O meu amigo Manel foi contagiado já há uns anos pelo meu gosto por santinhos e hoje tem a sua casa do Alentejo cheia destas imagens devotas, emolduradas preciosamente em seda, enfeitadas com passamanaria e bordadas com lantejoulas, contas e a fio de prata. Este menino Jesus Salvador do Mundo é umas das peças da sua colecção e que hoje serve de pretexto a algumas considerações sobre estes trabalhos femininos, inspiradas pela leitura da obra Le monde merveilleux des images pieuses de Alain Vircondelet.
Normalmente são trabalhos conventuais, de freiras, meninas educadas em casas religiosas ou de senhoras devotas, mas nunca conseguimos data-los exactamente. Poderão ser do século XVIII, XIX ou até mesmo mesmo do início do XX.
Se a estampa é facilmente datável, porque é assinada por um gravador ou impressor, de que se conhece o período em que esteve activo, o trabalho de emoldurar nunca está assinado ou datado. Sabemos apenas que é antigo, pois apresenta as marcas do tempo, como as sedas sujas pelo pó dos séculos, o fio de prata oxidado ou os vidros com bolhinhas, sinal de que foram ainda feitos artesanalmente.
Estes registos antigos distinguem-se também dos modernos pela habilidade e técnica muito elaboradas, levadas ao virtuosismo pelas mãos destas senhoras do passado. Porque de facto, ao contrário dos registos que se produzem hoje em dia, quem fazia estes trabalhos há 100 ou 200 anos fazia-os com uma devoção intensa, quase que como uma oração intima e pessoal, para tornar ainda mais preciosa uma imagem da Virgem ou do Menino Jesus, que depois de terminada, se tornava quase uma relíquia na cela, no quarto ou no oratório, à qual se recorria em momentos de aflição. Estes registos do passado eram muito mais do que peças bonitas, eram objectos de piedade, carregados de virtudes contra a doença e o mau olhado e diante dos quais se rezava e se procurava acesso a um plano divino.
Apesar de hoje muitos de nós termos perdido a crença, ou se mantemos a fé, esta tornou-se uma prática mais serena, mais filosófica, não conseguimos deixar de ficar impressionados com o virtuosismo destes registos, que teatralizam simples estampas e transformam-nas em objectos mágicos.
Bibliografia consultada:
Le monde merveilleux des images pieuses / Alain Vircondelet. - Paris: Hermé, 1988
É bem verdade que não consigo resistir a estas peças frágeis e tão belas, feitas com um cuidado infinito, e eu sei o quanto trabalho está nelas, sobretudo quando tenho que restaurar alguma.
ResponderEliminarÉ necessária uma paciência infinita e uns bons olhos, que aliás já me vão faltando, pois já não são como foram, infelizmente.
E depois de ver a casa-museu de José Régio, em Portalegre, e os registos que ali se encontram em exposição, então fiquei definitivamente convencido que este é um caminho certo. Não que os meus registos se possam comparar aos que ali se encontram, pois aqueles têm uma qualidade muito superior. Mas "quem não tem cão, caça com gato", como soe dizer-se.
É curioso igualmente observar as formas de produção destas peças, o que é visível quando se desmancham bocado a bocado. Muitas vezes considero esta habilidade artesanal como genial, pois são soluções muitas vezes simples e práticas, mas absolutamente eficazes.
Este que aqui está, deve ter estado num ambiente muito húmido, e, infelizmente, durante muitos anos, pois o fio de prata, que foi um dia brilhante, hoje apresenta-se oxidado.
A seda que reveste a estrutura tem manchas, que julgo serem de humidade também.
Preferi não lhe tocar, com medo que, em vez de melhorar, a arruinasse de todo.
Assim, está da mesma forma como a adquiri, só lhe limpei cuidadosamente o pó, cheio de receio que a seda se quebrasse ou rasgasse, como aconteceu com outros que tentei a limpeza, ainda que com um pincel de cerdas muito suaves.
Mas é uma graça!
Manel
Manel
EliminarEstes registos são verdadeiros exercícios de virtuosismo e tem a graça de que nunca são iguais. Cada um tem a marca pessoal e a inspiração da sua criadora.
A Casa Museu José Régio tem uma bela colecção destes registos, mas estão protegidos do pó, da humidade ou do calor atrás de vitrinas. Por vezes, olho para os meus, que estão nas paredes e sinto que os devia guardar atrás de vitrinas, mas enfim, não tenho espaço.
Um abraço
Precioso trabalho de bordado. Acho que à prata. Paciência de convento.
ResponderEliminarJorge
EliminarObrigado pelo teu comentário. Creio eu que é bordado a prata e claro está, para limpar era preciso desmanchar todo o registo e pior que isso, reconstituir os passos todos do bordado. Só mesmo uma freira com todo o tempo do fundo poderia fazer esse trabalho. Um abraço