segunda-feira, 26 de maio de 2025

Um testamento em 1860: o legado destinado às mulheres

O testamento, que conserva o lacre com o qual foi fechado


Até há pouco tempo acreditava que quase toda a documentação histórica do antigo solar da família Montalvão, tinha sido vendida em 1986 juntamente com a livraria da casa. Mais tarde, através das conversas com o meu pai percebi que afinal se tinham conservado muitas cartas do tempo dos meus trisavôs. Depois da morte do pai, fiquei com essa documentação, que vou tratando paulatinamente e aos poucos tenho encontrado documentos mais antigos, relativamente à administração da casa ou notariais. Afinal e felizmente, nem tudo se perdeu.

Um dos documentos interessantes, que descobri foi o testamento do meu quarto avô, João Manuel Ferreira Montalvão (2-5-1806/ 23-02-1861), escrito a 8 de Novembro de 1860. Sei pouco deste antepassado e nas notícias, que vão aparecendo dele há uma certa confusão com outro João Manuel Ferreira Montalvão Ferreira Montalvão (1767-1844), que era seu tio, portanto irmão do pai. Um miguelista convicto, esse tio teve uma actividade política intensa, chegou a presidir à Câmara Municipal de Chaves em 1828 e D. Miguel concedeu-lhe até o uso da medalha, da sua real efígie e ainda foi feito cavaleiro da Ordem de Cristo em 1824. O meu quarto avô, também João Manuel Ferreira Montalvão parece ter tido uma existência mais tranquila, obviamente dentro do que seria possível num período da nossa história, tão complicado, marcado pela guerra entre Liberais e absolutistas. Ainda assim participou na administração camaria de Chaves em 1850 e 1851 num período já mais estável do país. Os documentos que encontrei no espólio com o seu nome são sempre relativos a compra de propriedades ou de administração da casa agrícola.

Nasceu em Outeiro Seco e casou dentro do seu meio social, a fidalguia rural, em 23 de Janeiro de 1837, com Maria Emília de Morais Sarmento (14-08-1818/ 14-4-1874), de uma aldeia vizinha, Santo Estevão.

Deste matrimónio nasceram 5 filhos, Miguel José (1838-1890), que foi advogado, António Vicente (1840-1919), um militar com uma carreira brilhante, Ana (1842), Henriqueta (1847-1873), outra Ana (1851) e ainda minha trisavó Maria do Espírito Santo (1856-1902). As duas Anas morreram muito cedo, ainda crianças. Os três primeiros filhos nasceram em Santo Estevão, o que me leva a crer que este casal viveu pelo menos até 1842 no solar dos Morais Sarmento nessa aldeia. 

O solar dos Morais Sarmento em Santo Estevão



Terão mudado de residência para Outeiro Seco ainda antes de 1847, ano em que nasce já nessa aldeia a Henriqueta. Não sei exactamente em que casa viveriam naquela terra, já que os registos paroquiais referem-nos simplesmente como residentes em Outeiro Seco. Não me parece que viveriam no solar dito dos Montalvões, pois esse tinha calhado ao seu outro tio, José António Ferreira Montalvão, que casou com uma Campilho. Aliás essa casa permanecerá formalmente na posse dos Campilho Montalvão até 1902, ano em se iniciou o processo de compra pelo meu lado familiar.


Em 1860 o Solar dito dos Montalvões estava na posse do ramo Campilho Montalvão



Creio que viveriam quase em frente à casa acima referida, num tipo de solar muito rústico, mas com tectos de masseira e eu ainda conheci em pé.

O meu quarto avô, o João Manuel Ferreira Montalvão teve ainda um filho natural, nascido na década da 30 do século XIX, de uma tal Brígida Silva, o Francisco Luís. Segundo Montalvão Machado este filho espúrio foi criado e educado em casa do meu quarto avô, mesmo após o casamento, com D. Maria Emília Morais Sarmento. O meu antepassado financiou certamente a sua educação num seminário e este fez-se padre e assinou sempre os seus assentos paroquiais, como Francisco Luís Ferreira Montalvão, até morrer em 12 de Julho de 1908, em Fornelos, Fafe, onde era abade. Como já aqui referi muitas vezes, no século XIX a bastardia fazia parte da organização familiar e a as crianças nascidas fora do casamento eram educadas com o acompanhamento dos pais e usavam até os seus apelidos sem serem perfilhados.

