sábado, 27 de maio de 2023

Os mistérios do Rosário: uma estampa flamenga dos finais do século XVII, inícios do XVIII



Embora há muito que tenha perdido a fé, gosto muito de registos de santos e tenho as paredes da casa cheias com eles e ainda um grande envelope com uma vintena destas imagens, em fila de espera, aguardando pacientemente um lugar.

Conhecendo este meu gosto por beatices, uma amiga, a Carmo, ofereceu-me uns quantos destes registos, que eram da sua mãe. Encantei-me logo por um deles, impresso em pergaminho e aguarelado à mão, uma coisa ingénua com o seu quê de popular, que são os que sempre me agradam mais.



Esta estampa apresenta o nome do autor abreviado Cor. v. Merlen, isto é, Cornelis van Meirelen (1654-1723), um impressor /gravador muito conhecido, de que já apresentei aqui um S. Sebastião. Nasceu e morreu em Antuérpia, na actual Bélgica e foi um editor prolixo de registos de santos, muitos deles coloridos, mas também de gravuras mais sérias e até de baralhos de cartas. Como era vulgar na época, em que os ofícios passavam de pais para filhos, o seu pai Theodor van Merlen II (1625-1672) foi também impressor e depois da sua morte de Cornelis a viúva e filhas continuaram o negócio. No período em Cornelis van Meirelen viveu, Antuérpia estava entre os principais centros editoriais da Europa e além de livros, exportava para o mundo católico e apostólico romano imagens de santinhos como esta, destinadas a devoções privadas.

No rodapé desta folhinha em pergaminho, há uma legenda em latim, MYSTERIA S. MI ROSARII, que creio quem português se pode traduzir por Mistérios do Santíssimo Rosário

É uma representação de Nossa Senhora do Rosário, mas também a imagem dos mistérios sobre os quais se medita enquanto se reza o Rosário, isto é, os acontecimentos fundamentais da vida de Cristo e Maria. Nesta gravurazinha a os mistérios são em número de 15. Só em 2002, com o Papa João Paulo II é que foram acrescentados mais 5 mistérios.

Em francês, o Rosário traduz-se por Chapelet, cujo termo deriva, de Chapel, isto é, capela. Esta estampa, no fundo representa 15 capelinhas, com imagens da vida de Cristo e de Maria, nas quais as pessoas se deteriam para meditar e fazer umas quantas orações, só que em vez de estarem numa igreja, faziam-no em casa, como que numa peregrinação interior.

Na época em que a estampa foi impressa, os mistérios eram os seguintes:

Os gozosos: 

1- a anunciação;




2- a visitação;



3- o nascimento de Jesus; 



4 -a apresentação ao templo;



5- A perda e encontro do Menino Jesus no Templo;




Os dolorosos: 

1- a agonia de Jesus no horto;



2- a flagelação;



3-  a coroação de espinhos;



4 Jesus carregando a cruz;



5-  a crucificação;




Os gloriosos: 


1- a ressurreição de Jesus;



2 - a ascensão;



3- o Pentecostes;




4 - a assunção;


5- a coroação de Maria.



Como objecto de devoção, o rosário é muito antigo, dos primeiros séculos do Cristianismo, mas o culto à Virgem do Rosário só começou a partir dos séculos XIV e XV por influência dos dominicanos.

Quanto à datação desta estampa em pergaminho e aguarelada à mão, foi impressa em Antuérpia por Cornelis van Meirelen entre 1672, data da morte do pai, ano em o jovem terá assumido o controlo da oficina e 1723, ano em faleceu.

Talvez os católicos praticantes que leiam estas linhas, achem as minhas explicações pueris, mas para mim, que recebi uma educação religiosa deficiente e não tenho fé, a iconografia desta estampa foi um mistério, que resolvi tirar a limpo. Gosto sempre de entender e saber mais sobre as velharias que ponho em casa.



Ligações e bibliografia consultadas:




Iconographie de l'art chrétien / Louis Réau. - Paris : Presses Universitaires de France, 1955

6 comentários:

  1. Aprendo alguma coisa quase todos os dias. Consigo aprendo sempre que leio as suas pesquisas tão bem feitas.
    Obrigado e um abraço

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    1. Muito obrigado. Uma objecto novo em minha casa é sempre um pretexto para tentar entende-lo, saber onde foi executado e o que significa e isso é um processo, que dá muito gozo e que gosto de partilhar. Talvez seja a forma de não estar a falar sozinho. Um abraço!!

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  2. realmente é um prazer as sempre novas descobertas

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    1. António

      Muito obrigado pelo teu comentário. Como vivemos num mundo já bastante descristianizado, temos em descodificar algumas destas imagens religiosas. Imagino que na família da minha mãe, que era gente muito devota saberiam identificar de imediato o significado desta estampa.

      Um abraço

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  3. Confesso que o desenho não é muito entusiasmante, no entanto, o colorido dá-lhe um encanto especial.
    Mas, com a tua pesquisa, o conteúdo revelou-se mais elucidativo sobre as práticas religiosas esquecidas.
    Quem hoje sabe sobre estes assuntos? Muito poucos o saberão, e terão de ser iniciados na prática da religião católica.
    Gosto muito do significado oculto destes objetos / representações icónicas, pois creio que uma igreja, ou os objetos que rodeavam os crentes em tempos idos, falavam uma linguagem particular e clara para quem a sabia interpretar, visto que a sociedade de séculos passados não sabia ler, muito menos escrever, pelo que a significação visual / interpretação era fundamental.
    Boa pesquisa, como sempre
    Manel

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    1. Manel
      A graça desta estampa é o seu colorido naif, que é mais realçado por ter sido impressa em pergaminho.

      Embora seja um amador de arte religiosa, nunca tinha visto esta iconografia por cá. Mas como tu bem referiste, as pessoas devotas, da geração da minha mãe ainda sabiam o significado destas representações. Hoje temos que recorrer a manuais para as descodificar.

      Um abraço e obrigado pelo teu comentário

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