Já aqui escrevi sobre as esculturas da fachada da igreja de S. Facundo, em Vinhais. Na altura demonstrei que o conjunto tradicionalmente identificado como a Santíssima Trindade, mais não é do que uma Virgem em Magestade românica. Tive até ocasião de escrever um artigo sobre o tema para o Boletim Municipal de Vinhais, em 2012. Uma das figuras que compõem esse conjunto, é um ser alado, que foi tomado como Espírito Santo. Esta Pessoa da Santíssima Trindade é quase sempre representada por uma pomba e o que vemos aqui é um ser com pernas, corpo, um rosto humano e umas asas, isto é, um anjo. Portanto, esta figura alada não é de todo o Espírito Santo.
E no entanto não é um anjo como os outros. Se observarmos bem, reparamos que este anjo não tem braços. Normalmente, na pintura, na escultura, no desenho ou na gravura todos os anjos têm braços e as asas saem das costas. É quase uma regra universal e acreditem em mim, pois desde que descobri estas esculturas de S. Facundo, com cerca de 23 anos, vejo sempre com atenção todas as representações artísticas de anjos e nunca vi nenhuma exactamente igual a esta.
Desde essa época para cá venho procurando informar-me sobre Anjos, para tentar decifrar esta figura alada pouco convencional e recorri naturalmente à Iconographie de l'art chrétien do Louis Réau, que a principal fonte deste texto.
Ora como toda a gente sabe, o cristianismo formou-se a partir do Judaísmo que é uma religião sem imagens. Só quando a religião cristã, extravasa o meio judaico e começa a penetrar no mundo greco-romano, onde os deuses eram representados como pessoas e as histórias da mitologia eram contadas através de imagens na escultura ou na cerâmica, é que os artistas começam a tentar representar em arte as histórias da Bíblia. Relativamente aos anjos, o Antigo Testamento não dá deles grandes descrições. Só nos textos feitos depois do exílio na Babilónia, é que os anjos tomam um papel mais activo nas narrativas e a forma como são descritos levou os historiadores a afirmar que touros alados de Ninive forneceram inspiração aos Profetas do Exílio.
Desde essa época para cá venho procurando informar-me sobre Anjos, para tentar decifrar esta figura alada pouco convencional e recorri naturalmente à Iconographie de l'art chrétien do Louis Réau, que a principal fonte deste texto.
Ora como toda a gente sabe, o cristianismo formou-se a partir do Judaísmo que é uma religião sem imagens. Só quando a religião cristã, extravasa o meio judaico e começa a penetrar no mundo greco-romano, onde os deuses eram representados como pessoas e as histórias da mitologia eram contadas através de imagens na escultura ou na cerâmica, é que os artistas começam a tentar representar em arte as histórias da Bíblia. Relativamente aos anjos, o Antigo Testamento não dá deles grandes descrições. Só nos textos feitos depois do exílio na Babilónia, é que os anjos tomam um papel mais activo nas narrativas e a forma como são descritos levou os historiadores a afirmar que touros alados de Ninive forneceram inspiração aos Profetas do Exílio.
Os touros alados de Ninive forneceram inspiração aos Profetas do Exílio |
No entanto, a iconografia dos actuais anjos, como nós os conhecemos, um corpo humano, as asas nas costas e mantos esvoaçantes mais não é do que o resultado de um empréstimo que os pintores e escultores dos primeiros tempos do cristianismo fizeram ao paganismo, mais exactamente às nikés ou vitórias aladas. Toda a gente conhece perfeitamente o exemplo de uma destas nikés, que se encontra no Museu do Louvre, a célebre Vitória de Samotrácia. Foram pois figuras com esta que inspiraram a imagens dos anjos cristãos.
A Vitória de Samotrácia no Louvre. Foram figuras com esta que inspiraram a imagens dos anjos cristãos. |
Agora, o anjo de S. Facundo sai um pouco fora desta representação clássica das figuras humanas com braços e pernas e com asas no corpo.