Apesar de bastardo, o Padre Francisco Luís assinava os seus registos com os dois apelidos da família paterna, Ferreira Montalvão. Livro de assentos de óbitos, 1907 da paróquia Fornelos, Fafe,


Deste meu tetravô, sei também o que Montalvão Machado refere sobre ele na genealogia da família teve pelo menos um grande predicado, naqueles tempos de instrução rudimentar: fez educar todos os seus filhos, fazendo deles um sacerdote, um advogado e um militar muito distinto. Mesmo as filhas tiveram alguma educação e sabiam ler e escrever. Tenho umas quantas cartas dirigidas à Henriqueta e um número significativo de cartas escritas pela Maria do Espírito Santo. Esta minha trisavó tinha uma bonita caligrafia, mas redigia mal e não fazia uma única vírgula. Para a época, em que a taxa de analfabetismo feminino andaria pelos 90 por esse cento ou mais já era muito bom.

A assinatura do que quarto avô, João Manuel Ferreira Montalvão (2-5-1806/ 23-02-1861)


Mas em 8 Novembro de 1860, com 54 anos, o João Manuel Ferreira Montalvão estava de cama muito doente e sabendo que a morte é certa e incerta a hora resolveu fazer o seu testamento, arrumando os seus assuntos terrenos antes de partir. Desejava que o funeral e bênção de alma fossem feitos segundo a vontade de sua mulher Dona Maria Emília de Morais Sarmento e nomeia-a sua testamenteira. Institui por seus únicos e universais herdeiros a todos os seus filhos, Miguel, António, Henriqueta e Maria, mas a sua preocupação é fazer um importante legado às duas filhas ainda meninas, a Henriqueta, que tinha 13 anos e a Maria do Espírito Santo com 4 anos apenas, composto por terras lavráveis, vinhas, olivais, hortas, pomares e soutos. Este legado seria satisfeito pelas forças de um terço sem diminuir a da minha mulher da parte que lhe corresponde nas propriedades legadas. Presumo que os restantes dois terços seriam para os irmãos, além que estaria só a legar a sua própria parte da metade dos bens do casal.

Este testamento foi feito numa época anterior ao primeiro código civil português em 1867 e antes da extinção dos morgadios em 1863 e as leis do direito sucessório eram diferentes das da actualidade. Temos uma ideia feita sobre esses tempos, em que se privilegiaria um único filho varão, evitando o parcelamento da propriedade. Mas o meu quarto avô não era morgado e nesta época as mulheres eram também contempladas ou até favorecidas nos testamentos, conforme Margarida Durães, explica na obra Estratégias de sobrevivência económica nas famílias camponesas minhotas: os padrões hereditários (sécs. XVIII – XIX). Mas no Minho, a densidade populacional e era muito maior e o número de terras disponível menor e filhas minhotas eram sobretudo favorecidas com joias em ouro ou dinheiro.

Neste testamento não se mencionaram pratas, joias, panos ricos ou móveis e é bem certo, que a família os tinha. À beira da morte, o meu quarto avô não perdeu tempo com isso e quis foi prover as filhas com a grande riqueza destes fidalgos rurais, terras. Estas garantiriam o sustento das filhas caso não casassem, mas também as tornaria noivas mais desejadas por outros jovens fidalgos do mesmo meio. No fundo este legado era um dote.

A minha trisavô, Maria do Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão foi uma das beneficiadas neste testamento.
 

A terra é a principal era a fonte de riqueza e a principal preocupação da vida destes meus antepassados. Já mais tarde, durante o último quartel do século XIX, a maioria das cartas dirigidas por Liberal Sampaio à minha trisavó, Maria do Espírito Santo, uma das beneficiadas deste testamento versam a administração das terras, tais com a venda do cereal, a poda das vinhas, a construção de um poço, uma égua que está prenha ou rendas a serem recolhidas. Mais ainda, preocupavam-se em acrescentar o seu património com mais terra. Entre 1911 e 1912, no tempo das incursões de Paiva Couceiro, durante a caça aos padres, quando o meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio estava fugido em Espanha, o filho escrevia-lhe dando conta das diligências para adquirir um lameiro, uma cortinha ou um pinhal de acordo com as recomendações do pai.

