sexta-feira, 26 de junho de 2015

Uma estampa de S. Cristóvão inspirada em Ticiano


São Cristóvão é uma daquelas imagens Kitsch, que aqui em Portugal associamos inevitavelmente um certo mau gosto. Não há muitos anos era raro o taxi em Lisboa que não tinha uma medalhinha de metal com o S. Cristóvão no tablier. Esta decoração costumava ser completada com um terço pendurado no espelho retrovisor, bem como uma bandeirinha de um clube de futebol, do Sporting ou do Benfica. Na época, nós, as pessoas de classe média achávamos aquilo tudo muito piroso, mas se pensarmos que Portugal tinha a mais elevada taxa de sinistralidade das estradas europeias, talvez a ideia de colocar uma imagem do patrono dos viajantes não fosse assim tão tola.


Toda esta conversa veio a propósito de uma estampa representando S. Cristóvão, belissimamente emoldurada num tecido bordado à mão, um daqueles trabalhos femininos, de monja ou de menina educada nas freiras, que nunca nos deixarão de espantar pelo virtuosismo técnico e pela decoração preciosa. O bordado está em demasiado bom estado para ser muito antigo, mas a estampa parece definitivamente coisa do século XVIII. Não tem qualquer marca de gravador ou impressor, mas o nome do nome do Santo, está identificado em latim, S. Christophorus, o que me leva a pensar que esta estampa não tenha sido feita em Portugal. Pelo menos, dos muitos registos de Santos impressos em Portugal no século XVIII, que me tem passado pelas mãos, a legenda está sempre em português. Em todo o caso, esta opinião é apenas um mero palpite, baseada na experiência e não em estudos sistemáticos.

Fiz algumas pesquisas na net pelo título em latim S. Christophorus, associado às expressões, engraving ou gravure, tentando encontrar qualquer informação que me permitisse situar esta estampa no tempo ou na produção de um determinado gravador ou País. Logo aos primeiros resultados, apercebi-me que a iconografia de S. Cristóvão se fixou relativamente cedo na arte europeia, segundo Louis Réau, a partir do séc. XIV e o mártir cristão é inevitavelmente representado com um homem possante, de elevada estatura, atravessando um curso de água, com um menino às costas e um bordão nas mãos.
S. Cristóvão, por Ticiano, no Palácio dos Doges, em Veneza
Porém, no meio da centena de imagens de S. Cristovão, que desfilaram à minha frente descobri que esta estampa se inspira mais ou menos directamente num fresco pintado no século XVI por Ticiano e que se encontra no Palácio dos Doges, em Veneza. A figura do santo e do Menino Jesus é exactamente a mesma, só que invertida, o cenário ao fundo, com uma igreja do lado esquerdo e um monte do lado direito é também idêntico. Em termos iconográficos, esta pintura apresenta uma variante, o menino não transporta na mão um globo, nem existem peixes na água. O fresco de Ticiano deve ter sido muito admirado no seu tempo e a partir dele foram feitas várias gravuras, ou talvez seja mais correcto afirmar, que houve muitos impressores a copiarem algumas gravuras feitas a partir do S. Cristóvão do célebre mestre veneziano.


S. Cristóvão gravado por Andrea Zucchi e inspirado em Ticiano. Victoria and Albert Museum

Por exemplo, o Victoria and Albert Museum, tem nas suas colecções uma estampa impressa por Andrea Zucchi, 1679-1740, também inspirada directamente na obra de Ticiano, mas de melhor qualidade, que aquela pertencente ao meu amigo Manel. Essas gravuras copiadas ou inspiradas na pintura de Ticiano, chegaram a Portugal, pois nos últimos anos do século XVIII António Joaquim Ribeiro imprimiu uma estampa com um S. Cristóvão, que tem também por modelo a aquela obra do artista italiano. Quase por uma simples amostragem feita na net, consegui apanhar uma sucessão de cópias feitas sobre cópias do fresco de Ticiano, o que nos permite perceber como a gravura foi na arte o veículo privilegiado para a viagem das imagens de país para país ou de um século para o outro.
S. Cristóvão, impresso por António Joaquim Ribeiro. Casa Martins Sarmento, Guimarães
Sobre quem era S. Cristóvão, não vou adiantar aqui muita coisa, pois este não é um blogue sobre vidas edificantes. Em todo o caso não falta beleza à história desta figura praticamente lendária, cuja principal fonte é a Lenda dourada de Jacques de Voragine. Terá vivido na Ásia Menor talvez no tempo das grandes perseguições de Imperador romano Diocleciano (284-305), em que foram chacinados milhares e milhares de cristãos. Cristóvão era um homem fortíssimo, muito alto, que depois de se ter convertido ao Cristianismo, se dedicava a transportar gratuitamente pessoas de uma margem para a outra do Rio.

