Comprei mais este registo, representando um Menino Jesus, vestidinho como se fosse um cortesão, a que não faltam sequer uns sapatinhos de fivela, uma camisa debruada com rendas e uma peruca. Estava muito mal emoldurado, numa dessas caixas de vidro, ornamentada com umas fitas de ouro compradas nas lojas dos chineses e ainda umas escamas de um peixe, provavelmente de uma espécie geneticamente modificada. Enfim, era uma daquelas coisas modernas e infelizes a imitar os registos feitos nos conventos. Resolvi retirar esta estampa antiga daquele horror, mas acabei por rasga-la e lá foi o meu amigo Manel, que com a sua paciência, a conseguiu colar.
Como já escrevi
aqui no blog, durante os séculos XVII e XVIII nos conventos femininos portugueses a devoção ao Menino Jesus, manifestou-se de formas que hoje nos parecem muito curiosas. No muito tempo que tinham livre, as irmãs dedicavam-se a confeccionar enxovais completos ao Menino Jesus, onde não faltava nada, desde trajes de caça, roupa de cama, roupa interior, trajes de corte, chapéus, sapatos e meias, conforme nos dá conta Flávio Gonçalves na sua obra
O vestuário mundano de algumas imagens do Menino Jesus, Porto, 1967. Mas as religiosas se não limitavam ao guarda-roupa, escreviam poemas ao Menino Jesus, encenavam peças de teatro para Ele e ainda encomendavam-lhe cadeiras e camas em miniatura, que são réplicas fiéis do mobiliário então em voga. É o caso, deste menino Jesus, das Religiosas Flamengas do Convento de Alcântara, em Lisboa, que se encontra sentado num cadeirão de braços muito ao gosto do século XVIII.
O Museu Nacional de Arte Antiga expõe na secção de mobiliário algumas dessas cadeiras e leitos de imagens, que além de serem uma verdadeira graça, testemunham a intensa devoção ao Menino Jesus experimentada por essas mulheres que viviam em reclusão. Claro, aos nossos olhos modernos, tudo isto nos parece coisa própria de mulheres celibatárias, que procuravam satisfazer um desejo recalcado de maternidade, mas a sua fé era genuína e o Menino Jesus era como que um cupido brincalhão, que cravava no coração dessas freiras o dardo do amor divino.
Esta estampa dos finais século XVIII reproduz uma imagem que existiu em tempos no Convento de Nossa Senhora da Quietação, em Alcântara, conhecido vulgarmente pelas flamengas, pois tinha sido fundado no século XVI, no tempo de Filipe II, para acolher religiosas fugidas das perseguições luteranas na Holanda e na Flandres e terá sido objecto de um intenso culto não só parte das monjas clarissas, que viviam nessa casa de religiosas, mas também da população em geral, de outro modo não se teria mandado imprimir esta estampa.
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Menino Jezus das Religiosas Flamengas d'Alcântara. Carvalho Fecit. Em caza de M. D. A Junior, na rua dos Calafates, nº 116 |
Este registo foi gravado por Teotónio José de Carvalho, que fazia muitas destas gravurazinhas baratas (só eu tenho umas quatro gravadas por ele) e vendia-se em casa de um tal M. D. A Junior, na rua dos Calafates, nº 16. Estas iniciais correspondem ao nome Manuel d'Ambrosii Júnior, que no
Inventário da colecção de registos de santos de Ernesto Soares é mencionado 13 vezes, o que nos dá ideia da popularidade das suas edições. Tinha a sua casa na rua dos Calafates, nº 116, em Lisboa, que corresponde à actual Rua Diário de Notícias, no Bairro Alto. O Bairro Alto foi durante mais de dois séculos uma zona onde tradicionalmente os livreiros e impressores tinham os seus estabelecimentos.
Quanto ao paradeiro actual deste Menino Jesus e do seu precioso enxoval, não descobri nada. Após a extinção das ordens religiosas, com a morte da última freira, em 1887, as alfaias e os objectos de cultos deste convento dispersaram-se. Uns fazem parte da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga, mas entre eles não se conta o Menino Jesus nem a sua cadeira, e outros bens voltaram à igreja do mosteiro em 1889, sendo entregues à Real Irmandade da Nossa Senhora da Quietação. Será que este Menino Jesus pertencerá ainda à referida Irmandade ou foi vendido em hasta pública no século XIX e da sua existência luxuosa, com trajes de corte tão ricos, restou apenas esta estampa como testemunha?
Alguma bibliografia e links consultados:
Inventário da colecção de registos de santos / org. e pref. Ernesto Soares. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1955.
O vestuário mundano de algumas imagens do Menino Jesus / Flávio Gonçalves , Porto, 1967
http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=5940