sábado, 27 de setembro de 2014

Uma contrafação com cerca de 160 anos: travessa de faiança inglesa

Há pouco tempo perdi de todo cabeça e comprei a um preço muito aceitável uma enorme travessa de faiança inglesa (38,5 x 49 cm), num estado de conservação absolutamente impecável. Só tem um pequeno cabelo no tardoz.
No verso, apresenta uma marca W Smith & Co e o nome do padrão Select views

A decoração da travessa é típica da faiança inglesa de meados do século XIX. Uma vista romântica, um templo clássico do lado esquerdo, um par apaixonado, que talvez se prepare para um fazer um passeio galante numa espécie de gôndola, que se vê no lago, ao fundo uma cidade, e do lado direito um vaso de jardim no meio de uma vegetação frondosa. 
Existem dúzias e dúzias de variações desta decoração e portanto nesta peça de loiça tão característica da faiança inglesa não havia nada a assinalar de excepcional, até ao momento em que cheguei a casa e virei a travessa e reparei, que para além do monograma da W Smith & Co, existia uma marquinha incisa, que era nada menos nada mais do que Wedgwood!!!
Wedgwood, a mais prestigiosa fábrica de faiança inglesa, fundada em 1759 e cujas peças mais antigas são já obras coleccionadas pelos Museus. Considerei que tinha feito por uma dezena de patacos uma compra excepcional, e senti-me um coleccionador de gabarito, proprietário de uma faiança, que por todo o mundo é sinónimo de qualidade e bom gosto. Na altura, fui de opinião que Wedgwood seria o fabricante e o tal W. Smith o nome de algum grande armazém, que tivesse encomendado à famosa fábrica inglesa um serviço especial para vender aos seus clientes.
Fui então a santa internet pedir mais informações sobre a minha genuína travessa Wedgwood. Como o meu inglês é medíocre, escrevi no motor de busca os nomes tal e qual como vinham na travessa W Smith & Co, Select views e Wedgewood e para meu espanto não fui ter imediatamente à wikipédia, nem a nenhum site especialmente dedicado à louça daquela fábrica inglesa.

Na verdade, acabei por descobrir que o tal William Smith foi um fabricante sediado em Stockton-on-Tees, no Yorkshire, com actividade entre 1825-1855 e que dedicou uma boa parte do seu labor a vender gato por lebre. Ou seja comercializava as suas peças marcadas como Wedgwood, enganando assim os consumidores mais tolos ou desatentos. A coisa deve ter sido de tal maneira escandalosa, que a verdadeira Wedgwood levou o caso a tribunal, ganhou o caso e o Sr. Smith foi condenado a colocar mais um e no nome e assim produção entre 1848-1855 passou a ser marcada por Wedgewood. Depois disso, a fábrica acabou.
 A firma W. Smith inspirava-se em peças da Wedgwood como esta.The Wedgwood Museum
Além de contrafacionar Wedgwood, a W Smith & Co foi das primeiras firmas a usar um sistema numérico para identificar os padrões decorativos. Estas Select views são o padrão nº 18.

Em suma, a minha travessa que apresenta a marca Wedgewood foi precisamente fabricada entre 1848-1855, depois do processo que opôs os dois fabricantes. Naturalmente que fiquei triste, por não ter uma genuína Wedgewood, mas ao mesmo tempo achei interessante ter em casa um testemunho de uma contrafação, já com a patine e a dignidade dada por cerca de 160 anos de vida, e que nos mostra que os falsos na arte não são só de agora, mas de todo o sempre.


Alguns links que serviram de base a este texto:


16 comentários:

  1. Muito bonita a travessa. Bela compra! Bom fim-de-semana!

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    1. Margarida

      Obrigado. A decoração desta travessa é no fundo semelhante à peça cuja fotografia há uns tempos me enviou. As ruínas, o lago, o par romântico e a cidade ao fundo são um tema recorrente da faiança inglesa e que foi produzido em dezenas de variantes e por isso é difícil identificar uma peça deste tipo quando não conseguimos ler a marca.

