Num post escrito há mais de um ano contei como conheci um homem na Baixa, que tal como eu se encontrava a esgravatar um contentor das obras. Enquanto eu mexia no lixo pela excentricidade de procurar azulejos antigos, o senhor fazia-o por necessidade, pois sofria de uma hérnia, estava desempregado da construção civil e sobrevivia da venda de ferragachos que ali apanhava. Metemos conversa, acompanhei-o até casa e vendeu-me uma quantidade enorme de azulejos do chamado motivo Bicha da Praça, provavelmente do século XIX.
Fachada de casa revestida com azulejos bicha da praça. Fronteira |
Segundo a obra Azulejos de fachada em Lisboa/ A. J. Barros Veloso, Isabel Almasque- Lisboa: CML, 1989, este padrão de azulejos foi fabricado pela Viúva Lamego e a sua aplicação generalizou-se em cozinhas, átrios de escadas, fachadas de prédios por todo o Portugal, mas também no Brasil. O nosso amigo brasileiro, o lusófilo Fábio Carvalho enviou-me há bem pouco tempo imagens da cúpula de uma Torre Sineira no Rio de Janeiro, toda revestida com este padrão.
Os azulejos que comprei aquele senhor deserdado da sorte, foram para o Manel que me reembolsou do dinheiro e gostou tanto deles que foi comprando mais bicha da praça em feiras de velharias e sites de leilões, com o objectivo de os colocar na sua casa alentejana.
Nesta Páscoa, aproveitamos as férias para finalmente colocar os azulejos e foi uma bela empreitada pois ao todo o painel a colocar contava com 162 azulejos.
Primeiro houve que fazer medições, para definir a área onde havia que tirar o reboco. Como os azulejos não chegavam para revestir tudo e deixaram-se espaços vazios atrás dos dois fogões.
Depois foi agarrar nos martelos e nos escopros e partir todo o reboco, até chegar à ossatura da casa. O Manel e eu demorámos uma tarde inteira neste trabalho e no final, a cozinha dele parecia a Bósnia-Herzegovina em plena guerra, com poeira a esvoaçar, fragmentos de cal e areão por todo o lado. Embora nesta altura, o nosso Manel, que tem a mania das limpezas já estivesse à beira de um ataque de nervos, a jurar que ia enterrar os restantes azulejos, que comprou, não deixamos de observar com alguma surpresa os vários sistemas construtivos da casa.
Xisto, argamassa e tijolo burro |
A parede que coincide com a fachada foi feita com uma mistura de xisto, argamassa e tijolo burro, a da chaminé com um tijolo burro finhinho e a terceira parede a fechar o U com um Tijolo burro mais grosso.
O tijolo burro |
No dia seguinte, começamos a colocação dos azulejos, primeiro, junto ao chão, uma fiada de azulejos marmoreados e só depois o do padrão propriamente dito, como era tradicional na azulejaria portuguesa.
Foi um trabalho complicado de acertar os desenhos do bicha da praça, pois descobrimos que tinhamos três tamanhos ligeiramente diferentes de azulejo, provavelmente correspondendo a distintas épocas de fabrico, pois presumo que Viúva Lamego terá produzido este motivo décadas a fio. Até a pasta é diferente de uns para os outros.
O trabalho lá foi evoluindo e no dia seguinte concluímos o trabalho de colocação. Usámos massa de retocar paredes para colar os azulejos, embora o mais recomendável seja a cal hidráulica misturada com areia.
Depois de tudo bem seco, foi necessário limpar com uma esponjinha molhada para retirar o excesso de massa e ainda arrumar e limpar toda a cozinha. Foi uma trabalheira, mas a cozinha do Manel, com a azulejaria bicha da praça e decorada com o cantão popular ganhou a beleza das antigas casas portuguesas.
Olá Luís e Manel - Muito obrigada pela partilha - dei um clique inadvertidamente - perdi o meu comentário...
ResponderEliminarConfesso que aguardava com alguma expetativa a colocação dos ditos azulejos.
Admirável o V/empenho em executar o trabalho - também admirei a criatividade e a estética na colocação - o rodapé em séptia esponjado é um dos meus favoritos.Ainda o contraste na parede lateral de uma fila de outros em azul pombalinos(?).
O cenário da cozinha catapultar-me para as cozinhas conventuais - embora a do Manel de menor dimensão é maior na grandeza do recheio: cataplana em cobre,barros,faiança em cima do fogão - bela bacia - o que dizer da coleção de inegável valor - predominante azul a forrar o chapéu da chaminé que se prolonga pela parede da cozinha... o fogão a lenha fez-me lembrar a minha infância - o meu seria mais apelativo pelos dourados em latão, os varões, torneira, aros). Gostei de ver o molho de lenha e da panela de alumínio ao fogão - o almoço(?). Gostei da bancada em lajes de cerâmica iguais ao que me parece do chão da sala que casaram muito bem com o lava loiças em mármore(?). Gostei dos pormenores: panos da loiça estendidos no varão do fogão, pote em barro com as colheres e talheres altos, caneco com a escovinha de lavar a loiça e do saleiro.