Nos anos 30 do século XX, o meu pai recordava-se ouvir o meu bisavô, que era o homem que pagava mais contribuição predial de todo o distrito de Vila Real. Hoje todas essas terras, que faziam a grande riqueza da família foram partidas e repartidas por muitos herdeiros, nenhum dos quais se dedica à agricultura e pouco ou valem.

Mas este testamento do meu quarto avô datado de uns 3 meses antes de morrer é um testemunho muito eloquente desses tempos em que a terra era uma fonte de riqueza e por isso, deixo aqui no final a sua transcrição.


Eu João Ferreira Montalvão casado residente e natural do lugar Outeiro Seco do julgado e comarca de Chaves, achando-me doente de cama, mas em meu perfeito juízo claro entendimento e plena liberdade , receando a morte que é certa e incerta a hora resolvi fazer como faço meu testamento e disposição de última vontade da sua maneira que se segue. Tanto que falecer quero que meu funeral e bênção de alma seja feito segundo a vontade de minha mulher Dona Maria Emília de Morais Sarmento, pois que dele tudo confio e por isso que a nomeio para minha testamenteira. Instituo por meus únicos e universais herdeiros a todos os meus filhos que são Miguel, António, Henriqueta, Maria. Deixo à minha filha Dona Henriqueta a propriedade do sítio do Sabugueiro tapada composta de terra lavradia, castanheiros, e oliveiras, bem assim de vinha de poente com sua terra lavradia contiguo à dita propriedade do Sabugueiro. Deixo a minha filha Maria a propriedade também chamada do Sabugueiro tapada e consta de terra lavradia e oliveiras, que parte com José Joaquim Durão e com o caminho de Vilela Seca e mais uma terra lavradia pela parte de fora da dita cortinha do Sabugueiro, com uma oliveira que parte com o dito José Joaquim Durão e finalmente lhe deixo mais a horta chamada das olgas, tapada com suas oliveiras e mais árvores de fruto. Declaro que este meu legado que deixo às ditas minhas duas filhas lhe será satisfeito pelas forças de um terço sem diminuir a da minha mulher da parte que lhe corresponde nas propriedades legadas (visto o casal se achar em comum) no resto dos bens da minha meação (1). Assim dou por findo o meu testamento e disposição de última vontade, a qual quero se cumpra e guarde como nela se contem e a mandei escrever a José Benedito Gonçalves da vila de Chaves que depois ser escrita ma leu conforme a havia ditado e por isso a assino neste lugar de Outeiro Seco aos oito dias de Novembro de 1860

(1)-Quando se fala em partilha de bens, a meação corresponde à metade do património comum de um casal, a que cada cônjuge tem direito



Bibliografia e ligações consultadas:


Estratégias de sobrevivência económica nas famílias camponesas minhotas: os padrões hereditários (sécs. XVIII – XIX)” / Margarida Durães
In
Boletim de História Demográfica". XII:35 (Jan.2005) 1-24
https://members.tripod.com/historia_demografica/bhds/bhd35/margarida.pdf

Os Montalvões / J. T. Montalvão Machado. - Famalicão: Tip. Minerva, 1948

Famílias transmontanas : descendência de Francisco de Moraes, Palmeirim : ligações familiares e outras famílias de Trás-os-Montes / Francisco Xavier de Moraes Sarmento- . Ponte de Lima : Carvalhos de Basto, 2001.

História moderna e contemporânea da Vila de Chaves através das actas e jornais da época / Júlio Montalvão Machado. – Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae, 2012

Um agradecimento ao Joaquim Caetano pela ajuda na transcrição de uma ou outra palavra no testamento


domingo, 4 de maio de 2025

As peças de um processo: Francisco Manuel de Morais (1891-1916)

 

Já por várias vezes escrevi sobre Francisco Manuel de Morais, o meu tio-avô paterno que morreu prematuramente num acidente de caça em Vinhais, nas vésperas de ser mobilizado para a Primeira grande Guerra Mundial. Quem acompanha este blog, pensará que me estou a repetir, mas encontrei mais documentos interessantes sobre a fugaz vida deste tio-avô, que permanecerá sempre jovem na memória da família.

