sábado, 2 de fevereiro de 2013

Cenários algarvios para um Cristo



O nosso amigo do blog http://o-outro-bau-do-zejulio.blogspot.pt/ pediu-me para levar comigo para o Algarve, um dos meus Cristos. O Zé Júlio queria fotografa-lo no oratório de uma casa abandonada, procurando reconstituir um desses pequenos espaços de devoção tão característicos das antigas casas rurais algarvias.

Lá levei o meu Cristo no carro para o Algarve e fomos com o Zé Júlio visitar umas dessas aldeias abandonadas do Barrocal algarvio. Para quem não saiba o Barrocal, designa a extensão de terreno entre a serra e a costa. É uma zona já de colinas, muito arborizada, com oliveiras, amendoeiras e alfarrobeiras e ainda pouco tocada pelo turismo.


O meu Cristo é uma peça do século XIX, conhecido por Cristo bacalhau, por apresentar uma forma espalmada. A cruz já foi comprada posteriormente.

Nessa aldeia abandonada, tal como em muitas outras povoações do barrocal, em cada uma das casas existe um pequeno nicho embutido na parede, que era onde as famílias colocavam o crucifixo, o Pai do Céu. Mas a particularidade, destes oratórios é que se situam sempre na divisão pela qual se penetra na casa. São a primeira coisa que o visitante vê quando franqueia a porta de entrada, o que contraria um bocadinho a tendência das casas portuguesas, de que o oratório se situasse numa parte mais privada da habitação.

No Livro de D. Duarte, O Leal Conselheiro, que descreve a compartimentação das casas senhoriais, a transcâmara ou zona de vestir e do oratório, era a parte mais íntima da casa onde os moradores se retiravam para ler, rezar ou meditar e antes de se chegar a essa divisão, passavam-se por umas quantas salas.


O pequeno oratório num dos quartos do Solar dos Montalvões
No Solar da família dos Montalvões existiu um destes nichos embutidos na parede, mas localizava-se num quarto de dormir, numa zona resguardada da habitação. Na casa da família da minha mãe, que é uma construção dos anos 30, existe ainda um oratório de madeira, que está colocado no último quarto da casa, depois de uma sucessão de duas salas e dois quartos, repetindo um esquema de distribuição dos espaços antiquíssimo, já descrito por D. Duarte.

O nicho com o pai do Céu situa-se sempre na divisão, pela qual se entra na casa, como que uma afirmação de fé cristã, numa região onde o Islão terá sido praticado em segredo, muitos anos e muitos anos depois da Reconquista


Claro, as casas destas aldeias algarvias são coisas simples, populares, mas não deixa de ser curiosa a distribuição dos espaços. Apresentam duas ou três divisões na frente, sendo que a cozinha e a parte dos animais estão nas traseiras. O nicho com o pai do Céu situa-se sempre na divisão, pela qual se entra na casa, como que uma afirmação de fé cristã para os vizinhos ou forasteiros numa província, onde o Islão terá sido praticado em segredo durante um considerável tempo depois da Reconquista em meados do século XIII. Mas enfim, não há quaisquer provas, que este hábito de colocar o oratório na primeira divisão da casa seja uma sobrevivência de uma prática de gente convertida recentemente ao Cristianismo e queria afirmar aos estranhos a sua ortodoxia. É apenas uma mera presunção que partilho com o Zé Júlio.

Na minha casa, o Cristo carece da simplicidade monacal dos oratórios das aldeias do barrocal.

Em todo o caso, gostei muito e ver o meu Cristo num destes oratórios algarvios. Ganhou um cenário cheio de simplicidade monacal, que lhe falta na minha casa.


Depois da visita à aldeia abandonada, encontramos a passear no campo um casal de alemães reformados, muito afáveis, que vivem no Algarve. O Zé Júlio, que é um rapaz muito tímido, meteu conversa com eles e em três tempos fomos visitar a sua casa, ali perto, uma moradia muito simpática, que reaproveitou as construções existentes,  integradando-se perfeitamente na paisagem.

Um outro cenário para o meu Cristo: um nicho reutilizado de uma antiga habitação por um casal alemão

No interior, existia também um nicho, reutilizado de uma antiga casa e a senhora alemã quis também experimentar colocar ali o meu crucifixo e ter a sensação, ainda que por instantes, que o pai do céu algarvio estava a abençoar aquele lar. Fiquei com a ideia que a senhora devia estar a convencer o marido, que talvez seja um luterano sério ou ateu convicto, a comprar um cristo muito católico para aquele espaço. Mas julgo que já sou eu a romancear a coisa.