Ninguém diria que é uma cozinha de um homem - tal a exuberância dos objectos e a sua distribuição.
Sei que vou andar dias com esta cozinha na minha cabeça - isso é muito bom- dormi mal - acordei doente - ao abrir o PC deparei com esta maravilha- o meu remédio!
Parabéns aos dois pelo excelente bom gosto, também pelo trabalho exímio - só boas amizades conseguem dar ajuda, saber e partilha, porque os falsos amigos quando chamados - não estão disponíveis!
Sei que me alonguei...as minhas desculpas, também porque fiquei com um nadita de inveja...dizem ser pecado, que fazer, sinto!
Beijos
Isabel
Isabel
EliminarMuito brigado pelo seu comentário.
Além dos azulejos, quase tudo nesta cozinha é reciclado, comprado em segunda mão ou descoberto no chão de casas de velharias.
O lavabo é de pedra de liós e comprado da demolição de um prédio antigo. Estes lavabos eram muito comuns nas cozinhas dos prédios lisboetas até aos anos 60. Desde há uns anos para cá as pessoas deitam-nos fora para colocar lavabos em inox...
O fogão de lenha foi comprado em segunda mão.
A tijoleira é moderna, mas feita segundo processos artesanais. Passa por um processo de secagem ao sol e por vezes uma ou outra bicharada deixa por lá as marcas das suas patas. Galinhas, cães ou gatos. Como bem observou é usada no chão e na bancada.
Ora a Maria Isabel não tem que ter inveja. Agora já tem uma sugestão para usar os azulejos velhos que foi catando aqui e acolá.
De facto tem razão, o objectivo desta obra foi procurar um certo ar conventual e julgo que se conseguiu essa sugestão
Beijos
O trabalho deve ter sido imenso, cansativo, mas o resultado está INCRÍVEL! Parabéns rapazes! Gostei muito que tenham feito a barra na base com os marmoreados, o que deu mais beleza e leveza (pois assim o padrão, ao não tocar no chão, e o recesso do padrão escuro na base, ficou mais leve, a flutuar), como tb deixou o conjunto com uma boa cara de autenticidade.
ResponderEliminarEu teria ADORADO ajudar na parte de quebrar parede. Destruir parede com marretas é uma excelente higiene mental. Já a parte de limpar os escombros eu ia sair correndo para não ter que me envolver. Gosto de bagunçar; arrumar já não é lá comigo. Voltaria apenas na hora de colar os azulejos na parede. Deve ter sido lindo ver o padrão pouco a pouco se formando.
abraços!
Fábio Fartei-me de rir com o teu comentário.
EliminarLimpar é muito chato e este pó entranha-se por todo o lado. Foi também um sarilho empurrar o fogão de lenha de um lado para o outro, que pesa toneladas. Mas o resultado foi muito bonito e quando ollho para esta azulejaria toda também me recordo de ti e do longínquo Rio de Janeiro, que ainda conserva azulejos portugueses, aqui e acolá.
Abraços
Obrigada Luís e Manel por nos permitirem desfrutar destas lindas imagens e até acompanhar os trabalhos desta vossa obra.
ResponderEliminarO bom gosto que aqui se vê acaba por ter um efeito pedagógico. Mostra como, com materiais antigos recuperados e sem estragar nada numa casa antiga, se consegue uma decoração magnífica e adequada à vida prática.
Demorei um bom bocado a apreciar todos os pormenores, desde a barra de azulejos esponjados a formar um rodapé contrastante até cada um dos pratos de faiança, culminando no belo conjunto de “cantão popular”...
Que maravilha!
Parabéns aos dois por esta parceria tão bem sucedida.
Abraços
P.S. Gostei muito de ver aqui o Fábio Carvalho a comentar com o seu bom humor :).
Já tenho saudades dos posts com que nos brindava no Porcelana Brasil.
Quando teremos mais?
Maria Andrade
EliminarEstá cheia de razão. Esta obra prova que existe uma decoração aternativa ao estilo IKEA e ao estilo tia de Cascais, patente na maioria das revistas da especialidade. Também prova que se podem usar coisas antigas sem gastar milhões em antiquários elegantes.
De facto usou-se aqui a reciclagem, coisas apanhadas do lixo, imaginação, trabalho e um certo espírito de aventura que mostra que isto das velharias é uma coisa bem divertida.
O Fábio cada vez que regressa a Portugal readquire um ânimo novo.
Bjos
Parabens, bom trabalho.
ResponderEliminarCaro Atomico.
