quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Um relógio Waterbury


O meu amigo Manel tem a mania dos relógios antigos. Nas duas casas dele, há relógios de todos os tipos e feitios e por toda a parte, nas salas, nos quartos, nos corredores e sei lá onde mais. Quando tocam, há uma verdadeira sinfonia de badalos, uns que parecem sinos de igreja, e outros com toques subtis, próprios de casas de gente educada e discreta. Talvez esta mania dos relógios se explique por um certo gosto pela rotina, que marca a personalidade do Manel. Com efeito, estes instrumentos definem metodicamente um quotidiano, que se repete dia após dia e cujos passos decorrem às mesmas horas. Porém, desconfio que a verdadeira paixão dele pelos relógios tem a ver com os mecanismos e os segredos das engrenagens que os fazem funcionar. Com efeito, mal compra um destes objectos, o Manel, desmonta-os integralmente, repara o mecanismo, compra as peças em falta nas feiras de velharias ou nos poucos relojoeiros, que restam ainda na cidade, restaura a caixa de madeira e tudo aquilo lhe dá uma enorme satisfação.

Um dos relógios, que mais acho graça da colecção do Manel é um Waterbury, do tipo relógio de capela, aquilo que os americanos designam por Sharp Gothic. Tem ainda a etiqueta original do fabricante, colada por dentro da caixa, o que nos permite datar o relógio aí por volta da década de 70 do século XIX.
 
A etiqueta original permite datar o relógio por volta por volta da década de 70 do século XIX.
Há um site só dedicado à Waterbury, onde se ensina a datar os relógios pela etiqueta original de fabrico, cujo endereço disponibilizo http://www.antiquewaterburyclocks.com/Waterbury-Clock-Labels.php, pensando ser útil às pessoas, que lá em casa tem relógios desta marca, tão populares nas Américas e na Europa no último quartel do século XIX, já que nesse período, os fabricantes americanos invadiram o mercado dos relógios de parede ou de mesa, com os seus produtos baratos, produzidos industrialmente.
 
 
Mas o mais encantador deste relógio é que tem uma espécie de decalcomania, colada por dentro no vidro, com uma representação de uns meninos jogando à cabra-cega. Os petizes estão vestidos à maneira do século XVIII e recordam algumas das gravuras que Bartolozzi executou a partir dos desenhos de William Hamilton (1751–1801).
 
Blind man's Bluff de William Hamilton (1751–1801). British Museum
Contudo, o mais provável é que a fonte de inspiração seja a cabra-cega, um cartão que Francisco Goya executou em 1789 para uma tapeçaria. Os meninos descrevem uma roda à volta da menina vendada, numa composição muito semelhante à La gallina Ciega de Goya.
 
.A cabra-cega de Goya. Museu do Prado. Foto wikipedia

Creio que na casa ou nas casas por onde este relógio andou, terá feito  as delícias de gerações de crianças. Talvez imaginassem, que abrindo a porta de acesso ao mecanismo, houvesse lá dentro um mundo em miniatura, onde viveriam os meninos que jogavam à cabra-cega.
 
 
 

7 comentários:

  1. É verdade, a minha paixão por relógios é incompreensível.
    Fui criado numa casa sem quaisquer relógios nas paredes ou em aparadores ou mesas. Existiam sim, dois relógios, de funcionamento mecânico, de mesa de cabeceira, e que tinham a função de me despertar pela manhã (quando durmo é para dormir, e é difícil despertar!).
    E se algum relógio existisse que desse badaladas, quer estas fossem fortes ou fracas, seria seguramente desligado de imediato, pois o silêncio era prezado dentro de casa.
    A única exceção era um relógio de pé alto, francês, dito de Morez, de finais do século XIX, que tinha pertencido à família do meu pai, que ocupava um espaço destacado numa das salas da casa da minha avó, e ao qual era permitido o funcionamento pleno.
    E eu adorava o badalar do carrilhão daquele relógio, o qual fazia a repetição das horas. Era tranquilizante.
    Associava-o a uma segurança rotineira, dava-me a certeza que o amanhã existiria, e que se repetiria de forma tranquila, como tranquilo era o seu tic-tac pausado e seguro.
    Assim, estes instrumentos foram associados à segurança e à tranquilidade de um futuro incógnito.
    Talvez seja essa a explicação, que sei eu. A mente tem razões que ela própria desconhece.