Um dia apareceu-lhe um menino, que o pediu para o levar para a outra margem. O gigante meteu a criança ao ombro, mas esta pesava-lhe imenso e fez a travessia muito a custo. Quando no final, Cristóvão observou – Quem és tu menino, que me pesaste tanto, que parecia que transportava o mundo inteiro?

O menino respondeu -Tens razão, peso mais que o mundo inteiro, pois sobre os meus ombros carrego com os pecados do mundo. Eu sou Cristo, procuravas-me e encontraste-me. Doravante, chamar-te-ás Cristóvão (em grego, quer dizer o que leva Cristo) e ao ajudares quem cruzar o rio, estarás ajudando-me. Fixa na terra esse árido tronco, que te serve de báculo e pela manhã vê-lo-ás não só em flor, mas também coroado de frutos. De facto no dia, seguinte a estaca seca plantada na terra, tinha-se tornado numa palmeira, carregada de frutos. Depois deste episódio, S. Cristóvão  dedicou-se a evangelização de novas comunidades, e o número de novos praticantes, cresceu como o fruto da palmeira do seu bastão.
 

Há uma simbologia cristã mais ou menos evidente, nesta história, que é aquele que pratica o bem desinteressadamente, no momento da passagem para o outro lado do mundo, garante a sua salvação. Mas esta narrativa assenta também nos velhos mitos pagãos, como o do barqueiro Caronte, que transportava as almas dos que morriam através das águas do rio Estige e Aqueronte, que dividiam o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Contudo Caronte, fazia-se pagar pelo seu serviço, pedindo uma moeda, o óbolo, e Cristóvão transportava desinteressadamente os seus passageiros, o que do ponto de vista ético é um lado muito interessante desta lenda.
Alguma Bibliografia:

Iconographie de l’art chrétien / Louis Réau. Paris: Puf, 1958
 

14 comentários:

  1. Interessante como a sua descrição da ornamentação kitsch dos taxis em Lisboa em tempos passados poderia ter sido feita por um carioca sobre nossos taxis até meados dos anos 1980. E daí eu lembro que quando criança muitos motoristas de táxi no Rio eram portuguesas... Rio e Lisboa, sempre compatilhando aspectos culturais!
    A gravura certamente é derivada do afresco de Ticiano, e arrisco mais, face à gravura no Victoria and Albert Museum: os gravadores portugueses, talvez, tenham se esquecido (ou ainda, nem se preocupado, mesmo conscientes da questã) que quando vc faz uma matriz para uma gravura, deve tomar cuidado de sempre se lembrar que deve fazer o desenho espelhado, pois obviamente, depois da impressão, a estampa vai estar invertida em relação à matriz.
    Eu arriscaria dizer que eles teriam talvez copiado o motivo das gravuras já existentes (o que seria mais fácil do que ter que ir até a Itália... ;-) ).
    Gostei de conhecer a lenda de São Cristóvão, uma vez que eu não sabia nadinha, zero, niente. E afinal, o Palácio Imperial aqui fica no bairro com o nome do santo.
    abraços!

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    1. Fábio

      Quando escrevi o primeiro parágrafo deste texto, tive o cuidado de o situar num universo muito lisboeta, nunca imaginando que um carioca se reconhecesse nele. Mas, de facto esqueci-me dos traços que unem as duas velhas capitais, o Rio e Lisboa, além de que há portugueses em todo o lado. Em Paris, se apanhares um táxi há também fortes probabilidades de o motorista ser português e se for mais velho talvez tenha uma medalhinha de s. Cristóvão na sua "voiture".

      Concordo com as tuas afirmações sobre a gravura. Nos séculos XVII ou XVIII poucos eram os felizardos que poderiam viajar até Itália e os gravadores ou impressores, limitavam-se a copiar uma estampa que já circulasse, feita por alguém, que talvez tivesse visto o original. Em muitas dessas cópias, nem sequer havia o cuidado de fazer o desenho espelhado. Mas esse fenómeno, passou-se também na pintura, pois muitos pintores usaram gravuras como modelos para as suas obras e lá aparecem as figuras invertidas.

      S. Cristóvão protege os crentes nas viagens perigosas, em que a morte espreita a cada momento. Talvez no Brasil, para muitos colonos de todas as condições, inclusive a família real, que atravessaram o Atlântico, a devoção a S. Cristóvão fosse particularmente forte e sentida.

