terça-feira, 23 de outubro de 2018

As damas do guéridon ou um retrato da minha trisavó

Fotografia da minha trisavô, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902)
Continuo nos meus trabalhos de identificação das personagens de um velho álbum de fotografias, datado mais ou menos entre 1860 e 1900 e que terá sido formado, pelo meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio. Normalmente parte-se para uma tarefa desta natureza, com o entusiasmo de um arqueólogo prestes a entrar numa câmara funerária há muito esquecida, sentido que vamos finalmente a dar um rosto a personagens, dos quais conhecíamos apenas os nomes nas genealogias e reviver o seu círculo de amizades e parentesco, mas acabamos muitas vezes desapontados e melancólicos, pois muitas fotografias não estão identificadas e aquelas damas e cavalheiros respeitáveis, desaparecidos do mundo dos vivos há muito, muito tempo, persistem em manter os seus segredos.
 
Um pormenor do retrato da minha trisavó
Contudo, com a ajuda de um bom amigo, o Manel, e alguma paciência, através da comparação sistemática de todas as fotografias deste álbum, conseguimos encontrar alguns denominadores comuns e desvendar um ou outro segredo.

A primeira fotografia do referido álbum é a de uma senhora elegantemente trajada de escuro e que eu reconheci como a minha trisavó, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão. Apesar de até bem pouco tempo só se conhecer uma única imagem dela, identifiquei-a imediatamente pelos seus grandes olhos claros e pela postura do corpo, uma certa tendência a curvar o corpo para a frente, evidenciando o ventre. Porém, no verso da fotografia, não há uma data, uma dedicatória ou nome do atelier fotográfico, para percebermos que momento da sua vida a câmara capturou. Como a Maria do Espírito Santo nasceu em 1856 e nesta imagem ainda parece estar na flor da vida, talvez a fotografia tenha sido tirada em meados da década de 70 ou início da década de 80 do século XIX.
 
Uma jovem elegante desconhecida

 
Um pormenor do retrato
Avançando pelo álbum fora, o Manel e eu encontrámos mais duas fotografias de jovens elegantes, mais ou menos da mesma época e que tem um factor comum com o retrato da minha trisavó, para além de pertencerem ao mesmo meio social obviamente. Todas as três posaram para o fotógrafo junto a uma pequena mesa decorada com passamanaria, ou um guéridon, nome francês pelo qual ficaram conhecidas essas mesinhas, destinadas a suportar objectos ligeiros, decorativos ou não e que proliferam na decoração de interiores da segunda metade do século XIX. As três seguram sempre um livrinho, que parece ser um daqueles livros de missa, editados em Paris e luxuosamente encadernados, demonstrado assim às madrinhas, às primas, às tias e aos potenciais candidatos a noivos, que eram jovens elegantes, instruídas, mas não em demasia e sobretudo devotas. Há de facto nestas fotografias, uma intenção e uma mensagem.
A segunda jovem elegante desconhecida
 
 
Um pormenor do retrato da segunda jovem elegante desconhecida
Na prática, como a mesinha é a mesma nas três fotografias e nas duas últimas, o nome do estúdio está identificado, descobrimos que a fotografia da minha trisavó foi feita no T. A. Pacheco, Photographia Transmontana, profissional que abriu o seu atelier em 1873, em Vila Real, na Rua de Santo António. As três damas, que certamente eram do mesmo meio social e se conheciam, foram ao mesmo estúdio fotográfico em Vila Real.
 
O autor das três fotografias é T. A. Pacheco de Vila Real, Trás-os-Montes
  
Alguma bibliografia, que refere o fotografo  T. A. Pacheco:
 
História da imagem fotográfica em Portugal 1839-1997 / António Sena. - 1ª ed. - Porto : Porto Editora, 1998

6 comentários:

  1. Bom dia Luís,
    Estas fotografias antigas são fantásticas, pela beleza que reside na sua simplicidade, pela informação que delas podemos retirar, mas sobretudo por tudo o que nos permitem imaginar.
    Julgo que tens razão ao afirmar que se trata do mesmo fotógrafo. Dificilmente haveria uma mesa igual e a utilização de um livro para apoio em todas elas, da mesma forma.
    Em relação aos livros (ou livro) que lhes serve de suporte na mesinha, tudo leva a crer que se trata de um álbum fotográfico. Na segunda imagem é visível um fecho em metal, usado neste tipo de álbuns devido ao facto de estes terem tendência a abrir quando estavam preenchidos com fotografias (cartes-de-visites), sobretudo quando estas tinham como suporte cartolinas mais espessas.
    Mas isto é apenas uma suposição.
    Um abraço,
    Berto

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    1. Humberto

      Realmente tens um bom olho clínico. Também coloquei a hipótese de que o livrinho, que está em cima da mesa, se trate de um álbum de fotografia, semelhante ao que mostrei no post anterior.

