domingo, 12 de setembro de 2021

Nossa Senhora em espuma de mar


Encanto-me com as pequenas imagens religiosas francesas de finais do século XIX, normalmente encaixilhadas numa moldura oval e com o vidro abaulado ou bombé, como se fiz em francês. Eram imagens que se traziam dos centros de peregrinação em França como Lourdes ou La Salette ou que se vendiam em casas de artigos religiosos. Ao contrário do que se pensa, a França não exportou só para o mundo revoluções, jacobinismo, movimentos artísticos arrojados e ideias de liberdade ou de libertinagem. Durante o século XIX, uma boa parte da França continuava profundamente católica e abundavam naquele país casas de artigos religiosos, que exportavam os seus santinhos, pagelas e livros piedosos para o todo o mundo apostólico e romano.

Há muitas imagens destas à venda na net e há sempre uma certa confusão sobre o material em que são realizadas. Normalmente são vendidas como sendo espuma de mar, em francês, écume de mer e em alemão, meerschaum, termo também usado pelos ingleses. Esta espuma de mar é um mineral branco, uma sepiolita, que faz parte do grupo das argilas. É um material fácil de trabalhar e adequado à escultura. Contudo, alguns sites de venda on line, como o americano rubylane, indicam que o material é a Terre à pipe ou terre de pipe, o nome antigo de uma argila plástica ou de um caulino, todos eles propícios à realização de trabalhos minuciosos de escultura. Outros ainda são vendidos como gesso. Estes últimos são relativamente fáceis de identificar pois são sempre mais branquinhos que os outros. Agora saber se são feitos em sepiolita, terre de pipe ou caulino é demasiado complicado para mim que não entendo nada de mineralogia, mas fiquei com a ideia que estes três minerais são relativamente próximos uns dos outros.

Esta nossa Senhora é de dimensões reduzidas

Esta nossa Senhora em espuma de mar ou terre de pipe de dimensões reduzidas é um trabalho muito minucioso e tem uma cor vagamente amarelada, que faz até lembrar o marfim. A minha peça não está no seu contexto original, perdeu a sua moldura original oval, com o vidro bombé



No verso tem dois espigões o que me levou a pensar que estaria encaixada numa estrutura côncava também em espuma de mar e que lhe serviria de cenário, com uma nuvens representadas, uns raios de luz divinos e uns anjinhos. Porém encontrei num desses sites de partilha de imagens, https://www.picuki.com/media/1736802531030081519, uma nossa senhora igual, que pertence a uma senhora ou senhor australiano, que se encontra em Brisbane. De facto, a minha imagem, nunca teve nenhum cenário e falta-lhe apenas a moldura oval e o vidro abaulado.

Este seria o aspecto original da minha Nossa Senhora. Foto de https://www.picuki.com/media/1736802531030081519


Quanto à iconografia não consegui perceber, a que devoção mariana ou a que santuário mariano em França, esta peça se reporta. Contudo quando mostrei esta foto a um amigo, o Daniel, ele identificou-a imediatamente como tendo sedo inspirada directamente na Imaculada de Soult, também conhecida por Imaculada Conceição dos Veneráveis, uma pintura do espanhol Murillo, datada de cerca de 1678. 
Imaculada de Soult, de Murillo. Museu do Prado. Foto Wikipédia

Esta pintura tem uma história muito curiosa, pois foi concebida originalmente para o Hospital de los Venerables, em Sevilha, mas em 1813 durante as invasões francesas, foi roubada e levada para França, pelo Marechal Soult, esse senhor que também fez umas belas patifarias por Portugal. Depois da morte do Marechal em 1851, os herdeiros venderam à pintura ao Museu do Louvre em 1852 por uma verdadeira fortuna. A Imaculada Conceição dos Veneráveis esteve exposta no Louvre até 1941, ano em que o Marechal Petain, a devolveu a Espanha, juntamente com a célebre Dama de Elche.