Os únicos anjos que apresentam algumas semelhanças com esta figura da igreja de S. Facundo são os Serafins e os Querubins. Estas duas classes de anjos distinguem-se pelo número de asas, os primeiros tem seis, os segundos quatro, mas muitas vezes as asas escondem as mãos. Correspondem a uma visão de Isaías em que este anjos se disponham sob o trono do Senhor e esta iconografia foi muito usada nos tímpanos românicos, na época em que as esculturas da Igreja de S. Facundo foram lavradas. Poderia este anjo ter um par e estarem sob o trono desta Virgem em Magestade?
Virgem em Magestade de Cunault, França |
Mas, por mais que eu queira, este anjo não tem nem quatro, nem seis asas e também é bem verdade que o facto de ele não ter braços se poderá dever mais à falta de perícia do seu escultor, que executou uma representação simplificada e rústica de um anjo.
Em todo o caso, parece-me viável que poderia haver um par deste Anjo a ladear o trono da Virgem em Majestade.
Em todo o caso, parece-me viável que poderia haver um par deste Anjo a ladear o trono da Virgem em Majestade.
Boa-tarde Luís!
ResponderEliminarNão há dúvidas de que este anjo é um exemplar bastante curioso.
A meu ver, o que mais me intriga é de facto a falta do par. Terá sido destruído por qualquer azar (terramoto, cancro da pedra, etc?) Porque, uma coisa é certa o conjunto não é harmonioso, falta ali alguma coisa...
Quase todos os elementos deste tipo têm uma disposição triangular , e neste caso um dos lados foi esquecido. A não ser que, o autor tivesse falecido, e não houvesse maneira de o acabar, pelo que ficou assim. De um modo geral faz-me lembrar esculturas bem primitivas, muito toscas, muito rudes. E já reparou nos pés à Charlot virados para fora?
Há registos da edificação da Igreja?
Quem sabe se procurar nas memórias paroquiais que foram pedidas pouco tempo depois do terramoto de 1755? Nelas os párocos tiveram de responder a um rol de questões para aquilatar dos estragos em cada zona do País. Surgem coisas giríssimas, e os relatos são por vezes de estarrecer. Quem sabe , não encontra aí alguma resposta à sua (nossa) dúvida?
Beijinho
Alexandra Roldão
Alexandra
EliminarEste estudo sobre S. Facundo fi-lo há muitos anos e agora ando a retoma-lo aos poucos, o que me vai servindo para arrumar as ideias e retomar essas pesquisas. Na época fiz esse levantamento de fontes, que também se encontram no Abade de Baçal e na segunda metade do séc. XVIII já as esculturas estão na fachada da Igreja, dispostas desta maneira que não faz sentido nenhum e este conjunto era já era identificado como a Santíssima Trindade.
Em suma, a colocação destas esculturas na fachada da igreja já é antiga e anterior a 1740.
A igreja de S. Facundo é tida como a mais antiga de Vinhais, embora aparentemente não pareça muito, muito velha. Tem um arco ogival que parece ser coisa já do séc. XVI. Na realidade, as esculturas são a coisa mais antiga da Igreja.
Tenho a teoria que estas esculturas fizeram parte de um antigo templo de estilo românico, existente no mesmo local e que com o tempo caiu, e houve alguém que as reaproveitou e as colocou na nova igreja, que então reedificaram. Agora, em que momento da história isso aconteceu não sei, nunca encontrei documentos sobre o assunto e também ainda não fiz uma busca nos arquivos. Tenho um palpite que terá sido na Restauração, quando os espanhóis cercaram a vila e destruíram todos os arredores e a Igreja de S. Facundo era já fora da muralha.
Enfim, precisarei de consultar fontes.
Bjos
Luís,
EliminarFiquei com estas imagens "atravessadas"...
