Verdadeiro retrato da milagrosa imagem de Jesus Nazareno, cativo, ultrajado pelos moiros. |
A legenda da estampa diz o seguinte Verdadeiro retrato da milagrosa imagem de Jesus Nazareno, cativo, ultrajado pelos moiros. Seguem depois as indulgências concedidas pelo Cardeal Patriarca de Lisboa a quem rezasse uns quantos padres nossos e avés maria diante da imagem ou da estampa. Achei tudo isto muito curioso. Toda gente sabe que Jesus Cristo foi supliciado e morto na Palestina, num tempo em que não havia muçulmanos. Estes só apareceriam na história uns 600 e tal anos depois. É certo que em muitas pinturas antigas os artistas não se preocupavam em reconstituir a indumentária do tempo de Jesus e os soldados romanos trajavam como militares da renascença, a Virgem envergava trajes de corte e por aí fora, mas misturar mouros com Jesus, pareceu-me um anacronismo excessivo..
Intrigado fiz algumas pesquisas sobre esta estampa e encontrei no Arqueólogo Português, série, 1, vol. 22, de 1917, um texto de Luís Chaves, os Registos de Santos, que assinala esta gravura e explica que no Convento do Carmo, em Lisboa, houve uma imagem de Jesus Cristo cativo, que esteve Argel. Fiz mais uma pesquisa, aqui e acolá e no meio de todas as lendas, que sempre rodeiam estes assuntos de devoções, percebi que esta estampa reproduzia uma escultura de Cristo roubada pelos mouros e resgatada mais tarde. Na realidade, a verdadeira imagem deste Cristo encontrava-se em Marrocos, em La Mamora, um reduto fortificado pelos espanhóis após 1614 e que durante grande parte do século XVII foi assediado várias vezes pelos marroquinos ou mouros, até que em 1681 caiu finalmente nas mãos destes últimos. Entre o espólio do saque estava uma imagem de Cristo, à qual os soldados espanhóis tinham muita devoção e os mouros transportaram-na para Mequinez, onde a arrastaram pelas ruas, enquanto a populaça escarnecia daquilo que consideravam um ídolo. Uns frades trinitários, ordem religiosa, que se dedicava ao resgate dos cativos cristãos no Norte de África assistiram ao espectáculo degradante e conseguiram comprar a imagem e leva-la para Espanha, mais exactamente para Madrid. Ao pescoço da imagem colocaram um escapulário, com a cruz trinitária, vermelha e azul, que era como que um salvo conduto para atravessar as terras da moirama e demonstrar em Espanha, que tinha sido a Ordem dos Trinitários a pagar o resgate.
Ao pescoço da imagem um escapulário, com a cruz trinitária, vermelha e azul, |
Em Madrid a imagem foi depositada na Igreja de Medinaceli onde se tornou objecto de grande devoção, que persiste nos dias de hoje e o seu culto espalhou-se por toda Espanha e pelo vistos por Portugal, como esta estampa o demonstra. Fieis, padres, irmandades ou bispos por várias cidades da Península Ibérica encomendaram esculturas idênticas às de Medinaceli para as suas igrejas.
Quanto à verdadeira imagem que estaria no convento do Carmo, sobreviveu ao Terramoto de 1755, pois esta estampa foi executada por Teotónio José de Carvalho, gravador activo entre 1790 e 1800 conforme se pode ver no índice das estampas da sua autoria digitalizadas na Biblioteca Nacional de Portugal. Este Teotónio José de Carvalho tanto assinava as suas gravuras como Carvalho f. ou C. f.
Teotónio José de Carvalho tanto assinava as suas gravuras como Carvalho f. ou C. f. |
Quanto ao paradeiro actual dessa escultura não consegui descobrir nada, pois em 1834 com a extinção das ordens religiosas, os bens dos conventos foram vendidos ou incorporados nas igrejas paroquiais e finalmente alguns deles deram entrada nos museus nacionais.