      Um abraço lisboeta

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    2. Olá Luis,
      Faz sentido o que você disse sobre a família Real e a travessia do atlântico, mas o bairro de São Cristóvão começou com a fundação da Igreja de São Cristóvão em 1627, então à beira-mar, pelos jesuítas, portanto, quando os Braganças chegaram aqui, a região já há muito tinha este nome.
      Naturalmente D. João VI poderia ter escolhido o local pela proteção do santo, mas acredito mais que ele assim o fez pois na época era bastante afastado do centro da cidade, e a Quinta da Boa Vista era talvez a propriedade mais luxuosa de então, possuía um terreno gigantesco à sua volta com jardins, e ainda por cima tinha vista para o mar, e se podia lá chegar por terra e mar.
      abraços!

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  2. Luís,
    Tão interessante as suas associações. O bordado é maravilhoso.
    Parabéns por esta descoberta.
    Bom fim-de-semana. :))

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    1. Ana

      Muito obrigado pelo seu comentário. A gravura é um tema sempre fascinante porque foi durante séculos o veículo privilegiado para a circulação de imagens e fonte de inspiração de obras de arte.

      bjos e boa semana

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  3. Acho linda a imagem de São Cristóvão. Ele é bem cultuado aqui no Brasil. Meu irmão é devoto. Já dei várias medalhas e santinhos para ele.
    O bordado é muito bonito, boa ideia da "prendada" contornar a estampa do tecido com pontos, o corrente e os picôs no centro. Mas é coisa nova o bordado, sinal que as "prendadas" ainda estão por aí, graças a deus e a São Cristóvão.
    Parabéns por mais este achado. São Cristóvão conduza você no comando do seu blog.
    Abraços.

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    1. Jorge

      Obrigado pelas suas palavras tão simpáticas. A devoção a S. Cristóvão é ainda extremamente popular, apesar de a igreja Católica ter retirado o seu nome do calendário litúrgico oficial. Porque de facto a este santo é mais uma lenda que outra coisa. No entanto a ideia de alguém que nos ajuda a atravessar um rio de sem nos cobrar nada é muito simpática, sobretudo nesta época de capitalismo desenfreado.

      Embora não sendo crente, gosto destas figuras, de S. Cristóvão, de Maria Egipcíaca ou de S. Brígida. Aprecio toda a simbologia que trazem com elas, que se perde na noite dos tempos.

      O bordado não é muito antigo, isto é, não é do século XVIII ou XIX, mas também não foi feito agora. Talvez tenha 40, 50 anos, é difícil precisar.

      um abraço

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  4. Luis
    A sua imagem é uma delícia. O tamanho e bordado fazem um casamento perfeito. Também tenho um carinho especial pela figura de S. Cristóvão transportando o Menino ao ombro. É uma figura querida dos condutores e viajantes. Ainda se lembra de existir uma estátua a saída de Lisboa, mesmo no centro da Rotunda? Quando se iniciava a viagem para terras transmontanas, pedia-se a sua protecção. Hoje, infelizmente, está relegada para
    uma via lateral.

    Um abraço
    If

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    1. Ivete

      Recordo-me perfeitamente dessa estátua de s. Cristóvão, agora relegada para um canto qualquer, onde ninguém repara nela. Julgo que a primeira vez que me contaram a história de S. Cristóvão, ainda era eu menino, foi ao passar por essa estátua a caminho de Trás-os-Montes e foi daquelas coisas que me ficaram cá dentro e cuja memória a Ivete me fez hoje trazer ao de cima.

      Um abraço

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  5. Enquanto sempre tive alguma empatia, melhor, alguma consideração, por algumas figuras dos denominados santos da igreja, como S. Francisco de Assis, que admiro na sua forma de vivência, ou S. Bernardo, como pensador ligado à austeridade e contenção, espalhando os seus ideais em que se inserem várias exortações contra a guerra, vivendo num século em que se encontrava numa região inflamado por ela, este S. Cristóvão nunca me "disse" nada.
    Conhecia, claro, o seu percurso, que me foi contado como uma "história da Carochinha".

    Vindo de uma família que não prestava a mínima atenção ao catolicismo, todo este universo sempre me escapou enquanto culto religioso.
    Talvez por hábito, ou talvez porque o dom da fé e da crença dogmática nunca me tocou, continuo da mesma forma, pois só ligo a estas imagens enquanto forma de expressão artística, e apesar de, agora - hábito recente e por influência tua - ter algumas paredes cheias destas pequenas imagens, só me servem se lhes sentir algum encanto estético ou qualidade de gravura.

