria do Espírito Santo Montalvão e Silvino da Cunha. Através dessa lista e de um dos filme que o meu pai fez nos anos 60, consegui identificar um dos tesouros daquela biblioteca ou livraria como se dizia no passado o Theatrum orbis terrarum de Abrahamus Ortelius publicado em Antuérpia, na oficina de Christophe Plantin, em 1584. Mas a biblioteca foi dispersa e nada mais sabia sobre o paradeiro dos seus livros.

Contudo, há cerca de um ano fui contactado por Francisco Vilaça Lopes, que estava a fazer uma investigação sobre um livro antigo, comprado precisamente na Feira da Ladra por um amigo, José António González Carrilho, um oliventino e um lusófilo. Para quem não está familiarizado com a biblioteconomia, quando se está a tratar um livro antigo, isto é, uma obra impressa entre 1500 e 1800 é tão importante identificar a edição com também os seus antigos proprietários. Através do estudo das marcas de posse de um livro, ainda que virtualmente, pode-se reconstituir antigas livrarias conventuais ou de casas senhoriais. E conhecendo o que se lia num mosteiro, num convento ou numa casa fidalga podemos avaliar a cultura dos seus proprietários ou ainda se estavam a par das novidades dos grandes centros de conhecimento, como Paris, Antuérpia, Roma ou Amesterdão. 

A obra comprada por José António González Carrilho na Feira da Ladra apresenta a assinatura do meu trisavô, Liberal Sampaio

A obra que o Francisco Vilaça Lopes se encontrava a estudar apresentava logo no primeiro fólio, uma anotação manuscrita, o nome de Liberal Sampaio. O Francisco Vilaça Lopes colocou esse nome no Google e fui ter ao blog do meu amigo Humberto Ferreira e do Fernando Ribeiro, que por sua vez lhe facultaram o meu contacto. Confirmei-lhe então que aquela era a assinatura do meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio e que aquele livro tinha certamente feito parte da antiga biblioteca do solar da família Montalvão, muito acrescentada e enriquecida por esse meu antepassado. Contudo, a obra adquirida por José António González Carrilho um cantoral impresso, encontrava-se truncada, sem folha de rosto nem colofão e parecia impossível saber-se o título certo e relaciona-lo com o catálogo da antiga Biblioteca do Solar de Outeiro Seco. 
A obra apresenta a nota Cantochão escrita a lápis 

Mas o Francisco Vilaça Lopes esquadrinhou bem o livro e numa das folhas existia uma anotação manuscrita, com a palavra Cantochão e de facto no catálogo da biblioteca há uma entrada para uma obra designada por Cantochão, com o nº 1281, o que o levou a presumir que se tratava o mesmo livro.
No catálogo da biblioteca do solar há uma entrada para uma obra designada por Cantochão, com o nº 1281


Depois, o Francisco Vilaça Lopes fez mais investigações, pesquisou em vários catálogos de bibliotecas, leu, pediu opiniões a peritos e acabou por concluir que este cantoral trata-se do Enchiridium Missarum Sollemnium do padre João Dias, uma edição rara, impressa em Coimbra, em finais do século XVI e princípios do séc. XVII. Mas para saberem todos os pormenores deste seu trabalho de detective, convido-vos a ler o seu texto https://divinicultussanctitatem.blogspot.com/2020/11/descoberta-de-nova-edicao-do.html

O meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio

Em suma, o meu trabalho no blog sobre a biblioteca do Solar de Outeiro Seco foi útil à investigação de um bibliófilo e fiquei feliz por saber, que esta obra rara, proveniente daquele solar se encontra estimada na posse de um oliventino, amigo de Portugal e que está ser seriamente estudada por Francisco Vilaça Lopes. Esta descoberta trouxe também mais alguma luz sobre o que foi a biblioteca daquela casa, até porque pela marca de posse, sabemos que foi adquirida pelo Padre José Rodrigues Liberal Sampaio. Embora o meu trisavô fosse um polígrafo, isto é, um homem com interesses variados que iam desde o direito, à teologia, passando pela história, numismática, arqueologia, parenética e política, desconheço se também interessou-se por música sacra ou se adquiriu este livro por coleccionismo. No tempo em que viveu o mercado livreiro estava cheio de obras provenientes dos antigos conventos, que os bibliófilos, como o meu antepassado, compravam a bom preço. Realmente o percurso que um livro faz ao longo da sua existência por vários proprietários tem sempre qualquer coisa de romanesco.

