quinta-feira, 31 de julho de 2014

Num tempo sem máquinas de lavar a roupa

As velhas fotografias de família exercem sobre nós uma espécie de atracção, a qual não é simples explicar. Representam os nossos pais, tios e avós num momento qualquer da sua vida em que nós ainda não os conhecíamos e olhar para estes retratos é como tentar entender um pouco a sua existência, que já terminou. Por outro lado procuramos sempre nestas antigas fotografias dos nossos pais ou avós algo de nós próprios, um traço fisionómico ou uma expressão que teremos em comum. É como se procurássemos o que somos, mesmo ainda antes de termos nascido. Aliás, a Marguerite Yourcenar começa as suas memórias familiares com o significativo epitáfio em forma de pergunta quel était votre visage avant que votre père et votre mère se fussent rencontrés?

Mas a atracção que as fotografias antigas em nós exercem não tem só a ver com a procura da nossa própria entidade, mas também com um momento da história que elas gravaram com exactidão, ainda que seja apenas da vida doméstica e do quotidiano.
A Adelaide, a irmã mais velha. Um tempo sem máquinas de lavar, duro para as mulheres
Esta fotografia da minha mãe (1927-2012) e da sua irmã mais velha, Adelaide (1913-1997) é um dos exemplos do que acabei de escrever. Foi tirada em Vinhais, depois da guerra, a julgar pelo cumprimento curto das saias e antes de 1949, pois as duas ainda não estão de luto pela morte do pai e ainda antes de 1948, quando começa a moda das saias com grande roda, lançada por Dior. Mostra as duas irmãs a lavar roupa num tanque construído em pedra na propriedade da grande casa familiar. Ainda me lembro dele a ser usado na lavagem da roupa no final dos anos 60, início dos anos 70. Aproveitando uma nascente de água, este tanque construído em pedra de xisto, que está hoje integralmente coberto por silvas, ainda era bastante longe de casa, cerca de uns duzentos metros e imagino o trabalho duro que não seria carregar com cestos de roupa aquela distância toda e fazer a lavagem nas águas frias, sobretudo no Inverno, onde naquela zona do País as temperaturas chegam a ser negativas. Claro, a família contratava uma mulher para este trabalho, mas muitas vezes seriam as próprias senhoras da casa a fazer esta tarefa dura, como documenta esta fotografia. Era ainda um tempo quem que as máquinas de lavar eram um objecto quase desconhecido na Europa. Só na segunda metade do séc. XX é que estes electrodomésticos se começaram a generalizar. Julgo até que em Portugal, só pelos anos finais dos anos 60, com o crescimento do nível de vida da classe média estas máquinas começaram a ser vendidas em massa. Aliás, a primeira máquina de lavar a roupa só apareceu lá na casa de Vinhais pelo no final dos anos 70 e avariou-se para sempre há cerca de dois anos (paz à sua alma)
O sorriso da minha mãe, Teresa
Esta fotografia que documenta um aspecto da vida quotidiana portuguesa nos anos 40 é também uma forma de conhecer alguma coisa da juventude de duas pessoas de quem gostei muitíssimo, de reencontrar nelas os traços do meu rosto e da minha filha e sobretudo a alegria de vida que a minha mãe tinha nessa época e de que eu só conheci em alguns momentos passageiros. Talvez ela tivesse a alegria das pessoas ingénuas que esperam sempre mais da vida do aquilo que ela realmente dá, traço de carácter que com o tempo proporciona desilusões amargas, mas que nas fotografias antigas se exprimia por um bonito sorriso.