Consultei o seu registo de baptismo, de 13 de Abril de 1891, da paróquia de Nossa Senhora da Assunção da Vila de Vinhais e descobri que o menino já tinha sido baptizado em casa por estar em perigo de vida. Parece que o destino desde cedo conspirou contra ele. Nasceu pelas onze horas da manhã do dia 20 do mês de Marco desse ano, na rua de Cima, numa casa, que ainda conheci. O baptizado oficial foi realizado uns 20 dias depois por Abílio Augusto da Silva Buíça, abade de Vinhais e que foi o pai do célebre Manuel de Buíça, o regicida, um dos homens que matou o Rei D. Carlos e o Príncipe Luís Filipe, no ano de 1908. É curioso, pois já é segunda vez, que encontro este cruzamento de destinos dos Buíças com os meus antepassados. No espólio da família paterna, encontrei uma carta datada de Novembro de 1888, escrita pelo Abade de Buiça a convidar o meu trisavô, o José Rodrigues Liberal Sampaio a pregar um sermão na festa da Imaculada Conceição em Vinhais. Bem sei que é uma curiosidade, mas não deixa de ser um apontamento interessante. Todos nós aspiramos a ter antepassados, que tenham estado próximos de figuras que fizeram história.

O assento de registo de baptismo de Francisco Manuel, de 13 de Abril de 1891. Foi baptizado pelo Abade de Buíça, o pai do regicida, Manuel Buíça


No mesmo assento de baptismo, o Abade de Buíça registou o nome dos pais, meus bisavó, Clemente da Ressurreição Morais e Maria da Graça Pires. O padrinho, foi o seu tio, o padre Manuel Agostinho de Morais, pároco na Freguesia de Santalha e do qual eu creio que tenho um retrato em jovem, um homem bonito e bem-parecido. Aliás, neste meu lado familiar, das terras frias de Vinhais, eram no geral pessoas bonitas.

O padre Manuel Agostinho de Morais foi seu padrinho


Como já aqui contei, o meu bisavô, Clemente da Ressurreição Morais ambicionou estudar medicina na juventude, mas a mãe, a Francisca da Silva, ter-lhe-á dito, ou és padre ou não és nada. E com efeito, o jovem Clemente abandonou o seminário e tornou-se um simples lavrador. Numa carta de 8-3-1914 escrita à irmã, o Francisco de Morais refere o génio sombrio de meu pai e ao qual a sua jovem amada a Estela iria, desanuviar o espírito. Não sei o exactamente em que consistiria, esse génio sombrio mas talvez o Clemente da Ressurreição fosse um homem frustrado, por não ter podido realizar os desejos da sua juventude.

Francisco Manuel de Morais frequentou o colégio de São Dâmaso em Guimarães


Mas este filho, mais velho, o Francisco de Morais iria concretizar as suas ambições e auferir de uma boa educação, longe dos seminários. Assim, no ano lectivo de 1902 /1903, com cerca de 11 anos o Francisco Manuel frequentava o Colégio de São Dâmaso em Guimarães, conforme um documento, que encontrei na caixa de madeira onde estão arquivados estes papéis da família materna. Naquela folha discrimina-se as despesas todas do rapaz, incluindo com livros, a saber: um catecismo; uma gramática latina; aritmética, gramática e leituras portuguesas; gramática francesa; geografia; botânica, zoologia; desenho; tradução francesa; significados de francês; dicionário de latim; história e ainda o Cornélio. Pagar um colégio longe de casa, viagens e livros seria caro para uma família de lavradores de uma vila transmontana, mas o desejo de instrução do seu pai, realizado no filho justificava todos os gastos. E o Francisco Manuel não terá desiludido o pai e foi aceite na Faculdade de Medicina do Porto, que a julgar pelas cartas de que disponho frequentou entre 1914 e 1916. Na caixa de madeira onde se guarda este espólio, os pais reuniram alguns recortes de imprensa, que anunciavam os resultados do filho. Em 27-6-1916, no terceiro ano, na quarta cadeira de patologia externa, o Francisco de Morais foi aprovado com distinção, com 17 valores!

Os pais reuniram alguns recortes de imprensa, que anunciavam os resultados do filho


Também do mesmo ano encontrei o bilhete-postal de um amigo, Alípio Teixeira, datado de 3 de, que lhe perguntava como vamos de Caça? e ainda outro de dia 12 desse mês, onde anuncia que chegará brevemente a Vinhais. Pelo teor dos postais, o Alípio e o Francisco Manuel eram compinchas, camaradas de farras.




