sábado, 26 de julho de 2014

Um objecto arte nova ou o estilo do lírio

Herdei este objecto em arte nova da minha avó Mimi. É de couro lavrado e madeira, mas nem sei exactamente qual era a sua função original. Já foi uma espécie de recipiente para pôr pot pourri, mas agora serve para guardar as chaves de casa e do carro e está colocado na primeira divisão, logo à entrada da minha casa. Aliás, julgo que esta será uma função mais próxima da original para a qual esta peça foi concebida. Suspeito que este elegante objecto arte nova terá sido desenhado como vide-poche, isto é um recipiente, que serve para esvaziar os bolsos quando chegámos a casa, mas não estou certo.
A arte nova foi um movimento artístico que prestou atenção aos mais pequenos objectos do quotidiano. Ao contrário de outros períodos da história em que os artistas se concentraram nas chamadas artes mais nobres, como a pintura, a escultura ou a arquitectura, a arte nova assumiu-se como um estilo total, que se manifestou em todas artes desde a arquitectura até à decoração de interiores, passando pela jóias, móveis, iluminação e objectos de uso prático como máquinas de costura ou este vide-poche. Não que no século XVIII, os ourives não fizessem caixinhas de rapé ou garfos e facas em materiais preciosos e formas fantasiosas, mas faziam-nos como peças únicas de acordo com as encomendas de grandes famílias aristocráticas. Mas, nestes anos de 1900, quando o movimento arte nova eclode na Europa e nos Estados Unidos está-se em plena revolução industrial e os candeeiros, as cadeiras, as cafeiteiras ou as cigarreiras são feitas em fábricas aos milhares de unidades e pela primeira vez na história, achou-se que esses objectos do quotidiano, podiam ter uma concepção artística, elevarem-se à categoria de objectos de arte.

Mas a arte nova é mais que uma aplicação das belas artes aos objectos utilitários. O movimento pretendeu romper com as formas decorativas inspiradas na antiguidade clássica e nos estilos do passado, que caracterizaram tanto o século XIX. Por exemplo, cerca de 1870, a residência de um grande industrial, teria uma salão neogótico, uma sala de visitas ao estilo Luís XVI, uma casa de jantar estilo Império e uma dúzia de quartos onde se combinariam todos os estilos possíveis, adornados com muitas palmeiras e pesados reposteiros.
Arte nova ou o estilo do Lírio
A arte nova libertou-se do peso das gramáticas decorativas do passado e inspirou-se nas formas da natureza, em particular nas flores e nas folhas, de tal maneira que se tornaram uma imagem de marca desse estilo. Os lírios, representados neste vide-poche, que herdei da minha avó são mesmo a flor de eleição deste movimento artístico de duração efémera, que singrou por volta de 1900 e terminou com a guerra de 1914-1918. Aliás um dos muitos nomes que a arte nova tomou por essa Europa foi precisamente lilienstil, o estilo do Lírio.



Alguma bibliografia:
L'objet 1900 / Maurice Rheims. - Paris: Arts et Metiers Graphiques, 1964

16 comentários:

  1. Caro Luis,
    Obrigado pelas informações sobre arte nova/ art nouveau no Brasil (ficou em francês mesmo; hoje seria algum termo em inglês). Não conhecia este aspecto do "estilo do lírio".
    Sua peça é linda, e creio que caso não fosse esta a sua função original, a que você a deu agora me parece perfeita.
    grande abraço!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Fábio

      Por cá o termo consagrado foi também Arte Nova ou Art Nouveau. Por toda a Europa, o estilo foi tendo vários nomes uns que a história reteve como estilo "secessão" ou "modern style" e outros que caíram no esquecimento como "lilienstil" na Alemanha, ou Stile Floreal.

      Desta peça não sei qual a sua origem. Mas creio que poderá ser portuguesa. Por cá, pelo menos desde o século XVII existia uma grande tradição de trabalho de couros lavrados e nestes anos de 1900 essa tradição ainda estava bem viva em Portugal.