23 comentários:

  1. Luís
    Aprecio o modo directo e franco como aborda o tema das fotografias de família. São momentos únicos que perduram nas nossas memórias. Há pouco tempo também comecei a organizar uma série de fotografias que estavam em casa do meu Pai. Que boas surpresas encontrei e então, a sensação de quase plenitude, quando se consegue desvendar o mistério que algumas transportam consigo.
    Quanto à imagem da lavagem da roupa no tanque de pedra, normalmente em dia de semana certo, também tenho boas recordações, especialmente das travessuras e arrelias que provocava, juntamente com os meus primos, como foi o caso de termos partido a nora, pois o cabo que servia para a fazer rodar, era o nosso baloiço. Claro está que, nessa noite, ninguém nos ouviu. O silêncio era mais assustador, que a reprimenda que esperávamos, quando descobrissem a asneira. Felizmente foi só um ralhete.
    if

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    1. Ivete

      Este tanque da roupa também era um sítio junto do qual, nós, os miúdos da casa gostávamos de brincar. Todas as crianças se sentem atraídas pela água.

      O tanque era uma daquelas obras de arquitectura popular ou rural muito interessante. Algumas das pedras estavam completamente polidas de tanta lavagem. Enfim, tenho pena de ter sido completamente engolido pelo silvedo.

      Um abraço

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  2. Caro Luís,

    Esta sua postagem é uma verdadeira delícia!
    As fotografias antigas têm esta capacidade de, passados muitos anos, nos darem a uma perspectiva quase poética daquelas épocas.
    E, claro está que, a beleza e a juventude da sua mãe e da sua tia também são um factor que em muito contribui para a beleza desse momento eternizado em foto.
    No entanto, há um terceiro elemento, um menino com ar traquina e doce...sabe-se de quem se trata?
    Todas essas fotos familiares contam histórias mais ou menos felizes, e são em si mesmas fonte de múltipla informação para o estudo das vivências e hábitos de então.
    Em tudo o que descreve só há uma coisa que me entristece, e que é o facto de que um tão belo património esteja votado ao abandono...será que não haverá forma de ser recuperado? Fazerem uma pousada, turismo de habitação, enfim algo que lhe dê a dignidade que merece? A câmara não estaria interessada em meter mãos à obra? Ou a descendência, juntarem-se todos e levarem esse "projecto" por diante?
    Bem Luís, já deu para perceber que sou uma apaixonada por solares antigos,não é?

    Beijinho

    Alexandra Roldão

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    1. Alexandra

      Obrigado pelo seu comentário. O menino que se vê na fotografia é o meu primo Álvaro, seu sobrinho. Está junto à minha mãe porque ela sempre gostou de crianças e era popular entre elas.

      Esta casa de Vinhais de que falo não é um solar. É uma casa grande, feita em 1934, ao estilo de Raul Lino, inspirada na arquitectura tradicional da região. Embora pertença a várias pessoas, a casa ainda está habitável, mas a propriedade foi dividida e a terra onde este tanque está pertence a algum parente meu, sinceramente nem sei quem é. No fundo, o problema é sempre o mesmo. Nos últimos 60 anos o interior foi-se esvaziando e a população concentrou-se toda na faixa litoral ente Lisboa e Porto. As terras foram abandonadas e estruturas como este tanque foram sendo esquecidas e entregues às silvas. Também já ninguém lava a roupa num tanque ou num rio. Fica a memória aqui registada.

      Bjos

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    2. Ok Luís,assim fico mais contente.
      Na verdade fiz confusão com o solar do Outeiro Seco.
      Mea culpa!

      Beijo

      Alexandra Roldão

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    3. Alexandra

      Não há problema. De facto vou aqui apresentando fotografias e textos do lado paterno, os Montalvões, em Outeiro Seco e do lado materno, os Morais Ferreira, cuja vida, decorreu em Vinhais, uma vila a caminho de Bragança. Este post é sobre estes últimos.

      Bjos.