      Contudo, creio que a encenação montada pelo fotografo era a sugestão de um livrinho de missa ou de devoção, mostrando assim que se tratavam de jovens instruídas, mas devotas. Aliás, esta "mise en scène" deveria ser tão apreciada pela clientela que a repetiu nas três fotografias.

      Quanto a este T. A. Pacheco não consegui encontrar mais nenhuma informação acerca dele. Todas as fontes que eu consultei repetem a informação acerca dele e que eu transcrevi.

      Quando vejo estas fotos do século XIX de antepassados meus de Vinhais ou de Chaves, pergunto-me sempre se eles viajavam até ao Porto ou Vila Real para se fazerem fotografar, ou se os fotógrafos se deslocavam às cidades e vilas de província por ocasião de festas importantes.

      Quando estas fotografias foram tiradas, cerca de 1875/80 não existia ainda a chamada linha ferroviária do Corgo e uma viagem de Chaves ou Vila Real deveria ser muito complicada, atravessando montanhas terríveis. É certo que estas jovens eram abastadas e tinham dinheiro para usarem uma diligência ou talvez tivessem mesmo uma carruagem própria, mas em todo o caso, certamente, que demorariam um dia inteiro na viagem ou até mais. Por exemplo, em 1859, quando se rasgou a nova estrada Lisboa-Porto, a mala posta vazia a viagem entre as duas cidades em 34 horas.

      Estas fotografias levantam-nos tantas perguntas, às quais não conseguimos encontrar respostas satisfatórias.

      Um grande abraço

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  2. Olhando para a senhora parece-me bonita em termos faciais.
    Os olhos denotam influência genética de regiões mais a norte da Europa. Percebe-se que há desafogo económico e que pertence a um meio que não seria do comum da população da época.
    Mas fico admirado pela idade com que faleceu- 46 anos - estaria no meio da sua vida, para padrões atuais.
    Mesmo para a época, ainda era relativamente nova para vir a falecer com esta idade. Coloca-se-me a questão: Terá falecido de quê?

    Estas fotos trazem-nos o passado de volta! E muitas interrogações.
    Este retrocesso parece-me ser mais plausível na fotografia do que na pintura.
    Na pintura, esta poderá ser mais ou menos artificial, podendo mesmo haver lugar a adulteração dos traços da pessoa retratada (e era assaz comum que assim acontecesse) , enquanto que, numa foto, esta tem maior probabilidade de ser mais genuína, embora a técnica também permita que possa ser manipulada.
    Na fotografia há coisas que passam despercebidas na época e que, viajando através do tempo, e vistas pelo crivo dos nossos olhos atuais, nos vêm colocar interrogações.
    Aguçam-nos o olhar, a atenção pelo pormenor, a pesquisa relacionada com a contextualização, e a colocação de hipóteses.
    É todo um mundo que surge por detrás destas imagens, por vezes já desvanecidas, muitas vezes mesmo quase desaparecidas, mas cheias de um significado que nos faz ficar cheios de curiosidade.

    Não tenho grande prazer em fotografias/filmes atuais, onde as pessoas registam tudo o que podem para encherem as suas comunicações virtuais ou reais, e, no meio de todo este "barulho" é difícil perceber o essencial.
    Quando me querem mostrar os milhares de fotografias, filmes, vídeos das suas viagens à Tailândia, às Maldivas ou cruzeiro pelo Mediterrâneo, ou outros destinos e manifestações parecidos, sinto-me infeliz, a pensar "Lá vou eu perder horas da minha vida!" ... e tenho razão, pois não experimento qualquer prazer.
    Fecho-me, passo para um mundo interior, e deixo a maré invadir o que resta do meu ser que, miraculosamente, ainda parece acordado.