EliminarMuito bem vindo a este blog e obrigado pelo comentário. Espero poder continuar a contar com a sua presença neste blog.
Abraços
Luís!
ResponderEliminarQue surpresa maravilhosa!
Primeiro poder ver a bela cozinha do Manel, a quem aproveito para dar os meus sinceros parabéns e depois, o deslumbre de ver a coleção das peças "Cantão", que eu já sabia que o Manel possuía, e que me deixou logo deveras curiosa. Já conhecia algumas peças daqui do “velharias”, mas vê-las, assim expostas, revelando um bocadinho do gosto do seu dono, tem outro sentido.
Mas voltando à cozinha " a menina dos olhos" deste post. Subscrevo-a inteiramente; os azulejos são uma graça e só de pensar no trabalho que a sua colocação deu, sinto-me completamente desastrada. Nunca seria capaz de “casar” tantos azulejos! Os cobres na chaminé, misturados com os objetos de uso corrente estão fantásticos. Também reparei na banca da loiça, nos azulejos, nos “ratinhos” lá em cima…. Enfim, um deleite.
Obrigada Luís e Manel, por permitirem esta partilha, sobre o vosso excecional trabalho.
Beijos aos dois
Maria Paula
EliminarÉ muito simpática. Creio que este post mostra mais uma vez os resultados fantásticos que se podem alcançar mediante a aplicação de azulejos a um espaço. Na minha casa já tinha experimentado, mas com conjuntos que nunca ultrapassaram os 40 azulejos. Aqui foi a primeira vez que se usou que se montou um painel grande e o resultado foi de facto muito bom.
Bjos e obrigado
Que cozinha deliciosa!!! Gosto de tudo. Uma cozinha que se fôr usada todos os dias dará certamente trabalho a manter limpa (deixem-me só dizer que é mesmo à homem, fazerem toda aquela poeirada sem tirar as travessas e pratos da parede)...
ResponderEliminarParabéns aos dois pela paciência, habilidade e bom gosto!
Ana Silva
Lolol. Ana Silva
ResponderEliminarTalvez o gosto pelas velharias nunca seja prático. Um amigo meu chamava a estas peças todas que vamos recolhendo "apanha-pós", o que vai de encontro ao que a Ana escreveu. Mas o gosto pelos objectos antigos é quase sempre romântico e consequentemente irracional irracional. Práticas são as cozinhas Miele, mas falta-lhes a poesia desta cozinha do Manel.
Muito obrigado pelos seus parabéns e palavras simpáticas.
Abraços
Nem consigo ter tempo para comentar esta cozinha, mas agora cá vai!
ResponderEliminarAntes de mais, não quero deixar de vos agradecer a vossa simpatia, e calor humano, que se traduziram nas palavras bonitas que dirigiram ao Luís e com que, igualmente, me mimosearam ... senti-me mais alentado face ao trabalho hercúleo que me espera ainda.
No entanto, a quem eu tenho mesmo de agradecer é ao Luís, que, não contente por me ajudar nesta tarefa árdua, me aturou o mau génio, pois, como deve compreender quem me conhece bem, eu detesto estes trabalhos que me sujam a casa toda, após ter estado medianamente limpa!!!!
E quando falo em mau génio, é mesmo MAU GÉNIO!!!!!! de tal forma que só desaparece se o resultado valer a pena!
E neste caso valeu a pena!
O Luís foi um santo ... salvou-se de ser atirado cozinha fora, se o resultado não fosse aquele que tinha na cabeça e que queria ver concretizado :-) (não é verdade Luís, mas que sou insuportável por vezes, lá isso sou! Dou a mão à palmatória).
Fábio, bem que necessitaria de mais um par de mãos a partir a parede ... hehehe
Os azulejos que a Maria Isabel reparou (sempre observadora, esta senhora), na parede lateral, não são pombalinos, mas sim réplicas de outros antigos, com que antes ornamentavam as paredes de cozinhas antigas, representando peças de caça e peixes pendurados, obra saída das mãos da nossa inestimável Cristina Pina, ali à R. de S. Vicente de Fora.
Foram baratinhos, com preço especial, o que muito lhe agradeço!
Os azulejos representando peixes pendurados não se vêem na fotografia, mas também lá estão.
O lavatório de cozinha, em boa pedra de lioz, fui buscá-lo a um terceiro andar (sem elevador), num prédio que estava a ser remodelado ali para o Bairro das Colónias, aos Anjos. Pesa centenas de quilos e foram necessárias 3 pessoas bem possantes para a transportar ... custou-me 40 euros e as mãos todas esfoladas!
Estas pias foram todas substituídas por lava-loiças em inox!
O frigorífico foi-me oferecido por um amigo, o fogão a gás foi comprado em 2ª mão por 80 €, o de lenha, igualmente em 2ª mão, eu e o Luís fomos buscá-lo a Paços de Ferreira por 150 €, e assim por diante.