Bilhete-postal de um amigo, Alípio Teixeira. Segundo rumores que corriam na vila, este padre teria provocado acidentalmente a morte de Francisco Manuel


Quando cerca de 80 anos mais tarde, o meu pai fez o levantamento mais sistemático destes acontecimentos, corria ainda na vila a história, que teria sido Padre Alípio Teixeira, que teria morto acidentalmente o meu tio-avô durante a caçada.

Também deste mês de datado deste mês de Setembro de 1916, mais exactamente do dia 6 encontrei um documento que me impressionou, a licença de caça, que o Francisco Manuel tirou na Câmara Municipal de Vinhais.



 licença de caça de Francisco Manuel tirada um mês antes de morrer num acidente de caça...


O fatal acidente de caça, que tiraria a vida deste meu tio-avô, ocorreu a 4 de Outubro de 1916 e a principal fonte para o acontecimento é uma carta de 11 de Outubro de 1916, dirigida pelo pai do Francisco Manuel, o meu bisavô Cemente da Ressurreição a Joaquim da Cunha Cardoso Júnior, um dos condiscípulos de Medicina do filho. Nesta carta, o meu bisavô agradece as condolências e explica o que passou Terá usado a espingarda para baixar um ramo de uma figueira de forma a colher os frutos melhores e a arma disparou-se sozinha, pondo fim à sua vida. Ao contrário dos rumores, que circularam durante muitas décadas pela vila não foi o padre Alípio Teixeira que o matou acidentalmente.

Todos estes documentos parecem fazer parte de um processo judicial, uma investigação sobre uma morte, conduzida por um detective de algum romance policial, mas sem uma conclusão nem tão pouco um final feliz.



Carta de 11 de Outubro de 1916, dirigida pelo meu bisavô Cemente da Ressurreição a Joaquim da Cunha Cardoso Júnior, um dos condiscípulos de Medicina do filho onde explica o acidente que tirou a vida a Francisco Manuel de Morais


quarta-feira, 9 de abril de 2025

Coador de chá em prata da Gabert & Conreau, Paris



Depois de alguns meses de namoro, a semana passada resolvi oferecer a mim próprio, este bonito coador de chá em prata. Não foi exactamente uma pechincha, mas mereci este mimo.

Por intuição, achei logo que fosse uma coisa do início do século XX ou dos finais do XIX, num estilo revivalista ao gosto de Luís XVI (1774-1791).

Procurei então saber mais, mas quando se tenta identificar talheres de prata ou afins, esbarra-se sempre com os mesmos problemas. As marcas de garantia e dos ourives são minúsculas, invisíveis a olho nu. Como não tenho lupas de boa qualidade, uso um zoom do telemóvel no máximo e fotografo as ditas marcas e mesmo assim, é preciso tirar uma dúzia de fotografias até conseguir imagens percetíveis.

Primeiro consegui reconhecer o punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva, usada entre 1838 e 1973. Portanto, o coador é francês e é de prata boa qualidade, de primeiro título, pois a cabeça de Minerva está inscrita num octógono.

Punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva, usada entre 1838 e 1973.


Quando à marca de ourives, é uma coisinha mínima, que nem um milímetro deve ter. É em losango, formato normalmente reservado à prata, já que as marcas de metal prateado são em quadrado ou retângulo. Depois de muitas fotografias ampliadíssimas, pareceu-me que apresentava umas letras e uns símbolos. Vasculhei todo o site https://www.silvercollection.it, à procura de uma marca igual, mas nada. Os ourives franceses do século XIX e XX contam-se às centenas e a minha imagem era de má qualidade e nem percebia se devia tentar ler o losango na diagonal, se na vertical ou se estava de cabeça para o ar.

A marca do ourives

Resolvi alterar a estratégia de pesquisa e carreguei então a imagem no Google, associando palavras-chaves em inglês Tea Strainer silver e encontrei um coador de chá de prata com semelhanças com este, à venda no 43 Chesapeake Court Antiques. A marca estava identificada com sendo a do ourives parisiense Gabert & Conreau, usada entre 1901-1906 e era parecida com a da minha peça, mas fiquei sem a certeza. 
Coador à venda em https://43chesapeakecourt.com/en-eu/products/antique-french-sterling-silver-tea-strainer-over-the-cup-style-louis-xv-style


Fiz mais umas buscas no Google pelo nome deste ourives e noutra página o artnet, que reproduzia uma obra deste Gabert & Conreau com a respectiva marca, percebi que estes, tal como eu tinham fotografado a marca ao contrário, inverti então duas imagens e tive a certeza que se tratava das iniciais G&C e um gabião.