    Ao invés, estas fotos antigas têm o condão de me fazer sonhar e viajar pelo passado.
    É a história que as inundou e as devolveu cheias de significado.
    Oxalá se consigam identificar as outras fotos do álbum, seria interessante.
    Manel

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    1. Manel

      Não sei qual foi a causa de morte da Maria do Espírito Santo. Andei a vasculhar os documentos produzidos pelo meu pai e a única coisa que encontrei foi uma notícia na Voz de Chaves, de 20 de Março de 1902, que nos diz que morreu "victimada por antigos e dolorosos padecimentos". Ou seja, podemos daqui inferir que não morreu de um súbito ataque cardíaco, ou de uma congestão, mas sim de uma doença prolongada.

      Não há estatísticas para a esperança de média vida em Portugal antes de 1920. Nesse ano a média era de 35,8 anos para os homens e 40,1 para as mulheres. Também é certo que 1920 é logo a seguir à guerra, bem no rescaldo da pneumónica e talvez em 1902 a média fosse um bocadinho superior.

      Antes de descobrir estes novos retratos da minha trisavô não a achava muito bonita. Mas, agora penso que tinha uns olhos grandes, muito claros, lindos e melancólicos e de facto era uma elegante e com um porte de fidalga. Não admira que o Liberal Sampaio se tenha perdido de amores por ela.

      A Maria do Espírito Santo e o seu irmão António Vicente tinham um tipo clarinho, com olhos que nos parecem azuis ou verdes. Creio que nestes álbuns há também duas fotos do 3º irmão, o Miguel, mas não tenho a certeza, embora tenha os mesmos olhos claros e um tipo semelhante. As gerações que se seguiram nasceram com uma tez mais morena. Os Montalvões vieram da Galiza, mas em todo o caso, por todo o Norte de Espanha e de Portugal abundam pessoas de cabelo loiro e olhos claros.

      Hoje, a fotografia de tão banalizada que está perdeu o seu encanto. Tenho um CD de fotografias da minha filha em pequena, feita pelas minhas sobrinhas, que tem mais de 300 fotos! Pessoalmente preferia ter apenas uma boa fotografia dela em papel, além de que, daqui a 3 ou 4 anos, já não vou conseguir abrir o CD.

      Nesta época, nos anos 70 e 80 do século XIX a fotografia era um acontecimento, um dia especial, que implicava uma longa viagem, roupas novas, um penteado complicado e até jóias e havia uma preocupação muito grande com o que prendia transmitir.

      Enfim, estes álbuns fotográficos que agora recebi são um pequeno mundo a descobrir, tarefa para a qual conto com a tua paciência e ajuda.

      Um abraço

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  3. Muito bonito, fotos lindas de uma época tão romântica... mocinhas e senhorinhas de escol muito bem trajadas e conservadas em imagem para todo e sempre. Um documento de família, reminiscências de uma época.
    Sua "trisa" deve ter gasto uns 5 metros de fazenda - enfestada! - para fazer o vestido.
    Um abraço brasileiro em momento triste de uma nação, talvez, talvez, prestes e despencar em um abismo profundo. Rezo para que não desçamos ao inferno outra vez.

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    1. Jorge

      Obrigado pelo seu comentário. A minha irmã, que costuma vir aqui ao blog, embora nunca comente, telefonou-me a dizer que o vestido da minha trisavó era sem dúvida o mais aparatoso. Aquilo são folhos e mais folhos, que decoram todo o vestido. Não sei exactamente o que isso quer dizer. Neste último quartel do século XIX existiam códigos de vestuário que hoje nos escapam. Talvez fosse mais velha que as outras e pudesse usar vestidos mais espampanantes. Enfim, todas estas fotografias estão carregadas de pequenos símbolos, que alguém que vivesse naquela época entenderia de imediato.

      Relativamente ao Brasil, é curioso que neste álbum existem pelos menos quatro retratos tirados nesse País. Ainda estou às voltas para perceber quem são, se amizades da família se parentes ou afilhados. São todos homens, um deles um senhor muito distinto, dois janotas e um rapazinho. Irei publica-las. Pode ser que alguém aí nas terras de Vera Cruz os reconheça e me diga "olha o retrato de vovô".

      Toda a gente aqui segue com preocupação a situação brasileira, mas o Brasil tem sempre a capacidade e a energia de sobreviver às muitas crises. Estou-me a recordar da Ministra Zélia, que um momento para o outro congelou as poupanças da classe média e lançou milhares de brasileiros para a emigração.

      Um abraço deste lado do Atlântico

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