Em suma durante a segunda metade do século XIX, esta pintura do Murillo este exposta no Louvre e algum fabricante de artigos religiosos de Paris viu-a, encantou-se com ela e teve a ideia de a reproduzir em espuma de mar e vende-la como uma imaculada qualquer venerada nalgum santuário francês. Enfim, esta é a minha teoria, que não sei se será exactamente verdadeira.

O material tem uma cor amarelada, que em alguns ângulos de luz parece quase marfim 

Agora faltava apenas descobrir uma moldura oval e alguma casa que ainda faça vidros abaulados, para devolver a esta pequena escultura o seu aspecto original.

Alguns links consultados: 



5 comentários:

  1. Respostas
    1. Margarida

      Estas peças francesas que normalmente aparecem à venda como sendo de espuma de mar são muito bem talhadas e tem por vezes esta cor que quase parece serem de marfim.

      Um abraço

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  2. A peça é muito bonita. Também não sei distinguir a composição destas peças, exceto quando se trata de gesso, que aí não é tão difícil.
    Tenho alguns medalhões em gesso, que deverá estar misturado com outro produto qualquer para lhe dar uma maior consistência, mas aqui percebe-se a composição e reconheço-a.
    Existem aqui também pequenas representações religiosas, como esta tua, que não reconheço o material de que e estão feitas, poderá ser argiloso ou a dita "espuma de mar".
    Tenho um cachimbo, que julgo ser de origem americana, pois representa o antigo presidente dos EUA, William Taft que, penso, será em espuma do mar. Para resistir ao calor do tabaco a arder tem de ser um produto ignífugo, daí o termo "terre à pipe". Será argiloso? à base de caulino? a tal "espuma de mar"? Não sei o suficiente para distinguir.
    Mas, independente do material, é uma peça muito bem executada, cheia de preciosismos na escultura.
    Ainda bem que o teu amigo te identificou a pintura sobre a qual foi baseada.
    Pena que os franceses não tivessem devolvido também as preciosidades que pilharam em Portugal.
    E foi uma sorte teres apanhado esta peça, tal como deve ter sido originalmente, pois é muito bonita, com um fundo azul noite e enquadrada pela moldura em negro coberta de uma camada de goma-laca, tal como era uso na época.
    Se fizeres algo à tua, seria de manter esta opção cromática, que favorece muito a peça, colocando-a em destaque.
    Manel

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    1. Manel

      Já há uns tempos que sentia necessidade de perceber esta confusão entre espuma de mar, terre de pipe, caulino e aproveitei este post para fazer um pouco mais de pesquisa sobre estes materiais, que afinal terão uma composição mais ou menos semelhante.

      Estas esculturinhas já eram produzidas em série, mas apesar disso, a execução era primorosa e pelos vistos inspiravam-se em bons modelos, como neste caso, uma pintura do Murillo.

      Como toda a gente sabe, os franceses pilharam e roubaram em larga escala no nosso País durante as invasões, logo no início do século XIX e nunca devolveram nada.

      A devolução da Imaculada Conceição dos Veneráveis ocorreu durante o regime de Vichy e velho marechal Petain sentiria simpatia pelo regime de Franco. Também não sei se os nazis não terão exercido pressão sobre a França para ceder esta pintura do Murillo e a dama de Elche. Contudo a França recebeu em troca o Retrato de Mariana da Áustria de Diego Velázquez.

      Vou tentar ver se na Vencedora de São Lazaro tem vidros abaulados e molduras ovais com um acabamento lacado. Por vezes também posso ter a sorte de apanhar uma dessas molduras no chão de uma feira. Até lá vai para a parede assim mesmo.

      um abraço

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    2. Manel

      De facto esta devolucão da Imaculada á Espanha, ocorre num período de fraqueza da França, logo a seguir à derrota de 1940. Por essa altura o regime de Franco fez alguma pressão junto de Hitler para a Espanha anexar parte do Marrocos Francês e de algumas colónias da África Ocidental. Essas pretensões de Franco foram rejeitas por Hitler, que prendia manter uma boa relação com a França de Vichy. Esta oferta de obras arte tem a ver coma política de Vichy de apaziguar uma Espanha hostil à França.

      Um abraço

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