As lágrimas de um genuíno Pai do Céu algarvio
Alguns dias depois, de ter regressado são e salvo a casa com meu cristo, o Zé Júlio enviou-me uma fotografia de um pai do céu genuinamente algarvio, daqueles que anteriormente preenchiam os nichos. É boneco muito ingénuo, com lágrimas de sangue, que nos toca pela sua simplicidade e por aquilo que representa, um mundo rural, que permaneceu igual durante muitos séculos e hoje está definitivamente moribundo.

 

14 comentários:

  1. Olá Luís

    Mais uma vez nos surpreende. A antiguidade do seu Cristo na singeleza do nicho, dá-nos uma imagem rica e poderosa,plena de interpretações.
    Obrigada. if

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  2. Cara If.

    É verdade. Este meu Cristo ganhou uma beleza especial por ser colocado neste nicho tão singelo. Valeu a pena e leva-lo até ao Algarve.

    Um abraço

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  3. LUIS
    CHE MERAVIGLIA
    TUTTO E FANTASTICO.TRASMETTI EMOZIONI FORTI
    GRACIE PER TUTTO QUESTO
    TI ABBRACCIO
    ALESSANDRA PAOLA

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  4. Alessandra

    Grazie!!!!!!!!!

    Ti abbraccio

    luís

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  5. Que rica ideia, esta, a do Zé Júlio, de reconstituir o nicho desta casa em ruínas.Funcionou em pleno, pois conseguiu um cenário fora do comum. Mas, onde eu gosto de ver o seu Cristo é no nicho da casa recuperada. Esteticamente belo e solene, consegue transmitir um sentido de religiosidade,a que, mesmo os mais arredios destas questões, não conseguem ficar indiferentes.

    Não conhecia o termo "Pai do Céu" aplicado ao Cristo crucificado. Este que mostra o Zé Júlio é realmente muito ingénuo e de gosto bem popular.
    Um abraço para si e uma boa semana que o sábado e domingo ainda vêm muiiiito longe :)

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    1. Maria Paula

      O Zé Júlio é um homem muitissímo criativo e é uma pena ter interrompido o seu blog. A ideia de fazer esta espécie de "produção" com o meu Cristo é dele. Foi uma espécie de exposição ao ar livre, no meio das ruínas de uma aldeia abandonada.

      Pela minha parte, quando tiver uma casa maior hei-de arranjar assim um nicho rustico na parede para colocar o meu Cristo. Não há dúvida que ganha outra força, que mesmo os mais arredios a estas questões de fé, não ficam indiferentes, como muito bem observou.

      Bjos

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  6. Sem esta lembrança do Zé Júlio (não é fácil encontrar um espírito tão genuinamente criativo) não teríamos esta bonita encenação. Como reviver o passado, não em Brideshead, mas em pleno interior algarvio.
    Bem, lá terei eu de arranjar um nicho! Depois de ver o resultado, fiquei como aquela simpática senhora alemã, cheio de alegria e contente por poder ter um também; só necessito de ter um palmo de parede vazia, e isso já vai sendo difícil!
    Mas dar-se-á um encontrão dum lado, puxar-se-á aquela tela mais à esquerda, o prato mais à direita e lá nascerá um nicho.
    Quanto ao Pai do Céu é que talvez não tenha, pois sou um pouco arredio a estas representações de martírio.
    Talvez seja melhor não dizer que o não vou ter, pois nunca se sabe como o meu gosto evoluirá, no entanto confesso gostar de sítios que não me coloquem perante manifestações de dor, ainda que a 2000 anos de distância, e não obstante a promessa estética aqui visível nestas fotografias.
    Sou epicurista por excelência e creio que a vida existe para exaltarmos o prazer que dá vivê-la
    Manel

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  7. Eu também estou mais na onda do Manel :) mas não deixo de ser sensível à beleza das fotos! Em especial, tal como à Maria Paula, maravilhou-me a do nicho e parede muito brancos com o crucifixo a destacar-se naquele alvura tão do Sul! Mas no enquadramento da casa arruinada o crucifixo ganha outro significado, parece que foi lá deixado para lembrar que ali houve vidas de gente simples, com as suas devoções e rituais...
    Foi efetivamente (e afetivamente) uma ideia feliz do Zé Júlio ,de cujo belíssimo blogue continuo a sentir falta...
    Abraços

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  8. Manel

    Há Cristos e Cristos. Alguns deles são demasiado sofredores para o meu gosto. Outros mais ingénuos fazem as minhas delícias, como por exemplo alguns cristos românicos, com uma grande cabeça, desproporcionada em relação ao corpo. Quando me sair o Euromilhões, comprarei certamente uma dessas esculturas românicas.

