Além de forma de culto aos mortos, escrever memórias familiares é sempre uma tentativa de descobrirmos mais sobre nós, entender como somos e como nos formámos, pois acreditamos que somos uma combinação genética, fruto de várias uniões entre homens e mulheres que nos antecederam. Procuramos por isso descobrir nas fotografias dos nossos antepassados os mesmos olhos, uma boca e um queixo semelhantes aos nossos, como se de certa forma houvesse elementos fisionómicos imortais, que passassem de geração em geração.
Estes pensamentos foram-me despertados pela fotografia de um antepassado meu, o Francisco Manuel, que morreu em 1916, com 25 anos, de um acidente de caça. Tal como todas as pessoas que morreram jovens, manteve uma certa áurea em volta da sua memória. Ninguém se recorda dele como um velho chato, rezingão ou decrépito e incontinente, mas sempre como o jovem finalista de medicina que partiu demasiado cedo.
Quando eu tinha 16 ou 17 anos, a sua sobrinha, descobriu que eu era parecido com ele e talvez o fosse na altura. Tal como ele tinha igualmente o brilho da juventude, o rosto comprido e na altura vestia-me de uma maneira retro, com roupas antigas do meu pai, o que me dava um certo ar de fotografia do passado. Aliás, ainda hoje cultivo um pouco esse estilo.
Mas a procura de parecenças, fica pela fisionomia. Além de outra fotografia dele, ainda criança, tirada na companhia dos pais e irmã (a minha avô materna), pouco ou nada sei dele. Era finalista de medicina e morreu num desastre de Caça e nestas duas frases praticamente se resume o que ficou dele. Deixou também algures no país um filho ilegítimo. Presumo, que no Porto, porque a Faculdade de Medicina já existia naquela cidade por volta de 1912-1916 e tenho ideia que ter ouvido falar que essa sua família secreta estava Porto. Claro desse filho ou filha do Francisco Manuel Pires de Morais, que também já dever morrido não sei nada.
Mas, creio que vou arranjar uma bonita moldura para a fotografia do Francisco Manuel e vou continuar a olhar para o seu rosto algo judaico e rever nele a minha própria juventude.
Faleceu dois anos antes do meu pai ter nascido!
ResponderEliminarAgora que andas a ler a trilogia que a Yourcenar escreveu sobre a história desconhecida da sua família, dás conta da dificuldade que qualquer um de nós sente ao refazer os nossos antepassados, quando não existem dados para tanto.
Alguns, conheço-os, mais presumidos, inventam como antepassados condes, duques e marqueses bafientos e entediantes, como se fossem medalhas a ostentar ao peito, quando por baixo delas corre sangue prefeitamente plebeu, além de vulgar de Lineu, mas cuja história, se verídica, daria uma obra bem mais emocionante, com certeza.
Outros, inventam personagens de faz-de-conta, todos muito bonzinhos, escrupulosamente limpos de qualquer mácula, como se nunca tivessem chegado a viver como qualquer comum dos mortais.
A Yourcenar, por mais ilustrada e dotada de uma lógica invejável, para lá de ter sido uma fantástica escritora, faz algo que me surpreende pela lógica: consegue extrapolar, e aplica-o à sua família, o que ela, dotada de erudição, sabe sobre a vida de pessoas vulgares, que frequentassem e se tivessem regido pelas leis sociais do meio em causa, e que tivessem vivido àquele tempo naquela região.
Mas sem o génio dela dificilmente teríamos aquela trilogia exemplar sobre a história de uma família.
Estás a seguir uma linha inspirada na dela, escrevendo sobre uma pessoa da qual quase nada sabes, mas que, no entanto, deixas aqui o contributo para que não passe à história como mais um anónimo que nasceu, viveu e morreu e emprestou a cara durante um momento da vida para que se soubesse como era!
Que terá sucedido ao filho/a espúrio/a?
Que vida terá levado? Fica a dúvida!
Como a dúvida é sempre mais rica em emoção e empolgante do que a certeza!
Manel
Caro Manel
ResponderEliminarFizeste um belíssimo comentário e muito bem redigido.
De facto ando às voltas com a Yourcenar e este texto acusa as preocupações e os pensamentos que a leitura da obra dela me desperta. São apenas pequenos esboços feitos à medida do meu tempo livre e do formato de um blog e das impressões que causam as fotografias.
obrigado
Tivesse eu um décimo do seu talento e erudição.
Caro Luis,o resgate das imagens e lembranças dos nossos familiares ou outras pessoas, há muitos anos mortos, é uma necessidade que chama desde as profundezas da alma e é muito importante cuprir e nao esquecer.Eu nao o fiz em outro tempo talvez por provenir duma familia onde todo o que tinha relaçao com a morte se falava baixinho.Mais agora com 55 anos nas costas, e vendo a vida de outro jeito, tambem sinto a vontade de cuidar dessas relíquias.Gosto muito de comprar nos leiloes molduras para reutilizar,as quais a maioria pertencem a fotografías antigas de desconhecidos.Mas com muito repeito as tiro e guardo em local adecuado para nao se estragarem.Muito bom o seu post,o demais está dito todo pelo Manel....uma bencao para Francisco Manuel.Carlos
ResponderEliminarCarlos
ResponderEliminarGostei do seu comentário. Ver as fotografias antigas desprezadas no chão das feiras de velharias é sempre uma coisa arrepiante. São como campas abandonadas há muito ou crianças que morreram cedo e já não há ninguém para as chorar.
Abraços e volte sempre