    Por outro lado, este tema parece-me correto e adequado para uma casa de aldeia, ainda que de um monte alentejano, onde as populações são menos viradas para a religião do que em outras regiões do país.
    Adequa-se tanto na forma de preenchimento do espaço como na adequação ao ambiente que pretendo criar, pois o contraste com a cal por detrás faz sobressair estes pequenos retalhos de papel impresso.
    Claro que presto grande atenção à moldura, que pretendo esteja em harmonia com o que leva dentro - bem, aqui não consegui resistir a uma quantidade de dourados que, inicialmente, talvez não existissem.
    E assim vai crescendo um conjunto de pequenas peças de devoção antiga, destituídas do seu uso original, mas que formam um conjunto uniforme com a cozinha em que se inserem, o escuro das madeiras enceradas, o brilho das loiças rústicas em torno, a tijoleira de terracota do chão e a cal das paredes ... é uma boa forma de unir todos estes elementos tão típicos, que poderiam guarnecer uma casa de aldeia de Trás-os-Montes ou ... do Alentejo.

    Andei a tentar retirar a passamanaria em volta da gravura para verificar se havia alguma coisa escondida quanto à identificação da sua manufactura, mas ... debalde, não há nada por debaixo dela.
    Manel

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  6. Manel

    Podemos admirar a Vénus de Milo ou o túmulo de Tutankhamon e já não acreditar que há uma deusa do amor ou que aquele faraó foi um deus vivo. Claro, só entenderemos o seu significado pleno se estudarmos o quadro religioso em que estas obras foram executadas.

    Os registos de santos são modestas realizações artísticas, que muitas vezes tomaram como fonte de inspiração obras de mestres da pintura e são também uma fonte para a história das crenças e das mentalidades. Por outro lado, são uma colecção extremamente em conta. Que mais objectos do século XVIII se conseguem comprar a 5 ou a 10 euros, além dos registos de santos?

    Um abraço

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  7. Parece que o Manel já está bem apanhado pelo bichinho dos registos de santos, o que não admira, porque concordo com o que ele diz quanto à adequação destas peças ao ambiente de uma casa de aldeia, bem ornada com objetos cheios de memória e de passado, como é o caso...
    Também só conhecia o S. Cristóvão como protetor dos viajantes, fiquei a saber aqui muito mais sobre ele, e as achegas sobre o uso das imagens nos taxis, quer aqui quer no Rio, por informação do nosso amigo Fábio, acrescentaram cor a toda a história.
    Este exemplar, para além de ser em si uma gravura cheia de interesse e bem apresentada e enquadrada pelo Luís nas representações artísticas deste santo, tem aquela moldura bordada com missangas que aos meus olhos lhe aumenta muito o encanto. Até me questionei se teriam sido as mãos de ouro do Manel a fazerem aquele trabalho...
    Realmente vale a pena fazer uma coleção destes registos, mas eu continuo quase só virada para os cacos... ;)
    Obrigada por mais esta partilha deliciosa. Beijos

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    1. Boa tarde Maria Andrade.
      Peço desculpa por colocar esta resposta em local que não é meu, mas é uma forma de responder.
      Já vou fazendo vários tipos de restauro em tecidos (lençóis em linho, antigos e cheios do charme dos bordados e rendas, e que é uma pena deitar fora, lá vou tentando alinhavar aqui e acolá!), ou até nas rendas, sobretudo de bilros, que consegui aprender alguma coisa na net, mas confesso que é atabalhoado e nada digno das obras originais; não obstante, é preferível tentar o pouco que sei e posso, que colocá-los como panos da loiça! E pagar a quem o faça, fi-lo uma vez e reparei que eu consigo bem melhor e ... fica mais barato!!!! hehehe
      Agora bordar estas coisas, não, não conseguiria, mas tenho pena, pois seria uma forma de fazer brilhar estas peças com passado.
      Nem tão pouco já tenho olhos para tanto, nem creio que as mãos serviriam. Talvez noutra encarnação!
      Mas gosto da ideia que sugeriu, apesar de saber que já vou tarde
      Manel

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    2. Maria Andrade

      Em termos de decoração de interiores, os registos de Santos proporcionam um certo ambiente de século XVIII. Apercebi-me disso pela primeira vez em casa de um amigo meu, que também gostava de ambientes sobrecarregados, que decorou todo pequeno compartimento de uma mansarda com registos de santos. Aquele que era um espaço ingrato, muito acanhadinho e sem préstimo ficou com um ar barroco de antiga capela.

      O Manel ainda não faz bordados com missangas, mas julgo, que um dia se tiver que restaurar uma peça destas, é bem capaz de delirar com a ideia e aceitar o desafio.

      Bjos e obrigado pelo seu comentário

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