sexta-feira, 14 de maio de 2021

Uma galheta de altar francesa da segunda metade do século XIX


Comprar velharias é um vício e por mais que prometa a mim próprio parar, acabo sempre por trazer para casa mais um traste cada vez que vou a uma feira. Foi o que aconteceu com esta encantadora jarrinha, que um vendedor na Feira de Estremoz me colocou na mão por um preço absolutamente irrecusável. É uma pequena jarra com um vidro de muito boa qualidade montada num latão dourado e que me pareceu de imediato um trabalho francês dos inícios do século XX. Nessa época os franceses produziam muitas destas peças em vidro, com as montures em latão dourado, tais como caixinhas para guardar relógios ou jóias ou ainda os globes à mariée.

O vidro está decorado com parras e uvas

Em todo o caso, achei desde logo que esta peça era mais que um bibelot para ornamentar uma casa burguesa do início do século XX e olhando bem para a decoração do vidro feita com parras e uvas, suspeitei que fosse uma galheta de altar destinada a conter o vinho, durante a celebração da eucaristia. 

Para confirmar esta minha intuição, lancei-me então nas minhas buscas no Google. Comecei por abrir na Wikipédia portuguesa o artigo sobre liturgia católica e quando encontrei referência às galhetas de altar, mudei para a Wikipédia francesa para perceber qual era o termo francês usado para designar aqueles objectos litúrgicos. Em França as galhetas de altar são as Burettes e no motor de busca do Google coloquei então a expressão Burettes Eglise Laiton dore antiquites e imediatamente encontrei umas quantas dessas galhetas à venda no e-bay, quase idênticas à minha e datadas da segunda metade do século XIX. 


Conjunto de galhetas de altar e tabuleiro à venda no e-bay

Desta maneira, confirmei que a minha jarra foi fabricada em França, era originalmente uma galheta de altar e fazia par com outra destinada à água. Do conjunto original constava também uma pequena bandeja em metal dourado, com dois espigões onde as galhetas eram colocadas, impedindo que durante a missa, tombassem. E com efeito, a base da minha galheta apresenta um orifício para ser encaixada no espigão da bandeja.



Mas, nem sempre as informações dos sites de venda on-line são fiáveis, pois os vendedores tentam sempre convencer-nos que as suas peças são mais antigas e de melhor qualidade do que na realidade são e continuei à procura pelo Google até encontrar um sítio com informações mais credíveis. Localizei num inventário do Património da Ile-de-France, https://inventaire.iledefrance.fr um par de galhetas, muitíssimo semelhante à minha, também com a bandeja e ainda com estojo original onde estavam guardadas, apresentando este último a marca do fabricante Fabrique d'ornement d'église / Chasublerie - bronzes - orfèvrerie / Maison Dupuis. 5 rue du Vieux Colombier / Paris. Na ficha desta peça, confirmava-se a datação atribuída nas páginas de vendas on-line, segunda metade do século XIX. 


Galhetas com bandeja e estojo. Foto de  https://inventaire.iledefrance.fr

Fiquei a matutar se eventualmente a minha galheta poderia ter saído da Maison Dupuis, na rue du Vieux Colombier, em Paris, mas continuando as minhas pesquisas descobri um catálogo de 1893, da Manufacture d'orfèvrerie, de bronzes et de chasublerie, na rua do Pape Carpantier, em Paris, que entre muitas coisas também fabricava galhetas semelhante à minha. 

Catálogo da Manufacture d'orfèvrerie, de bronzes et de chasublerie

Enfim, é um bocadinho difícil atribuir esta galheta a este ou aquele fabricante francês. Embora todos nós associemos sempre Paris a revoluções, movimentos jacobinos, pintores arrojados, actrizes de teatro excêntricas e de uma forma geral à boémia, a capital francesa era também um centro importantíssimo de produção de artigos religiosos, onde proliferavam casas que exportavam estampas piedosas, imagens de Nossa Senhora de Lourdes, do Sagrado Coração de Jesus e outras beatices para todo o mundo católico, apostólico e romano.