Assim, varri a net, e encontrei algo acerca das possíveis origens da Igreja em
http://www.patrimoniocultural.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ou-em-vias-de-classificacao/geral/view/72314/
Deixo-lhe a transcrição:
Não estão esclarecidas as origens do templo de São Facundo. O seu orago admite pensar numa fundação pré-românica, eventualmente a rondar os séculos IX-X, altura em que se sabe ter o reino asturiano alcançado um momento de particular expansão. O templo que sobreviveu até aos nossos dias é posterior, provavelmente do século XIII. Por essa altura, Vinhais foi objecto de um importante processo de povoamento e restruturação administrativa. O centro da vila foi deslocado para a zona do castelo, então em construção, o que determinou a localização relativamente excêntrica da igreja.
Esta terá sido integralmente remodelada, de acordo com um figurino tardo-românico, embora manifestando algumas características típicas da arquitectura medieval transmontana, como o excessivo prolongamento vertical da fachada principal, para receber campanário de dupla sineira. O projecto é modesto, compondo-se de nave única e capela-mor rectangular (esta entretanto substituída por outra, no período maneirista). A obra deverá ter-se concluído no século XIII, uma vez que data de 1305 a referência concreta à igreja, constante do testamento do Abade de Outeiro de Facundo, que escolheu enterrar-se no templo.
PAF
Bjos
Alexandra Roldão
Alexandra
EliminarMuito obrigado pela indicação. Desconhecia inteiramente o último dado "A obra deverá ter-se concluído no século XIII, uma vez que data de 1305 a referência concreta à igreja, constante do testamento do Abade de Outeiro de Facundo, que escolheu enterrar-se no templo".
Julgo que da edificação primitiva pouco mais deverão restar que as esculturas, a não ser que façam um dia escavações arqueológicas na igreja e descubram fundações anteriores.
Bjos e obrigado
Realmente a peça é impressionante. Desde o momento que a vi no local senti que havia ali algo de vetusto, e tão forte que conseguiu escapar à destruição da história.
ResponderEliminarSeria lógico, e que são visíveis nos exemplos que deixas aqui, que a figura da Virgem fosse ladeada de uma forma simétrica por duas figuras aladas.
Sem ter certezas, pois a fotografia não dá para confirmar, esta Virgem, o Menino e a figura alada parecem ter sido esculpidas num único bloco, e acho no mínimo estranho que, havendo uma outra figura que se situasse simétrica à Virgem, esculpida neste mesmo bloco, o artesão, e o responsável religioso que presidiu à reconstrução desta parede, não a deixasse também aparente.
Ou então, originalmente, haveria um outro anjo, esculpido num bloco diferente e esse sim, poderá ter ficado destruído ou perdido nas muitas obras que a igreja deverá ter sofrido, daí não figurar aqui.
Assim, não acredito muito que lá exista, sob o reboco, qualquer outra figura, não faz muito sentido, pois houve uma sensibilidade especial para deixar estas duas figuras à vista, porque não outras, caso existissem?
Até porque existem nesta fachada mais cabeças esculpidas, e que julgo contemporâneas desta peça que apresentas, que foram igualmente deixadas aparentes.
Já to referi, e continuo a repeti-lo, que este tipo de escultura cuja origem se perde no tempo, é da mais interessante que se pode encontrar, ainda que fora de contexto, como esta.
Têm a força do tempo, e são persistentes na sua ânsia de existirem para lá da destruição a que a história tantas vezes condena estas obras.
Quanto à representação lateral dos pés, como refere a Alexandra, creio estar de acordo com as regras de representação na escultura mais vetusta, e por ser a forma mais fácil de representar partes do corpo humano, nomeadamente os pés, que em posição frontal seriam menos percetíveis e ocupariam um maior espaço em profundidade que uma representação lateral.
Tal como nas antigas esculturas e pinturas egípcia ou grega, os pés e as pernas apareciam representadas em vista lateral, o tronco frontal, e a cabeça de perfil (aqui isso já não acontece).
Claro que ao longo da história da arte a forma de representação foi tomando novas regras, baseadas nos novos gostos e na perícia que entretanto se foi desenvolvendo entre os artistas/artesãos.