    Quanto aos mecanismos e ao prazer que tenho em percebê-los, creio que se deve à vontade que sempre tive em restituir a vida a objetos que, doutra forma, estariam condenados ao desaparecimento.
    Quem é que liga hoje em dia a estes objetos??? Praticamente ninguém, e os que existem arrastam-se de forma quase sofredora pelos antiquários, casas de velharias e feiras por esse país fora.
    Acaso alguém se interessasse por eles não conseguiria adquiri-los por preços quase irrisórios, relativamente ao preço por que se vendiam na altura em que foram novos.
    Tratavam-se de objetos, quase de luxo, que eram adquiridos por uma sociedade burguesa ou mesmo aristocrática, dependendo da qualidade deles.
    Eram objetos que determinavam a posição económica e social de determinada família.
    Hoje em dia, na era digital, passaram de moda e tornaram-se obsoletos e até visto como exóticos ... uma mania de gente complicada e miudinha!
    Quem quer ter 8, 9 ao 10 relógios a badalar pela casa inteira? Só tontos como eu. Mas o que é certo é que eu mal dou por eles, e mal os oiço. Por vezes param e, só dias depois, dou pelo facto.
    Parabéns, pois está um bonito post, com uma boa pesquisa subjacente
    Manel

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    1. É bem verdade, pela quantidade de relógios deste tipo e desta época que aparecem nas feiras de velharias, é possível presumir que hoje em dia ninguém os valoriza, nem quer tais inutilidades em casa. No entanto, as suas badaladas e o tic-tac constante conferem a uma casa um certo ambiente de tranquilidade e segurança. Sentimos que o dia de hoje, será igual ao dia ontem e de amanhã.

      Além de tudo mais estes objectos, são muito bonitos e decorativos e tão um certo toque do passado a uma casa.

      Muito obrigado pelo teu comentário

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  2. Gosto também de relógios e este é uma maravilha, sobretudo pela pintura. Boa tarde!

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    1. Margarida

      A pintura é uma graça e creio que gerações de crianças se encantaram com ele. Quando o Manel comprou este relógio, já estaria eu a aproximar-me dos 50 e senti o mesmo encantamento desses meninos que conviveram com o relógio nos finais do século XIX.

      Bjos

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Salve! Luis belo relógio. Temos três relógios antigos aqui em nossa casa. Um cuco ao gosto da Floresta Negra e outro art déco de balcão. O terceiro é um carriage francês que compramos como sucata no mercado das pulgas e mandamos consertar. Os dois primeiros marcam o compasso da casa, são no dizer de minha esposa os batimentos da casa. Sobre casas abarrotadas de coleções, dia desses, uma pessoa ao ser recebida em nossa sala atulhada com cinco guarda louças/cristaleiros, móveis estilo manuelino, art nouveu e déco, fora os candeeiros espalhados, miscelâneas etc... afirmou: " é um verdadeiro museu!" Fico curioso e to,mo a liberdade de perguntar: Já lhe falaram algo assim? Rimos muito, nos consideramos colecionadores de memórias de um tempo do qual os ponteiros dos velhos relógios sismam não deixar passar.Um abraço d´além mar que esperamos te encontre gozando de saúde e felicidade na velha, bela e eterna capital Lisboa. Edwin J. Pinto Fickel.

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    1. Caro Edwin

      A expressão usada pela sua esposa, "os batimentos da casa" é muito feliz. Com efeito, parece que as suas badaladas e os seus tic-tacs são os batimentos do coração da nossa casa, local onde nos refugiamos de um quotidiano agressivo.

      Como o Edwin bem calculou muitas pessoas que visitam a minha casa ou a do Manel usam essa expressão, "parece um museu" e talvez tenham um pouco de razão. Um museu é um sítio onde o tempo para ou corre mais devagar e é por isso, que visitar um museu é tão tranquilizante.

      Um abraço de Lisboa para esse imenso Brasil

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