      Um abraço

      Eliminar
  2. Qual a função para que foi feita, não sei mas lá que lhe deu uma funçáo que lhe assenta que nem uma luva, é verdade e ainda por cima linda! Gosto muito de art nouveau, são sempre peças cheias de Glamour...
    Essa sua casa de bonecas é um verdadeiro tesouro cheio de coisas belas, deve-se sentir lá muito bem, rodeado desses pequenos tesouros! Eu só não queria ter de lhe limpar o pó, pois sentirme-ía aterrorizada com a hipótese de partie algo!
    Bom fim de semana.
    Ana Silva

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ana Silva

      De facto não estou certo acerca da função original desta peça. Poderia ser também um suporte para cartas, mas só se estivessem dentro de pequenos envelopes. Os vide-poches eram uma peça na moda nos anos de 1900, embora os que tenha visto se apresentem na forma de pequenas taças, postas à entrada de casa.

      De facto é um sarilho limpar o pó à minha casa.

      Um abraço

      Eliminar
  3. "sentir-me-ía", ai este PDI...

    ResponderEliminar
  4. O Gigante Luis acordou?

    Muita Paz.

    Acho que todos estamos meio dormidos... Não sei por quê? Que bom que Você veio nos despertar.

    Uma peça pequena mas que traz toda uma época com seu mundo recriado em todos os recantos, como Você disse. Não sou muito afeito ao estilo (também porque não conheço o bastante) mas é impossível não admirar e se encantar, por exemplo, com a elegância dos vitrais (também nos azulejos...) e com a constância desta bela flor: o lírio com sua fragilidade e vivacidade como toda vida traz
    .
    Tenho um armário desta época e estilo em canela, com 2 portas. De uma delas para a outra sobe uma grande ramagem florida que eu dizia ser "tulipa" agora direi "lírio". Obrigado pela informação.

    Não sei se foi de propósito ou se foi a Providência: Uma homenagem aos avós, os de Deus, São Joaquim e Santa Ana pelo seu dia e aos seus e a todos os demais em sua querida Vovó Mimi, postando esta sua peça de herança... Parabéns aos vovós em seu dia e sempre.

    Estou para postar uns pratos que parecem ser de Talavera, Manises... séc. XIX e talvez XVIII. Deixa eu acabar de acordar. Então se a Providência permitir, postarei todo contente os meus novos pratinhos e pratões...

    Um abração.

    Amarildo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Amarildo

      Muito obrigado pelas palavras tão simpáticas. Tenho andado muito ocupado e nem sei bem com quê, de modo que só agora pude escrever esta meia dúzia de linhas.

      A arte nova nestes pequenos objectos utilitários encanta-me.

      Os móveis arte nova não estão ainda muito valorizados por cá, mas em França ou em qualquer parte do mundo as peças assinadas por Louis Majorelle, da Escola de Nancy, valem fortunas.

      Um abraço

      Eliminar
  5. Luis

    Gosto das linhas estilizadas e algo etéreas do movimento arte nova.
    O seu texto está muito bem fundamentado e ilustrado. As imagens são significativas e marcantes. Também me agradam as formas, longilineas e os enrolamentos que, por vezes, se prolongam pelos espaços das peças. Deu-lhe ouso certo e apropriado.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Cara Ivete

      Obrigado pelo seu comentário. Esta pequena peça serviu-me para saber um pouco mais sobre este movimento artístico de 1900, nomeadamente a tentativa de elevar os pequenos objectos utilitários à categoria de arte. No fundo é com a arte nova que nasce o "design", tal como o concebemos hoje.