      Um abraço

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  2. Luis,

    A travessa é uma delícia! E a história dela também!
    Até lhe digo mais, a contrafacção é tão linda quanto os originais.Adoro o tom de azul, o motivo, a forma, tudo! Nada a apontar, e mais uma vez, o seu gosto refinado elegeu uma peça de excelência!
    Muitos parabéns pela aquisição.

    Beijinho

    Alexandra Roldão

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    1. Alexandra

      Mesmo sendo uma contrafacção, a travessa é linda e mostra bem a excelente qualidade atingida pelas fábricas inglesas no séc. XIX. Eram peças feitas para durar uma vida inteira e ainda para serem legadas intactas aos vindouros.

      Por outro lado, uma contrafacção com mais de 160 anos ganhou uma dignidade que não teve no passado e torna-a uma curiosidade histórica.

      PS. Por causa do malvado acordo ortográfico já não sei se "contrafacção" se escreve só com o um "c" ou com a consoante dobrada. Grrrr!!

      bjos

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  3. Meu caro Luís, quanto ao Acordo,faça como eu e ponha-se pura e simplesmente em total Desacordo. Não quero saber dessa coisa para nadinha!
    Mas,se profissionalmente o aborrecem por causa do dito, posso dizer-lhe que há um programa que, há alguns tempos atrás se sacava da net de borla, o qual se chama Lince , e é muito bom. Uma vez instalado no PC,coloca-se o texto numa espécie de página word, e o dito programa "corre" tudo o que escrevemos para emendar o que não estiver em conformidade.

    Beijinho

    oAlexandra Roldão

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  4. Cá está o Luís a puxar por mim... mesmo sem querer. Lol
    Com estas dimensões e o recorte pronunciado da aba é uma travessa magnífica! A decoração é realmente muito típica dos inúmeros padrões de transferware, neste azul e branco sempre atraente, com uma cena romântica. Mas cada uma destas cenas traz-nos elementos novos e motivos de interesse para nos entretermos na sua contemplação.
    A grande novidade foi tratar-se de uma peça contrafeita da marca Wedgwood. Não havia necessidade! :) Na verdade o mercado era tão vasto que para além dos grandes nomes de maior prestígio nesta faiança – Wedgwood, Spode, Davenport, Herculaneum, etc – centenas ou milhares de fabricantes ingleses mais pequenos proliferavam e muitos também ficaram conhecidos mesmo fora da ilha.
    Desde o século XVIII , mas sobretudo no XIX, são conhecidos casos de falsificação de marcas na cerâmica, mas sobretudo das porcelanas. O nome Samson, em Paris, ficou famoso como falsificador, mas, claro, para conseguir fazer passar os seus produtos pelas porcelanas de maior prestígio da Europa, tinha também ele que fabricar com muita qualidade e agora há colecionadores só de porcelanas com marcas falsas a que se atribui essa origem.
    Esta história de contrafação exemplificada pela sua travessa, só veio acrescentar interesse à peça. Não tenho nada desse W. Smith & Co. , mas tenho Wedgwood & Co., outro fabricante que viveu e prosperou à sombra da Wedgwood Etruria. Agora tenho andado às voltas com uma travessa Davenport cuja marca me causa alguma perplexidade. Será que também é contrafeita?... :)
    Beijos

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    1. Maria Andrade

      A fotografia talvez não tenha captado o enorme tamanho desta peça, que me vai obrigar a mudar não-sei-quantas peças de sítio para a encaixar.

      Wedgwood tinha um enorme prestígio e era natural que alguns fabricantes quisessem aproveitar essa fama para fazer mais algum dinheiro, vendendo gato por lebre. Mas, como diria o outro, "não havia necessidade", pois esta peça do W. Simth é magnífica por si.

      Temos também aqui o problema da cópia, que também existe muito na nossa faiança. Os mesmo fabricantes copiavam de forma despudorada os padrões uns dos outros. Mais, outros fabricantes europeus, copiavam também a faiança inglesa, como Sacavém, Maastricht, o Pickman em Sevilha e por aí fora.