São tudo reaproveitamentos de coisas que as pessoas não queriam.
Os azulejos foram comprados por várias vezes (tenho ainda mais algum azulejo deste motivo da bicha-da-praça, e que aguarda vez para ser colocado, o que não farei, enquanto me lembrar o que este custou ... risos) e, no total, não me custaram mais de 180 €
E as loiças, algumas foram herdadas, outras compradas ao longo de anos, mas todas adquiridas relativamente baratas, pois o dinheiro não abunda pelos meus lados, como deve acontecer com muitas outras pessoas!
O armário louceiro desta cozinha, que aqui não se vê na fotografia, é uma peça já centenária, feitas em pranchas maciças de pinho, que em tempos pertenceu à minha avó, e tinha sido já pintada por três vezes, formando uma casca espessa e suja de tinta.
Depois de ter sido invadido pelo caruncho, passou, durante dezenas de anos, para uma arrecadação exterior, e finalmente, acabou num depósito de lenha, onde esteve a aguardar durante mais alguns anos a transformação em cavacas para o lume ... a minha sorte foi que esse depósito de lenha para a lareira estava bem fornecido, pelo que consegui salvar a peça; decapei-o ao longo de quase três meses, substitui-lhe as porções carcomidas, tratei as outras, fiz algumas mudanças ao seu design original, para o pôr mais prático, e fiquei com um louceiro fantástico, com toda uma patine de uma cor âmbar, que só o pinho muito velho pode adquirir!
Eu queria uma cozinha de aldeia, rústica e tradicional ... foi este o meu mote.
As únicas peças que destoam, são efetivamente o microondas e o frigorífico, que se destacam em demasia e são uma nota dissonante no conjunto, mas não consigo viver sem ambos ... "noblesse oblige"! Nada a fazer!
Um agradecimento muito especial a todos vós que têm a paciência para me lerem
Manel
Caros Luís & Manuel,
ResponderEliminarEm primeiro lugar, os mais sinceros parabéns por este trabalho. Já li em vários posts que se entregavam a recuperação de móveis, estofos (sim...fui ver os tecidos na Loja do G. Preto, que citaram num post antigo) e o vosso bom gosto já é bem conhecido e afirmado.
Porém não sabia que conseguiam fazer este tipo de trabalho que acho complicadíssimo, pois mesmo no acrílico os azulejos são difíceis de assentar e ficar "no prumo", sem barrigas, etc. O trabalho parece estar impecável.
Bem (desculpem a brincadeira), mas não resisti em reler o post anterior e ver a terrina "cantão" do Luís (a combinar com os pratos da chaminé da casa do Manel) e pensar que realmente o post da Páscoa, era quase uma preparação para este trabalho. E que bom que o Lúis não foi atirado da cozinha para fora, nem os azulejos se perderam...enfim...Manuel tens uma cozinha renascida e mesmo muito invulgar e (parece mesmo muito) acolhedora. Ah... e claro, tens o melhor de tudo, um amigo de ouro (para combinar com o azul que tanto gostas!
Um abraço / bom fim de semana
Caro Zé Oliveira
EliminarBem, nalgumas zonas o painel ficou com barriga, outras vezes não se conseguiu acertar totalmente oo padrão, até porque as paredes das casas antigas são irregulares e os próprios azulejos tem dimensões diferentes. Mas dessa imperfeição nasce o brilho e o movivento da azulejaria portuguesa.
Um grande abraço
Olá Lu e Tó.... que trabalheira hein! Mas em compensação o resultado ficou magnífico. A cozinha tem até "jipinho"!!!! Não é igual ao nosso, mas é bastante elegante (o nosso na realidade é bem mais rústico). Meninos, vcs estão de parabéns!!!! Adoraria ver a obra "in loco", mas acho que ainda não será este ano (sniff....). Um grande abraço aos dois "construtores". Regina - São Bento do Sapucaí - SP - Brasil. Email: reginarosa53@gmail.com Facebook: Eleonor Regina Mecocci Rosa e Facebook: PAM Protetores (ONG de Proteção Animal na região da Serra da Mantiqueira/SP)
ResponderEliminarSó me resta dizer ,Luís , a cozinha ficou linda !!!Mas quanto à chaminé tive vontade de voltar á beira para ver se a minha lá estava ?EH!EH!É mesmo muito parecida ....
EliminarAb.
Cara Regina
EliminarHá quanto tempo não nos vimos desde Lisboa!!! foi um prazer tê-la por aqui. Volte sempre ao meu blog.
Um abraço
Cara Idanhense
ResponderEliminarQuando o Manel andava à procura de casa, entramos em muitas casas quer no Alentejo, quer na Beira Baixa e vimos chaminés iguais de um e outro lado do rio Tejo.
Abraços