sexta-feira, 12 de abril de 2019

Do outro lado da barricada: Manuel Augusto Granjo: um condiscípulo republicano de José Maria Ferreira Montalvão

Manuel Augusto Granjo. Fotografia de J. M. dos Santos, Coimbra

Iniciei agora o trabalho de identificação dos retratos do segundo álbum de fotografias em formato carte-de-visite, que uma prima me ofereceu. Terá sido constituído pelo meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão (19-05-1878/24-5-1965) e a maioria das fotografias são dos condiscípulos do curso de Direito da Universidade Coimbra, que finalizaram a sua licenciatura no ano lectivo de 1901/1902, embora haja um ou outro retrato de colegas de outros cursos, bem como de outros anos.

Embora nunca tenha sido um militante activo de causas políticas, como o meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, que se envolveu em acérrimas polémicas na imprensa flaviense, o seu filho José Maria Ferreira Montalvão sempre foi monárquico. A bandeira azul e branca da monarquia esteve hasteada no Solar dos Montalvões muito depois da República e só dali foi apeada, aquando da visita do Presidente Carmona aquela casa, nos anos 30 ou 40 do século XX e mesmo depois desse momento foi guardada religiosamente numa vitrina, no chamado museu, onde eu ainda me recordo de a ver nos finais dos anos 70. Por onde andará ela hoje?
 
Verso da fotografia com a dedicatória "Ao seu amigo José de Montalvão, oferece com muita estima e amizade, M. Augusto Granjo, Chaves"
 
Por esse motivo, tive uma grande surpresa, quando deparei com um retrato de Manuel Augusto Granjo, com uma dedicatória afectuosa ao meu bisavô. Este Manuel Augusto Granjo foi o irmão do célebre António Granjo, uma das mais emblemáticas figuras da República portuguesa. Para os leitores do Brasil, menos familiarizados com a história portuguesa, a República portuguesa decorreu entre 1910 e 1926 e foi um período muito conturbado, em que os governos se sucediam uns atrás dos outros, com golpes e contra golpes de estado, arruaças, invasões de monárquicos, assassinatos políticos, surtos da pneumónica e ainda a desastrosa participação portuguesa na primeira Guerra Mundial. Lisboa, que hoje é considerada uma cidade segura e pacata, era na altura um sítio perigoso, onde a qualquer momento podia haver tiroteios. O banqueiro, Cândido Sottomayor, outro ilustre flaviense, ficou cego com um tiro perdido quando espreitava uma revolução da janela da sua casa lisboeta. António Granjo é quase um símbolo desses tempos conturbados.
 
António Granjo. Os dois irmãos eram muito parecidos. Foto retirada de Cinzas imortais: na morte de António Granjo / Rodrigo de Castro. – Porto: Tip. Lusitania, 1922
 
Mas, quando Manuel Augusto Granjo ofereceu a sua fotografia ao meu bisavô, provavelmente, quando terminou o curso de Direito, em 1898 os tempos eram ainda outros, mais pacíficos e reinava ainda o Rei D. Carlos. Manuel Augusto Granjo e o meu bisavô não fizeram o curso de Direito na Universidade de Coimbra ao mesmo tempo. José Maria Ferreira Montalvão estudou entre 1895 e 1902 e o irmão do célebre líder republicano entre 1893 e 1898. Em todo o caso, ainda conviveram três anos em Coimbra, o tempo suficiente para formarem uma amizade e trocarem fotografias, além de que se já se conheceriam de Chaves. Claro, os dois eram de níveis sociais diferentes, o meu bisavô pertencia uma família fidalga, muito conhecida de Chaves e os irmãos Granjos eram filhos de um curtidor e vendedor de peles. No entanto a família de Granjo deve ter alcançado algum bem-estar económico, pois conseguiu suportar os custos da educação de Manuel Augusto e mais tarde do próprio António Granjo. Em todo o caso, em Coimbra e na vida de boémia que sempre os estudantes faziam naquela cidade, as diferenças sociais esbater-se-iam um pouco, diante de uma garrafa de vinho e uma guitarra.
 
O meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão, no momento da sua formatura em 1902. Foto de Pinho Henriques, Coimbra

Deste Manuel Augusto Granjo não se sabe muito. Nasceu ainda em Carção, Vimioso e estudou em Direito, na Universidade de Coimbra entre 1893 e 1898. Foi administrador do Concelho de Chaves em 1898 e em 1908 já estava conspirar com o irmão numa intentona republicana. Foi advogado e professor do Liceu Central do Porto a partir de 1913 e deputado entre 1915 e 1916. Morreu cedo, em 1919 e terá deixado um filho, também chamado Manuel, que António Granjo nomeou seu herdeiro num testamento que fez em 1917 antes de partir para frente de combate, em França. Enfim, teve uma vida mais bem mais tranquila que o irmão António Granjo, que esteve em todos os momentos cruciais da República. Combateu contra os monárquicos, durante as incursões das tropas de Paiva Couceiro, em Trás-os-Montes nos anos de 1911 e de 1912, lutou na frente francesa durante a Primeira Guerra Mundial, foi ministro, primeiro-ministro e ainda protagonizou um dos últimos duelos da história portuguesa, em 1912, contra Álvaro de Castro. Em 19 de Outubro de 1921 foi assassinado, durante o célebre episódio da camioneta fantasma, ou noite sangrenta, em que uma camioneta andou por Lisboa a recolher líderes políticos, que foram depois chacinados no Arsenal da Marinha.
 