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  3. Luís,
    O sorriso, a postura são formas que nos acalentam por fazer parte da família. Lindo este seu registo, onde as memórias e a História se cruza.
    Não conseguiria lavar a roupa desta maneira. Acho que devia ser giro especialmente no Verão, a frescura da água, as brincadeiras que proporcionariam quando se juntavam no tanque.
    Todavia, acho que não conseguiria torcer a roupa, ou raspá-la na pedra do tanque. A quinta da minha avó tinha um tanque, lembro-me de lavar os vestidos das bonecas mas o resultado era o grande banho que dali resultava. :))
    Gostei muito da peça Arte Nova.
    Um abraço.

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    1. Ana

      Como escrevi ainda me recordo de ver lavar a roupa neste tanque, que fica situado a meio de um lameiro. Na época, contratava-se uma senhora para fazer este trabalho, que deveria ser muito duro. Imagino que ficassem com doenças nos ossos, frieiras e sei lá mais que doenças.

      Além da luta política e social, a emancipação feminina passou sem dúvida pela generalização dos eletrodomésticos como as máquina de lavar a roupa, a loiça ou os ferros de engomar elétricos.

      Um abraço

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  4. Concordo plenamente,com tudo o que diz.Apesar da foto
    grafia,ser uma imagem estática,para mim é a que reproduz com maior fidelidade,com maior naturalidade as
    pessoas,as coisas e até a época em que elas foram tiradas.Quando estamos a ser invadidos quase diàriamente por uma parafernália de objectos elétrónicos
    que fazem tudo e mais alguma coisa,não é por acaso que a fotografia continua a ter o seu lugar e cada vez mais se impõe,com exposições por todo o mundo.E então a fotografia antiga que nos trás belas recordações,tem uma beleza ímpar.Os meus parabéns
    ,por tudo o que escreveu,as duas irmãs são muito parecidas,uma com cabelo louro outra com cabelo escuro,ambas lindas.Lembra-me a minha mãe que em muitas fotografias,aparece com este penteado e o mesmo tipo de vestuário,Boas férias ,cumprimentos,Graciete

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    1. Graciete

      A fotografia a preto e branco tem um encanto especial, além disso tem um prazo de conservação enorme. As fotografias a cores dos anos 60, 70, 80 e 90 não irão chegar à mão dos nossos netos, muito menos ainda as imagens digitais, que com mudança a cada hora dos softwears, daqui a 10 ou 15 anos, não haverá nenhum computador que as leia.

      Um abraço e boas férias também para si

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    2. A charming and true Aryan model.

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  5. Caro Luis.

    Eu aqui borrando seu blog (será que tem jeito de remover estes "removidos"?).

    Paz e Boas Lembranças.

    Desta vez Você postou um cotidiano de uma alegria real. Não que aquelas suas parentes (tias ou primas eu penso) cheias de glamour como as divas do cinema, não possam ter vivido também essas alegrias. Mas falo destes momentos sem nada de especial externo ou alheio, mas especialíssimo bem dentro da vida mesma: uma irmã, sobrinho e filhos, roupas para lavar num tanque limpo ... Alguém para fotografar; quem seria? E tudo isto não seria uma receita de alegria? Andamos em sua procura, mas penso que procuramos longe. O mundo cotidiano e familiar pode sim ser especial. Embora este pensamento contraste um pouco com de Hannah Arendt de que é somente na esfera pública que se alcança o pleno sentido da vida (ou se perde também).

    Um abraço.

    Acabei de postar umas jarrinhas de altar, bem antigas. Ainda bem que segui seus conselhos de ficar atento, mesmo aqui onde são mais improváveis de se encontrar.

    Amarildo

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    1. Amarildo

      De facto o encanto destas fotografias é o retrato sem pretensões de um momento do quotidiano. Também esta foto pertence já a um período em que as máquinas fotográficas se começaram a generalizar e as pessoas começam a fotografar a família e os amigos em atitudes naturais. Já passou a época em que as famílias iam ao fotografo e assumiam poses afectadas, estáticas, cheias de dignidade, como acontecia no início do Séc. XX. Também não já são as fotografias de estúdio dos 30 ou 40 em que as senhoras burguesas se faziam fotografar com ares de estrelas de cinema.

