Bem sei que esta estampa não foi propriamente uma pechincha, mas pareceu-me desde logo uma coisa com qualidade, com uma moldura adequada, pequenina e ficava a matar na minha sala de jantar e lá paguei a quantia pedida e voltei todo satisfeito para casa com ela dentro da mochila.
Representa um tema da mitologia clássica, o que serve bem para variar de tantos santos, cristos e virgens que decoram a minha casa. Enfim, tenho que começar a pensar nos meus filhos, que um dia herdarão a tralha toda da minha casa e não acham ainda grande graça à arte sacra.
Para tentar identificar esta estampa, fotografei-a primeiro e depois fiz up-load desse ficheiro no google imagens e mediante um clic o motor de busca vasculhou num minuto toda a internet e descobri imediatamente, duas ou três páginas com imagens iguais, que me permitiram identificar a gravura.
Folha de rosto da obra Recueil de divers Desseins de Fontaines et de Frises maritimes Inventez et dessignez par Monsieur Le Brun premier Peintre du Roy. Foto bibliothèque numérique de l’Institut National d’Histoire de l’Art |
Na bibliothèque numérique de l’INHA (Institut National d’Histoire de l’Art ) percebi que esta estampa fez parte de uma obra, o Recueil de divers Desseins de Fontaines et de Frises maritimes, impressa em Paris, por Jean Audran em data incerta, embora naquela biblioteca francesa situem a sua publicação entre 1727-1756. Como o próprio nome indica, esta obra trata-se de um compilação de desenhos de fontes desenhadas pelo célebre Charles Le Brun (1619-1690) e que se destinavam originalmente aos jardins do Palácio de Versalhes, em França, mas que foram rejeitadas por serem demasiado barrocas, numa época em que o gosto do rei Luís XIV já tinha evoluído numa direcção mais clássica e sóbria. Com efeito, estes projectos para fontes de Le Brun são de um barroco muito romano, mas confesso que me delicio a imagina-las construídas.
Uma das imagens da obra Recueil de divers Desseins de Fontaines: a fonte de Perseu e Andrómeda. Foto de https://bibliotheque-numerique.inha.fr/ |
Esta estampa corresponde a um desenho de Charles Le Brun feito na segunda metade do século XVII e encontrava-se na última folha do Recueil de divers Desseins de Fontaines, onde além desta imagem constavam mais outras duas. Numa época que desconheço, alguém, talvez um alfarrabista retalhou o Recueil e vendeu as estampas em separado para fazer mais dinheiro.
A minha estampa fazia parte de uma folha com mais duas imagens. Foto de https://bibliotheque-numerique.inha.fr/ |
A gravura apresenta no canto inferior esquerdo as iniciais C.L.B., correspondentes ao nome Charles Le Brun, Contudo a leitura das iniciais seguintes C.P.R. confundiram-me um bocado, pois não correspondiam às do nome do impressor Jean Audran, nem do outro gravador, que colaborou na obra, Louis de Châtillon (1639-1734). Enfim, fiz mais umas pesquisas e percebi que C.P.R. são as iniciais da expressão latina, Cum Privilegio Regis, o que quer dizer, com o privilégio real. Enfim, por vezes esqueço-me que na primeira metade do século XVIII o latim era ainda uma língua de comunicação entre as pessoas cultas da Europa.
C.L.B. e C.P.R. Estas inicias são o desdobramento de Charles Le Brun cum privilegio regis |
Como referi no início, esta estampa é uma representação de figuras da mitologia da antiguidade clássica, uma cena com Nereidas, isto é, umas ninfas marítimas, que aparecem normalmente montadas em golfinhos e os Tritões, outras divindades do mar, com metade do corpo humano e a outra metade peixe. No centro há uma concha, onde um putti, segura em cada mão uma flor de Liz, o símbolo real francês, certamente uma alusão à grandeza de Luís XIV, ao qual as nereides e os tritões vem prestar homenagem
Uma nereida |
Uma alusão à grandeza de Luís XIV, ao qual as nereides e os tritões vem prestar homenagem |
O tritão |
É curioso observar que Charles Le Brun usou uma convenção artística vinda da antiguidade clássica para representar os tritões e as nereidas, conforme se pode comprovar em mosaicos de vilas romanas, que sobreviveram até aos nossos dias. Realmente houve temas artísticos que permaneceram imutáveis durante séculos.
Mosaico romano com a representação de uma nereida |
Mosaico romano com a representação de um tritão |
Em suma, esta estampa foi impressa em Paris entre 1727-1756, fazia parte da obra Recueil de divers Desseins de Fontaines et de Frises maritimes, realizada a partir de desenhos de Charles Le Brun da segunda metade do século anterior e evoca todos os esplendores do Grand Siècle, expressão, que designa o reinado de Luís XIV.
Ligações consultadas:
https://bibliotheque-numerique.inha.fr/collection/item/36638-recueil-de-divers-dessins-de-fontaines-et-de-frises-maritimes?offset=1
http://arts-graphiques.louvre.fr/detail/oeuvres/1/207833-Fontaine-de-la-victoire-dApollon-sur-le-serpent-Python
https://library.princeton.edu/versailles/item/872
Luís
ResponderEliminarComo sempre um verdadeiro trabalho de investigação. Parabéns pela lição.
Um Bom Ano.
if
Ivete
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário.
Gosto muito de gravuras e dá-me um enorme prazer identifica-las, tentar perceber de que livro foram destacadas.
Um bom ano e um abraço
A gravura é muito bonita e está muito bem emoldurada, e seria uma pena deixá-la lá, apesar de não ter o preço mais em conta.
ResponderEliminarE a tua investigação resultou muito bem, os parabéns
Manel
Manel
EliminarEstas gravuras francesas tem muita qualidade. Claro, depois de perceber de onde é que ela veio fiquei com pena de não ter uma das outras, como a da fonte de Perseu e Andrómeda.
Como sou bibliotecário, tenho sempre facilidade em desembaraçar-me com tudo o que é material impresso.
Agora segue-se o problema, de encontrar um sítio para pendurar a estampa.
Um abraço
Interessantíssimo (como sempre). Feliz 2019!!!
ResponderEliminarMargarida
EliminarObrigado pelo seu comentário.
Descobrir de que um livro uma gravura foi arrancada é dos trabalhos que mais gozo me dá.
Um abraço e retribuo os votos de um bom ano