      Um abraço

      Eliminar
  6. Hoje estive em Aveiro e fiquei com a certeza de que hei-de lá voltar, pois esqueci-me da máquina fotográfica e eles têm um roteiro de prédios arte nova fantástico! É imperdoável não ter fotografado tudo. Não cheguei a ir ao museu de arte nova pois fechava às 18 e hoje era dia de feira de velharias (ENORME), nem consegui ver tudo mas conversei com dois vendedores do Porto 5*. Bebi chá no pátio do museu, sinceramente fiquei surpreendida com a forma inteligente com que as gentes de Aveiro promovem os seus produtos e a sua terra. Vou voltar, de preferência num ultimo domingo do mês...
    Ana Silva

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ana Silva

      Há que séculos que ando para fazer uma visita como deve ser a Aveiro. Já lá estive umas duas vezes, mas sempre numa correria. Ando com imensa vontade de visitar demoradamente as casas com fachada arte nova, bem como o próprio Museu de Aveiro, de que só conheço a Igreja. O Tempo não chega é para tudo. Ainda por cima parece que há uma boa feira de velharias.

      um abraço

      Eliminar
  7. Olá Luís,

    Em época de férias, não nos apetece "meter a mão na massa"..
    Também eu tenho andado arredada, mas já recomecei as minhas publicações, e hoje vim até este seu mágico cantinho.
    O objecto que connosco partilha é deveras curioso. De facto, não me ocorre nenhuma outra utilidade que não seja aquela que lhe deu.E, diga-se de passagem que é lindo!
    Gosto particularmente do estilo Arte Nova, principalmente da ourivesaria. Fico perfeitamente babada quando vejo, por exemplo, pregadeiras com flores, travessas de cabelo, pendentes de fios, etc.
    Enfim...tivesse eu dinheiro...

    Beijinhos

    Alexandra Roldão

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Alexandra

      As jóias arte nova são das peças mais conseguidas deste movimento. Quem consegue esquecer as peças do René Lalique de que a Gulbenkian guarda uma das melhores colecções do mundo?

      Aliás, é curioso que a arte nova foi muito tempo desvalorizada pelos críticos de arte, imbuídos dos valores modernistas, que julgavam aquele estilo como uma coisa decadente e burguesa.

      A arte nova começou a ser novamente valorizada precisamente através das jóias.

      Bjos

      Eliminar
  8. Luís,
    A peça é linda. Aprecio sobremaneira a Arte Nova. O lírio é também a minha flor preferida, embora cada vez mais tenha dificuldade em escolher a flor preferida.
    Engraçado nunca tinha lido "ou o estilo do lírio" pelo menos que me lembre. Tenho vários livros sobre o "estilo".
    Um abraço.:))

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ana

      Perguntar-me qual é a minha flor preferida é a mesma coisa que me perguntarem qual foi o livro ou o filme que gostei mais na vida. À medida que vamos amadurecendo vamos alargando os nossos horizontes há cada vez há mais livros que gostámos ou flores que passaram a nos encantar. Eu que adoro rosas, recentemente descobri os encantos do Lilás, uma planta que só conhecia da literatura e que agora plantei num jardim e me apaixonei pelo seu perfume suave e delicado e pela cor.

      Com a Ana bem sabe a arte nova foi tendo nomes diferentes em França, em Itália, Inglaterra, EUA ou na Europa Central. Houve uns quantos nomes que a história reteve, outros foram caindo com o tempo. O lilienstil foi uma dessas designações que foram sendo esquecidas, muito embora se fizer uma pesquisa no Google, por esse termo combinada com a palavra "art" ou "1900" encontra ainda uns quantos resultados. Em todo o caso o termo não está mal achado, pois de facto o lírio é um tema recorrente na arte nova. Por cá, o lírio surge muitas vezes na azulejaria do período de 1900.

      Um abraço

      Eliminar
  9. Obrigada, Luís.
    Eu aprendi esta nova nomenclatura consigo. A minha admiração foi por desconhecer. Anda-se sempre a aprender e é isso que me faz sorrir.
    Os livros que tenho são em francês e português de autores belgas e franceses, são gerais, isto é focam o movimento em todas as vertentes.
    Esta bolsinha da sua avó é lindíssima. Faz lembrar um pouco o mobiliário holandês do final do séc. XIX.
    Um abraço. :))

    ResponderEliminar