A camioneta fantasma. Foto Ilustração Portuguesa, 12 de novembro de 1921. Foto Hemeroteca Digital
 
Estes antigos álbuns familiares são com efeito inventário de imagens do passado de uma família, mas também da sociedade de uma região num determinado momento histórico e um testemunho muito relevante para a história no geral

Alguma bibliografia:

António Granjo : República e liberdade / Ernesto Castro Leal, Teresa Nunes ; rev. Susana Oliveira. - Lisboa : Assembleia da República, 2012.

Cinzas imortais: na morte de António Granjo / Rodrigo de Castro. – Porto: Tip. Lusitania, 1922
 
E ainda um agradecimento especial à Sra. D. Gabriela Fontes
 

6 comentários:

  1. Adorei a Caminhonette Fantasama, título muito apropriado da coleção Vampiro...confesso que adoro suas histórias, mas fico atrapalhado com tantos nomes e nomes parecidos. Sim, a História Portuguesa é difícil de compreender. Nos livros de Júlio Ribeiro há essa divisão entre monárquicos e republicanos entre os personagens, e eu fico a ver navios ou caravelas portuguesas, pois não sei nada daquele período fim de século XIX e início do XX.
    Mas preciso ler sobre a história da monarquia em Portugal, quero ler sobre dona Maria da Glória e o seu reinado. Coisas entre Portugal e Brasil, mas especificadamente.
    Enquanto isso, ensaia-se aqui em Salvador o traslado dos restos mortais de Tomé de Sousa que está sepultado em uma capelinha linda dedicada a Santo Antonio em uma propriedade particular em Setubal. A capelinha está semi destruída e é linda!!!
    De minha parte ele repousaria sempre lá.Daí já entra o folclore baiano...
    Conturbações e muitas, aliás, estão a ocorrer aqui pela antiga colônia.
    Um abraço, um feliz Domingo de Páscoa.

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    1. Jorge

      A chamada primeira República é um período difícil de entender, mesmo para nós os portugueses, quanto mais os brasileiros. A intenção foi boa, instituir um regime mais democrático, com mais instrução, mas a coisa acabou mal, com uma tremenda instabilidade, invasões de monárquicos pelo norte, a participação desastrosa de Portugal na Primeira guerra mundial e golpes de estado, por vezes muito violentos. O caso do António Granjo foi dos mais sinistros. No entanto foi um período culturalmente activo na literatura e nas artes plásticas.

      A primeira República em Portugal acabou em 1926 e institui-se uma ditadura que durou até 1974.

      Eta fotografia de um condiscípulo do meu bisavô faz eco desses tempos conturbados, até porque Chaves foi palco de violentos combates entre monárquicos e republicanos. O meu trisavô, o que era padre e monárquico ferranho andou fugido nessa época. Na velha casa de família existia um quarto secreto onde ele se refugiou nesse período.

      Um abraço

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  2. Quando, há anos atrás, assisti a um programa televisivo sobre este período, fiquei arrepiado com a história desta "camionete-fantasma", e, na altura, a história parecia tão surreal, que admiti a hipótese de ser brincadeira ou exagero.
    Vim a descobrir que tal não era o caso. Foi uma chacina praticada num curto período de tempo.
    Ainda hoje me arrepio com este facto que julgava ser impensável no século XX.

    Uma história bem contada.
    Com estas histórias vais desvendando os segredos de um velho álbum de fotografias, o que é deveras notável, dado que já estamos a mais de um século de distância, e a memória das pessoas não costuma durar tanto, sobretudo com pessoas que não se excederam pela excelência, mas por vidas mais ou menos comuns dentro do seu meio
    Manel

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    1. Manel

      O episódio da camionete-fantasma é sem dúvida um dos acontecimentos da República mais sinistros, do qual o irmão do condiscípulo do meu bisavô foi uma das vítimas.

      Era um tempo em que Lisboa era uma cidade perigosa, em que a qualquer momento poderia rebentar um golpe de estado e haver tiroteios na rua e parece que os lisboetas já estavam acostumados e nesses dias fechavam-se em casa. A propósito deste assunto consultei a revista Ilustração portuguesa de 1921, que fez uma ampla reportagem sobre o assunto. Porém, o número a seguir, aquele sinistro acontecimento, era inteiramente dedicado à poetisa Fernanda Castro, que se fez fotografar muito gira com um corte à garçonne e um vestido art deco, posando muito moderna nas várias divisões da sua casa. Recordo-me que pensei, mas esta gente, a Fernanda Castro e o António Granjo, viviam na mesma cidade, na mesma época e no mesmo País?

      Enfim, foi um período contraditório e difícil de entender.

      Um abraço

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  3. Respostas
    1. Margarida

      Muito obrigado pelo seu comentário e uma boa semana de trabalho.

      Bjos

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