      Esta é uma foto naturalista, tirada pelo irmão da mais velho da minha mãe e da minha tia, o Zeferino. Era um homem à frente do seu tempo, com a mania das tecnologias. Foi o primeiro a comprar uma máquina de projectar na região e a fazer sessões de cinema pelas aldeias de Vinhais, uma zona remota do extremo Norte de Portugal. Foi também dos primeiros a ter automóvel e muita gente nestas aldeias perdidas do Concelho de Vinhais, o primeiro carro que viu na vida foi o dele.

      A maior parte dos seres humanos não alcança o pleno sentido da vida. A maioria de nós limita-se a nascer, casar, ter um emprego, filhos e morrer, sem nada de notável ter feito na vida. Nem todos poderão ser escritores famosos, estadistas, filósofos ou reputados cientistas. Há que saber viver essa condição.

      Um abraço

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  6. Estas lembranças são, para além de um documento para quem interessar no futuro, uma memória enternecedora de quem já é passado.
    Cada vez mais raro, pois possuo poucas fotos do passado, gosto também de rever estes documentos de uma era que desapareceu.
    Quanto eu gostaria de ter um tanque assim no Alentejo ... talvez o consiga construir um destes dias qualquer, mas não será fácil. Está no projeto, mas ainda não na realidade, mas que poderá dar muito prazer, lá isso poderá, basta lembrar o tanque dos nossos vizinhos franceses, que o usam de forma fantástica!
    Manel

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    1. Estas peças da arquitectura rural, como este tanque tem muita graça. Este então era muito bonito pois tinha as lajes já desgastadas por muita lavagem. Claro, já ninguém vai lavar roupa neles, mas é possível dar-lhes outras utilizações, como os nossos amigos franceses, que tornaram o seu tanque num misto de banheira e piscina, extremamente agradável nos calores alentejanos.

      Um abraço

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  7. Uma maravilha. Também gosto muito de fotografias antigas.

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    1. Margarida

      Muito obrigado pelo seu comentário

      Um abraço

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  8. Caro Luís
    Andei desaparecida. Pois. Andei a abraçar os meus filhos.
    Sabe que as fotografias dos nossos ente queridos tomam outro significado quando eles desaparecem.E aí, começamos a olhar para elas de outra maneira, da forma como o Luís tão bem escreveu. A mim, nestas situações, surpreende-me o descobrir as semelhanças fisionómicas, muitas vezes, mesmo saltando uma ou mais gerações!
    As máquinas de lavar roupa são o objeto mais precioso de qualquer casa:)Também ainda tenho memória do tempo em que elas só apareciam nos livros da "Anita", menina bem comportada que viva num mundo, que para a média das crianças portuguesas da época era irreal.
    Gostei muito desta sua fotografia. Beijos

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    1. Maria Paula

      Escrever sobre fotografias antigas é uma forma de forçar a memória a ir buscar aqueles dados que andavam já quase esquecidos no fundo de uma gaveta. Também é uma forma de recordarmos os nossos mortos, voltar a estar com eles, ainda que num momento em que não éramos ainda nascidos.

      Os traços familiares tem uma continuidade enorme. Muitas vezes encontro características fisionómicas minhas ou dos meus filhos em antepassados remotos. No fundo procuramos sempre nestas imagens a explicação do que nós somos.

      No final dos anos 60, lembro-me de acordar de noite com ruído, dirigir-me à cozinha e ver a minha mãe afadigada com uma máquina de lavar roupa semi-automática. O acesso à cuba era feito por cima e no topo tinha dois rolos com uma manivela onde a roupa era espremida. Era uma tarefa inaudita e a minha mãe, que ainda trabalhava como educadora de infância, ficava acordada até altas horas da noite a lavar roupa. A vida das mulheres não era de todo fácil.

      Bjos

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