Uma imagem melhor da minha marca: Um G&C e um gabião


A marca do site https://www.artnet.com/artists/gabert-conreau-co/lot-of-4-match-safes-w-embossed-figures-Hs4gMKCHz3K7l9h9EM5Swg2


Enfim, uma verdadeira trapalhice, que resulta das dimensões miniaturais destes sinais. Mas o que interessa é que este coador de chá foi realizado pela Gabert & Conreau, uma marca registada, em 1901, e usada até 1906, cuja produção se caracterizou pela delicadeza do desenho e uma grande fineza na execução. Produziram obras em estilo Art Nouveau, com arrojadas linhas inovadoras, mas, claro o grosso da produção eram peças inspiradas nos estilos dos séculos passados, para satisfazer o gosto da boa burguesia da época.


As pratas são objectos que nos fascinam pelo seu luxo e beleza, mas cujo estudo por mais simples que seja, implica descodificar sinalefas minúsculas e misteriosas, mas essa tarefa acaba por ser um desafio muito interessante, para quem como eu está habituado às minudências da biblioteconomia.





Algumas ligações consultadas:




sexta-feira, 4 de abril de 2025

1916: mãe, eu não quero ir para a guerra: uma carta do sempre jovem Francisco Manuel de Morais




Já tenho aqui escrito sobre o meu tio-avô materno, o Francisco Manuel de Morais, que morreu jovem e que um dia, quando eu estava a sair da adolescência, mostraram-me o seu retrato, dizendo-me que era parecido com ele, de modo que fiquei com uma daquelas ideias estranhas e irracionais, que as velhas fotografias familiares por vezes despertam, de que este rapaz tinha sido eu, cerca de 50 anos antes do meu ser nascer.

Numa velha caixa de madeira, encontrei muitas cartas escritas por ele, numa delas, datada de 1915, confidenciado à irmã a sua paixão pela jovem Estela e o seu desejo de casar com ela. Resolvi então separar todas as cartas escritas por ele, no intuito de saber mais sobre este amor, pois na tradição familiar, dizia-te que teria havido um filho de uma ligação que ele manteve com uma Senhora na cidade do Porto.

Dias felizes em 1915: o Francisco Manuel com os compinchas


Fui lendo assim todas as suas cartas, a maioria dirigidas à mãe, onde vai dado conta dos seus resultados escolares no curso de medicina e onde invariavelmente pede mais dinheiro, para pagar propinas, para a compra de livros, para o aluguer do quarto, para pagar à lavadeira e para a alimentação. Enfim, o Francisco Manuel vivia numa época onde fazer um curso superior era um luxo, extremamente oneroso para as famílias. Por vezes nessas cartas. Surge aqui e acolá o espectro da guerra, que desde 1914 assolava a Europa.

Mas, uma das cartas, que acredito com toda a segurança datar de 1916, certamente depois de Março desse ano, quando Portugal entrou na Primeira Grande Guerra, no período em que se preparava o contingente português, foi um verdadeiro murro no estômago, como se diz hoje em dia.





O meu jovem tio foi recrutado e encontrava-se numa verdadeira aflição. Escreveu à mãe contando que fez um requerimento para passar para o 18º regimento, na cidade do Porto, que foi aceite e que tentou depois tentou passar à companhia de saúde, mas para tal era necessário requerer ao ministério da Guerra o que é o mesmo que esperar os sapatos do defunto. Terminaria a guerra antes que o requerimento chegasse às mãos do ministro”. Pede então à mãe, para que os pais movam a sua rede de influências, contactando com as pessoas importantes e das boas famílias da vila de Vinhais, o Dr. Almendra e o Dr. Campilho, para conseguir a sua transferência para o 10º regimento, que estava sediado em Bragança, cidade vizinha daquela vila, onde seria mais fácil, mexer os cordelinhos, para passar ao serviço de saúde do exército, ou mesmo ficar isento. O seu objectivo era escapar à guerra, ou se tiver de ir, pelo que vá seguro, num serviço médico. Se não o conseguisse fugiria para a Espanha. A família tinha uma casa numa aldeia raiana, a Cisterna, que ainda conheci e que basta passar um ribeiro, para se alcançar as aldeias galegas da Veiga, Seixo e Barxa. Na Galiza havia também escolas onde ele poderia terminar o seu curso. Como ele próprio escreveu para o garrote, para o açougue, servir de estribo às ambições desmedidas de quien todo lo manda”, isso é que eu não vou dê lá para onde der.