A moldura foi comprada na Feira de Estremoz |
Por último, esta estampa que comprei solta, foi colocada numa moldura muito simples, que adquiri na Feira de velharias de Estremoz, que encaixilhava a fotografia de um pai e de um filho, tirada talvez na primeira década do século XX. Não tive coragem de deitar a fotografia fora, e limitei-me a virar o cartão onde estava colocada. De modo, que atrás deste Jesus Nazareno cativo e ultrajado pelos mouros, estão um pai e um filho, cativos no esquecimento.
Por detrás deste Jesus Nazareno cativo e ultrajado pelos mouros, estão um pai e um filho, cativos no esquecimento. |
Alguns links e bibliografia consultados:
In
Arqueólogo Português, série, 1, vol 22, de 1917
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ResponderEliminarCaro António
EliminarMuito obrigado pelo teu apreço.
um grande abraço
É verdade, estas imagens vendem-se por preços irrisórios.
ResponderEliminarO curioso é que, quando alguém me vende uma destas peças, muitas vezes me informa que o preço vale bem a moldura, pois a imagem, essa posso atirá-la fora.
Amiúde, o que acontece é bem o contrário, pois dou comigo a maior parte das vezes a deitar fora a moldura, que entretanto já foi toda pintalgada ou "embonecada" com vernizes "da treta", doirados de bradar aos céus, pois limpá-las dá-me muitas vezes mais tempo e cuidado que substítui-la.
Esta história que contas dá conta da razão de ser do escapulário que o Cristo leva ao pescoço. Quantas vezes dou por mim a tentar perceber a razão dos ornamentos que cobrem ou que vão junto de determinada imagem, e aqui a explicação é perfeitamente válida e a razão está bem clara.
Um bom texto para uma peça igualmente bonita.
Eu, sendo igualmente não religioso, era dos que não ligava muito a estas imagens, e foi contigo que aprendi a apreciar a beleza delas e a dar-lhes um sítio de destaque na minha casa.
Só ainda não consegui perceber a beleza dos Cristos crucificados, pois estes não me parecem nada bonitos, e custa-me colocar em lugar de destaque um homem que está a ser sujeito a um sofrimento atroz, que não se deseja a ninguém.
Talvez qualquer dia me abstraia desta ideia do sofrimento e repare só na beleza iconográfica da representação, e do respetivo desenho - já consigo aceitar a representação da coroa de espinhos, talvez porque não a considero um sofrimento tão horrível.
Manel
Manel
EliminarTu e eu andamos sempre a comprar ora molduras ora gravuras, Umas vezes deitamos fora a reprodução nojenta que está dentro da moldura. Outras vezes inutilizamos a moldura e ficamos com a estampa. Enfim, Vamos fazendo montes de gravuras e molduras, que vamos casando aos poucos.
Relativamente a este Senhor Cativo, faltou referir neste post, o contexto em que esta história aconteceu e em que se formou a devoção aquela imagem. Nos séculos XVII e XVIII os corsários argelinos e marroquinos ainda assolavam a costa mediterrânica de Espanha, o nosso Algarve e ainda as ilhas atlânticas. Atacavam também barcos de pescadores ou navios comerciais. Roubavam e pilhavam e faziam cativos. A ordem dos Trinitários tinha precisamente a função de resgatar os cativos na moirama. Grande parte dos fundos da Ordem da Santíssima Trindade eram destinados a pagar o resgate de cristãos capturados pelos mouros e tinham contactos privilegiados no Norte de África. Aliás, os primeiros estudos da língua árabe em Portugal começam no século XVIII, não com objectivos culturais, mas com a função de preparar os frades na sua missão de negociar o resgate dos cativos no Norte de África.
Talvez por essa razão esta devoção se tenha tornado tão especial.
Um abraço
Uma imagem cheia de história e de curiosidades. Gostei de ler e gostei também da história por conhecer dos fotografados que se mantêm cativos na moldura. :)
ResponderEliminarLuisa
EliminarEstes pequenos registos de santos contam muito mais coisas, do que parece à primeira vista.
Como reaproveito muitas molduras antigas compradas em feiras de velharias para encaixilhar gravuras ou fotografias de família, mantenho muitas vezes o retrato antigo, talvez por respeito da memória desses desconhecidos ou porque me delicio com uma certa confusão que essa sobreposição irá causar nas gerações futuras.
Um abraço