É muito bom que chames à atenção para esta peça da nossa escultura antiga, pois parece-me algo esquecida e pouco estudada, apesar do seu interesse como uma das mais antigas deste período
Manel
Manel
EliminarMuito obrigado pelas respostas que deste às questões levantadas pela Alexandra. Foste muito claro.
Também sou de opinião que estas esculturas tem algo de poderoso e primitivo. O fascínio que exercem tem também a ver com o mistério que encerram. Sabemos que não estão colocadas na sua disposição original e que talvez tenham feito parte de algum programa escultórico, mas não sabemos qual. Tentei aqui aventar algumas hipóteses, como uma espécie de exercício de pensamento, mas sem qualquer fundamento. Julgo que um dia o mistério talvez possa ser resolvido através de uma consulta mais sistemática aos arquivos.
Um abraço
Caro Luís
ResponderEliminarQue interessante. Realmente a representação deste anjo é intrigante e foge a tudo a que estamos habituados a ver.Todo o conjunto é estranho, agora menos, que o Luís o descodificou, mas de facto não tem nada a ver com a Santíssima Trindade,tal como a conhecemos.Um abraço e ainda bem que retoma o estudo de S. Facundo.
Maria Paula
EliminarA escultura românica é das coisas impressionantes e misteriosas que existem na arte. Não são muito vulgares em Portugal e o seu estudo não está na moda, mas vale a pena tentar reparar nelas quando visitamos uma igreja românica e aí na sua região existem muitos templos românicos. Confesso que gostaria um dia de ver as esculturas medievais dessas igrejas entre Douro e Minho vistas pelos olhos da sua câmara fotográfica. Estou certo que os resultados seriam sem dúvida interessantes.
Bjos
Luís, esta é uma área em que não me sinto nada à vontade, mas acho natural que o assunto o empolgue muito, tratando-se de algo raro em território nacional e logo na sua terra de origem familiar. Dá-me sempre muito gosto ler estas histórias, saber das suas pesquisas e dos resultados a que vai chegando com saber e persistência. Também me parece que aquela figura represente um anjo, tosca como tantas figuras da arte mais primitiva e popular.
ResponderEliminarVinhais deve ser uma terra muito antiga, de um tempo medieval talvez anterior à nacionalidade, como muitas outras terras cheias de carisma do nosso interior profundo, infelizmente cada vez mais profundo e desertificado. .. Mas estas jóias do seu património não lhas podem arrancar...
Continue sempre!
Um abraço
Maria Andrade
EliminarÉ sempre bom vê-la regressar ao nosso convívio e temos todos saudades dos seus chás das terças-feiras.
Nas terras ao Norte do Douro os mouros tiveram muito pouco tempo. Em 868, os Cristão já reconquistaram o Porto e no fundo a presença islâmica nestas terras é mínima. É um período de que se sabe pouco. Não há muitos documentos escritos e a arqueologia medieval não ainda uma prática muito comum e os resultados de quem já a fez não são conhecidos do público em geral.
Estas esculturas trazem-nos o fascínio de uma Idade Média remora e pouco conhecida.
Bjos
Só agora vi o anjo.
ResponderEliminarÉ uma peça extraordinária não só pela sua datação mas também pela singeleza.
Pueril é o adjectivo que me vem à cabeça. Não sei como se pôde pensar que era o Espírito Santo. Caso tivesse sido a Contra-reforma teria alterado esta figura, pelo menos assim penso.
Interessante, é sempre bom visitá-lo.
Boa semana!:))
Ana
EliminarDe facto este anjo acaba por ter uma força primitiva pela sua simplicidade.
Não é de todo o Espírito Santo, mas porque qualquer motivo que me ainda me escapa, desde meados do século XVIII que este conjunto é tomado como uma Santíssima Trindade.
Um abraço e obrigado pela sua visita
Muito interessante. Gosto muito de anjos. Boa semana!
ResponderEliminarMargarida
EliminarMuito obrigado pelo comentário. Uma boa semana também para si!!!