Fabricada em França, na segunda metade do século XIX, a minha galheta para o vinho é apenas uma peça desirmanada de um conjunto, sem grande valor comercial, mas fica muito bem em cima de um armário onde exponho todas as minhas beatices, muitos meninos Jesus, relicários, imagens de vestir, santos de barro que o tempo quebrou e outros objectos de devoção católica, hoje reformados das suas funções originais na casa de um homem sem crença, mas com um gosto por recriar estes ambiente devotos do passado.



9 comentários:

  1. A peça é muito bonita, claro, se bem que inútil, claro, como são quase todas as que adquirimos.
    O interessante é a quantidade de informação que vais descobrindo, pois, para mim, não passaria mais de um frasquinho de vidro com monture e tampa.
    Enfim, as coisas que a net tem em reserva são inesgotáveis, desde que se saiba fazer uma pesquisa que revele o respetivo enquadramento.

    Ainda esta semana estivemos numa casa onde estas "peças inúteis" encontraram um lugar à laia de objetos sentimentais que acabam por formar um passado familiar, e lhe dão contexto nos tempos conturbados, vazios, minimalistas e estéreis que vamos vivendo
    Manel

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    1. Manel

      É verdade, esta galheta é uma peça inútil, sem materiais nobres, mas tão bem executada, com tanto gosto, que se torna encantadora.

      Sobretudo quando se trata de peças europeias, a net permite-nos identificar facilmente estas velharias. Além dos inevitáveis sites de venda on-line, há sites institucionais de museus, bibliotecas ou universidades com informações fiáveis. Claro, toda esta pesquisa dá imenso gozo e vou aprendendo imenso.

      Formar um ambiente nas nossas casas com estes objectos do passado, torna uma casa acolhedora, onde apetece espreitar, mexer ou pedir aos donos da casa a história das peças.

      Um abraço

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  2. Caro Luis
    Estou sempre com curiosidade em verificar o que de novo velho aparece e sempre me apercebo que algum objecto foi eleito e com ele a moldura educacional de apurada pesquisa e sensibilisação de apenas reportar factos ou o mais possivel correcto, isso é cautela e sabedoria. Por vezes encantamo-nos por objectos que abrem portas às memórias, outros porque são deslumbrantes e provocam diálogos constructivos, no fundo o que move estas coisas todas é a paixão pelo antigo, uma porta que se abre em cada objecto numa fuga de um mundo actual que nos arrepia. Continuação de bom trabalho
    Cumprimentos
    Vitor Pires

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    1. Caro Vítor

      Muito obrigado pelo seu comentário tão simpático.

      Digamos que não sou um coleccionador focado apenas numa área temática, por exemplo faiança portuguesa do século XIX. Interesso-me um pouco por tudo o que é velharia, desde porcelana a fotografias de modo que os conteúdos do blog acabam por ser variados.

      Redescobrir a função deste objectos antigos, como esta jarrinha, é um a actividade que me dá imenso prazer e gosto de partilhar o resultado destas pesquisas. Quantas vezes já tive comentários que acrescentaram dados novos ao que escrevi.

      Um grande abraço

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  3. É muito bonita. Gosto imenso destas suas pesquisas. Um abraço!

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    1. Margarida

      Muito obrigado pelo seu comentário. Estas pesquisas fazem parte do gozo de comprar uma nova peça.

      Um abraço

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  4. Caro Luís, como sempre notável!
    Hoje, fiz uma publicação em que lembro O Solar dos Montalvões, em Outeiro Seco.
    Inspirador quando tive meu blog, hoje continua a ser uma referência na minha página no Facebook. Abraço
    Pode ver: https://www.facebook.com/profile.php?id=100013743252052

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    1. Caro Joaquim

      Desde que descontinuaram o internet explorar, tenho algumas dificuldades em aceder ao facebook e mesmo no blog tenho tido problemas grandes. Este último ano e meio tem sido um horror, pois os informáticos fechados em casa, lembraram-se de introduzir alterações em tudo e passo a vida a lutar contra novas aplicações e outras macacadas inúteis. Mas prometo ir ver a sua página de facebook,

      Um abraço

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