A estampa do Enchiridium Missarum Sollemnium

https://divinicultussanctitatem.blogspot.com/2020/11/descoberta-de-nova-edicao-do.html

4 comentários:

  1. Realmente, esta é a descaraterização total de um edifício nobre do século XVIII.
    Quando o visitei e desenhei estava efetivamente em estado avançado de degradação, mas a sua nobreza não merecia que lhe coubesse esta sorte.
    O pátio de honra, que era um das caraterísticas mais interessantes do solar, desaparece assim como a entrada, fabulosa, na fachada sul, aliás, desaparecem todos os três lados da edifício, os virados a sul, a norte e a nascente.
    O que resta? A edificação poente (talvez a mais recente de todo o conjunto do solar) juntamente com a capela ... tudo o resto desaparece. Mais de metade da casa.
    Que as obras eram necessárias, não há dúvida, mas que transformem o edifício neste elefante branco, não era necessário, nem creio que se justifique.
    Situado onde está não se percebe o que pretende fazer com esta megalomania. Será que há justificação para tal aglomerado?
    Bem, seguramente que este projeto, dado seu volume e implantação, deve ter sido objeto de estudos preliminares e colocado a consulta pública e aprovação da câmara, e acho notório e estranho que tal tenha ido em diante.
    Será que as pessoas não se interessaram com o projeto, avaliaram-no mal, será que pensaram que aquilo era a "galinha dos ovos de oiro"? Será que não entendem que é um projeto, que, a fazer-se, estará votado ao abandono mais tarde ou mais cedo?
    Que em vez de uma ruína, ficarão com meia dúzia delas? E estas bem mais tenebrosas do que as primeiras.
    Toda a nobreza da edificação principal desaparece irremediavelmente.
    Não sei quando estará concluído, mas os estudos que se fizeram destinaram-se seguramente a extorquir dinheiros à Comunidade ou a outro organismo semelhante.
    Porque julgo que este projeto megalómano não deverá ser financiado por dinheiros privados, quase com toda a certeza.
    E assim vai a arquitetura neste país.
    Quando as coisas têm dignidade e merecem respeito, trata-se de as destruir o mais rápido possível, não vão as pessoas habituarem-se a ter coisas de qualidade no meio que as rodeia.
    Trata-se de tornar a envolvência sinistra, tenebrosa, feia.
    E as pessoas terão pensado que esta megalomania trará pessoas, dará mais emprego, mais oportunidades ... não fazem ideia do que as espera, e assim se gastam dinheiros de forma desordenada, caótica e descaracterizadora do património, e em troca de quê?
    Manel

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    1. Manel

      Aproveitei esta magnífica história de um livro proveniente da biblioteca do Solar, que reapareceu na feira da Ladra, quase 40 anos depois, para denunciar este projecto vergonhoso e criminoso de reconstrução do solar. Nem há adjectivos suficientes para classifica-lo.

      Como tu bem referes, o pátio de honra desaparece para dar lugar a um cubo envidraçado e este espaço era dos mais bonitos da casa. Tu só o viste coberto de silvas, mas eu em pequeno dormia num quarto com vista para este pátio e era lindo. Já passaram uns cinquenta anos, mas tenho essa imagem ainda bem presente na memória. O cubo de vidro é um disparate pegado. No Verão quentíssimo de Outeiro Seco aquilo deve ser uma estufa e no inverno deve meter água por todo o lado. A fachada sul, a mais antiga, talvez ainda do século XVII, com aquela escadaria em pedra cheia de dignidade desaparece totalmente, bem como o Alpendre a nascente e a fachada a Norte. Quem concebeu este projecto é um ignorante e não percebeu nada do que foi a arquitectura solarenga em Portugal.

      Como tu bem referiste, certamente este projecto foi financiado com dinheiros públicos, com o pretexto que trará emprego para a comunidade. Na prática, ninguém quererá alojar-se num sítio tão feio.

      Choca-me que em Portugal se diga a torto e a direito, que não temos a qualidade das obras primas da arquitectura italiana e é bem verdade. Mas se destruímos tudo, o que ficou do passado? Uma gigantesca Brandoa!!!

      É certo, que o interior do Solar com os seus tectos de masseira e as tabuas de castanho de metros e metros de cumprimento perderam-se irremediavelmente, mas era perfeitamente possível reconstruir as fachadas, até porque há elementos retirados do solar por toda a aldeia. Lembro-me de que no cemitério existiam colunas vindas dos alpendres da casa. Podia-se até fazer novos edificados, mas escusavam de estar junto à casa. Enfim, uma vergonha.

      Em todo o caso, o caso de este Enchiridium ter reaparecido deixou-me cheio de satisfação. Está nas mãos de um oliventino, que é um amigo de Portugal e estima a cultura.

      Um abraço

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  2. Interessantíssimo! Gostei de aprender. É uma pena que a biblioteca se tenha perdido. O projecto para o solar vai descaracterizá-lo, o que é igualmente de lamentar. Bom dia!

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    1. Margarida

      Obrigado pelo seu comentário.

      Com efeito, da biblioteca restou apenas o catálogo, mas o facto de o ter noticiado aqui no blog, permitiu a um bibliófilo conseguir identificar a proveniência de um livro comprado no mercado alfarrabista.

      O projecto para o Solar é uma vergonha.

      Um abraço

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