      Apresentei há pouco tempo no blog, umas peças de faiança sem marca, que julgava serem inglesas e que encontrei uns pratos iguais Davenport na Feira de Estremoz (infelizmente não os comprei) e tive agora mesmo um comentário de um senhor espanhol, que me diz serem Pickman y Cia, na Espanha. Enfim, fiquei um pouco confuso e de facto, mesmo na faiança inglesa, apesar de estar tão estudada, não podemos ter certezas absolutas.

      Bjos

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  5. Luís, fui procurar essas suas faianças sem marca e vi lá esse comentário esclarecedor.
    Não me lembrava do nome Pickman & Cia, apenas retive o outro nome, La Cartuja de Sevilla, realmente com muita loiça ao estilo inglês, como a nossa Sacavém.
    Fui à procura de imagens na net e sabe o que descobri? Este fabricante espanhol usou marcas com âncora, algumas incisas na pasta, entre elas uma que passa bem por Davenport!.Se callhar foi esta que viu nos pratos em Estremoz.
    Lá vamos descobrindo muita coisa interessante e útil, graças às partilhas bloguistas...
    Boa semana

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    1. Maria Andrade

      Também andei a pesquisar e encontrei um prato da Pickman & Cia em todo semelhante ao meu e começo a convencer-me que aquele conjunto é espanhol. De facto só vi a âncora no prato em Estremoz e estava sem óculos de ver ao perto. Claro, também há a hipótese de o motivo da fábrica espanhola ser cópia de um padrão inglês, como se passou com o nosso cavalinho. Enfim, irei procurar mais coisas sobre o assunto e depois talvez até faça um novo post.

      bjos

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  6. Não havia necessidade de recorrer a tais métodos, quando a qualidade desta loiça é tão boa, tal como dizeis!
    O motivo não envergonha ninguém, pois é bem ao estilo das melhores fábricas, a peça, com o bordo recortado, é de uma elegância que até nem dá para notar as dimensões grandiosas da peça (noutra peça, estas dimensões poderiam fazê-la menos equilibrada, o que não acontece aqui), o azul é de uma tonalidade muito bonita (um pouco de flow blue poderia ainda realçar-lhe o ar mais vetusto), enfim, a peça vive por si mesma, sem necessidade de recorrer a outras marcas.
    No entanto, as modas e a fama a estes métodos recorrem, só o tempo pode aplanar as diferenças e permitir ser mais neutral na avaliação.
    Em Estremoz aparece muita cerâmica espanhola, que muitas vezes confundo com Sacavém!
    Quantas vezes tenho a certeza de ser um prato de Sacavém, viro-o e ... espanhol!
    Não tem desmerecimento sê-lo, claro, mas por toda a Europa se nota esta cópia dos motivos e técnicas ingleses.
    No último final de semana vi peças de Talavera à venda que fariam as delícias de qualquer colecionador de faiança. Claro que tinham sido repintadas, tinham-se partido, e encontravam-se coladas, mas a beleza da peça estava toda lá. Os desenhos eram inconfundíveis.
    Fiquei a suspirar por tais peças.
    Além de Talavera tinham também "Puente del Arzobispo" e "Manises", todas peças antigas, e, segundo me pareceram, autênticas, mas a preços proibitivos para a minha bolsa.
    Fiquei a vê-las expostas e a pensar como, no seu aspeto rural, com um colorido fantástico, ficariam um primor nos meus escaparates.
    Lembraram-me, porque são semelhantes, as peças de coleção que nos foram dadas ver no Sr. Duarte, de Fronteira, onde o senhor expõe peças semelhantes em alojamento pouco condigno. Mereciam melhor sorte!
    Manel

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    1. Manel

      Com efeito esta é uma peça aparatosa, de excelente qualidade e aos nossos olhos contemporâneos não se justifica que o Sr. Smith andasse a marcar as suas peças como Wedgwood. Mas, na Inglaterra da primeira metade do século XIX, havia tanta gente a produzir coisas excelentes, que a concorrência entre os fabricantes de faiança deveria ser ferocíssima e todos os métodos eram válidos para vender um pouco mais.