    Julgo que na tua casa do Alentejo ficará muito bem um nicho desta natureza.

    Abraços

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  9. Maria Andrade

    O Zé Júlio é especialista em descobrir pelo Algarve fora e não só estas ruínas de construções populares. É um homem que está muito orientado em recuperar o conhecimento de uma cultura rural e depois é destemido. Não hesita em enveredar por estradas de terra batida e entrar em casas prestes a caír, arriscando o pescoço. Depois é um tipo com uma imaginação poderosa e esta produção fotográfica deve-se a essa sua criatividade.

    Depois, o Zé Júlio tem também o fascínio das ruínas, tal como tem o Gastão do Ruinarte ou muitos de nós deste círculo de blogues. Fotografar um Cristo, saído de uma casa burguesa, no meio de uma aldeia abandonada, é dar-lhe novamente um significado místico, como se ainda fosse venerado pelas pessoas que viveram naquele lugarejo ao longo de gerações.

    A beleza da arquitectura do Sul reside na simplicidade, no despojamento. Mesmo o barroco alentejano é mais leve, mais airoso que o do Norte. Este nicho é um bom exemplo desse despojamento.

    Beijos

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  10. Estimado Luis
    lamento no escribirle en portugués. He disfrutado en muchas ocasiones de su blog, descubriendo curiosidades y aficiones que compartimos.
    Con alegría leo esta entrada antigua, sobre los cristos algarvíos. Hace años compré uno en Montegordo, aunque yo ignoraba el origen y el significado de estos cristos ingenuos, de estética casi románica. Me gustaría hacerle llegar una foto del mismo. ¿Por qué medio podría hacerlo?

    Saudaçoes!
    Jesús,Cádiz (Espanha)

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  11. Jesus

    Poderá escrever-me para montalvao.luis@gmail.com e terei muito gosto em ver a imagem do seu Cristo.

    Abraços

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  12. Olá, Luís
    Primeiramente, fiquei encantado com teu Cristo e com os nichos algarvios, que podem ter me dado uma pista sobre a origem de uma parte da minha família lusa - que é quase toda ela, apesar de meu avô materno ser de origem alemã. Boa parte, tanto paterna como materna tem origem na colonização açoriana do extremo sul do Brasil, no final do XVIII - tanto é que se diz que é nos Açores que, pela primeira vez aparece em território português os sobrenomes, originalmente holandeses, Dutra - d'Utra, Utrecht - e da Silveira - uma tradução forçada de "van Den Haag", "de Haia" - ambos os sobrenomes bastante comuns, aqui na região. Mas, o que eu quero contar é que sempre me chamou a atenção a forma de se referir a Deus usada por minha avó paterna e mesmo por meu pai: justamente, "o Pai do Céu". Sendo uma família longeva e que, mesmo na cidade, preservou muitos costumes e ditos rurais, seria interessante tentar identificar nas minhas próprias memórias e das minhas tias mas algum traço etnográfico que confirmasse uma identificação familiar com o Algarve. Mais uma vez, obrigado por tudo que este blog nos enriquece.
    Abraços!

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    1. Jonas

      Estes nichos das casas algarvias são um verdadeiro encanto. São uma descoberta do meu amigo Zé Júlio, que tem um faro especial para descobrir verdadeiros tesouros abandonados nos campos. Aliás, ele tem publicado mais alguns nichos no seu blog http://o-bau-do-zejulio.blogspot.pt/2014/11/o-algarve-e-sua-religiosidade.html, que tu deves achar piada conhecer.

      Eu desconhecia até então a expressão Pai do Céu. Segundo o Zé Júlio será uma designação específica do Algarve, mas os meus conhecimentos de etnologia não me permitem ir muito além deste assunto.

      É mais ou menos do conhecimento comum, que uma parte dos povoadores iniciais dos Açores vieram do Algarve. Não sei se transportaram com eles essa expressão e daí para o Brasil ou se essa designação se vulgarizou ao mesmo tempo nessas duas regiões de Portugal. É um assunto que desconheço.

      Em todo o caso, procurar as raízes da nossa família é sempre um trabalho aliciante, sobretudo quando estas se encontram do outro lado do Atlântico.

      Um abraço

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