      Quanto às outras peças, estou cada vez mais convencido que são espanholas. Enfim, mais uma lição que aprendo, no sentido de moderar a "picardia" nas atribuições, mesmo quando tudo nos parece certo.

      Um abraço

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  7. Olá, boa tarde!
    Ando a tentar saber o valor de uma travessa que tenho em porcelana inglesa. Com as várias pesquisas que fiz vim aqui parar!!
    Desculpe o abuso mas, acha que me consegue orientar!??
    Obrigada pela sua atenção!
    Filipa Baptista

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    1. Cara Filipa

      Como sabe eu não sou negociante de antiguidades nem tão pouco faço avaliações.

      Se quisesse saber o preço de alguma porcelana inglesa no mercado internacional era muito fácil, bastaria ir ao portal americano rubylane.com e pesquisar pelo nome da marca.

      Aqui, a coisa é mais complicada. Em primeiro lugar a porcelana inglesa não é muito valorizada em Portugal. Se quiser saber preços terá que pesquisar nos catálogos das leiloeiras portuguesas, Cabral Moncada, Aqueduto, Correio Velho, etc. Também pode fazer a seguinte pesquisa no Google "nome da marca + antiguidades + Portugal"

      Também convém saber de que época é a peça em causa e isso consegue descobrir através do Google, porque há muitos sites que apresentam listas das marcas usadas por um fabricante durante 100 ou duzentos anos ( pesquise no Google por "english porcelain marks). Porque uma coisa é uma travessa do início do XIX, outra é uma peça moderna de há cinquenta anos atrás. O valor é necessariamente diferente

      Boa sorte

      Abraço

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  8. Boa tarde meu caro Bloguista.
    Gostei mt do assunto esclarecedor. Espero que ainda consulte o seu blogue para que assim possa ver a minha mensagem. Eu sou mt curiosa em diferentes marcas e a ceramica inglesa e sem dúvida tbm uma curiosidade sem resposta. Falo do fato de haver mal informação sobre a confusão que mts fazem em chamar a louça inglesa de Porcelana inglesa. Aguardo resposta se for possível.
    Aproveito para desejar-lhe saúde mental e física nesta nossa vida de Pandemia.
    Anabela Ferreira
    anabelainlisboa@gmail.com

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    1. Cara Anabela Ferreira

      A sua pergunta é muito pertinente.

      Com efeito, não há muito tempo nas lojas de louça e artigos para a casa vendia-se a chamada porcelana inglesa, mas que na realidade não era bem porcelana. Aos 18 anos, o meu primeiro emprego foi numa dessas lojas da Baixa lisboeta e de facto distinguia-se bem a verdadeira porcelana, como por exemplo, a louça da Vista Alegre, da dita porcelana inglesa, que afinal era uma faiança de alta qualidade.

      Esta confusão tem uma origem histórica. Como sabe foram os chineses os primeiros a fabricar a porcelana e os portugueses começaram-na a trazer da China para a Europa em grandes quantidades e essa louça da China fez furor no Ocidente, tal era a sua qualidade e beleza. Todos tentaram imitar a porcelana chinesa. As primeiras peças de faiança portuguesa logo no fim do século XVI e inícios do XVII imitavam descaradamente a porcelana da China. Mas o fabrico da porcelana era muito complicado, envolvia uma mistura química em que entrava o caulino e ainda uma cozedura a altíssimas temperaturas e só no início do século XVIII na Alemanha se conseguiu fazer porcelana a sério. Contudo, a porcelana continuou a ser sempre um produto caro. Nos finais do século XVIII, com a revolução industrial, os ingleses começaram a fabricar uma faiança de altíssima qualidade, conhecida pelo stoneware, a preços acessíveis e que claro, pretendia passar por porcelana.

      Na realidade, essa chamada porcelana inglesa é apenas uma faiança fina, de grande qualidade.

      Mas, atenção, os ingleses também fabricaram porcelana verdadeira, embora essa louça, nunca tenha chegado muito a Portugal. Nos séculos XIX ou XX, os portugueses além de já fabricarem porcelana, preferiam importar louça desse material da China, da França ou mesmo da Alemanha.

      Espero que tenha sido claro.

      Um abraço

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