Este sentimento de revolta contra a guerra do meu tio Francisco Manuel não foi um caso único no País. Segundo o Tenente-coronel Pedro Marquês de Sousa, num artigo intitulado O ano da organização do CEP para França: a mobilização militar (1), a convocação de licenciados não foi bem aceite e deu origem a diversos casos de indisciplina e tensões, não apenas pelo inconveniente de ser mobilizado, mas também pelas situações de injustiça em resultado das dispensas de alguns rapazes de famílias influentes, mais sentida nas comunidades mais pequenas e que houve várias revoltas anti-guerrista nas fileiras, em Mafra, Estremoz, Lisboa, Covilhã e outra ainda, a mais grave, em Tomar.

A leitura dos manuais escolares de história, ilustrados com mapas coloridos dos avanços e recuos das frentes de batalha, dá-nos uma ideia romântica das guerras, mas esta carta desfaz tudo isso, ao lermos o testemunho vivo de um jovem que não quer ir para açougue, servir de estribo às ambições desmedidas de quien todo lo manda. E passados quase 120 anos destes acontecimentos, como o compreendo, pois por mais que leia sobre o assunto, continuo a ser de opinião que a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial em 1914-1918 foi um erro trágico e inútil.

Esta carta impressionou-me muito, até porque este rapaz veio a morrer num estúpido acidente, no Outono deste ano de 1916, mais precisamente a 4 de Outubro de 1916, numa caçada organizada pelos amigos para se despedirem dele antes de partir para guerra. Terá usado a espingarda para baixar um ramo de uma figueira de forma a colher os frutos melhores e a arma disparou-se sozinha, pondo fim à sua vida. Confesso-vos que depois da leitura da carta, cheguei a perguntar-me se terá sido mesmo um acidente, mas claro, nunca poderei vir a saber o que se passou realmente naquele dia

Transcrevo aqui a carta na íntegra pois é um documento muito interessante para quem se interessa pela história da participação de Portugal na Grande Guerra de 1914-18.


Porto 6

Minha querida mãe

Veio-me hoje a sua carta com a certidão. Por ela vejo que passa mal por minha causa, ou por outra, por causa dos acontecimentos graves que se dão e a que Portugal é arrastado.

Como sabe pedi passagem para o 18 e a esse pedido, dirigido ao comandante do regimento, foi logo deferido. Aqui quis passar à companhia de saúde, mas para tal é-me necessário requerer ao ministério da Guerra o que é o mesmo que esperar os sapatos do defunto. Terminaria a guerra antes que o requerimento chegasse às mãos do ministro. Em face disto, eis o que vou fazer e para o que peço que cooperem aí: vou de novo pedir passagem para o 10 e lá obter que o Dr. Sarmento atendendo à minha qualidade de estudante de medicina, me chame ao serviço de saúde. Requeiro hoje mesmo a passagem para o 10 e espero que arranjem ai o pedido de alguém para o Dr. Sarmento fazer um acto que aliás é de justiça. Depois, no caso de haver mobilização geral têm que estar alerta para me avisar por telegrama e eu apresentar-me logo no quartel. Tenham a minha farda lavada e pronta. Tanto que, alcançando o meu fim, não chegarei ir para a guerra, e, se for, irei seguro. Digo-lhe mais ainda para lhe desvanecer essas ideias fúnebres: se vir que não consigo senão como soldado na linha de fogo, eu ainda sei o caminho daqui para a Veiga, para o Seixo ou para a Barja…

Para o garrote, para o açougue, servir de estribo às ambições desmedidas de “quien todo lo manda”, isso é que eu não vou dê lá para onde der. E tenho aqui colegas, muito até, que pensam fazer como eu. Aí na Galiza também há escolas médicas e lá também se completam cursos. E creio que tenho tudo dito a tal respeito. È a minha convicção inabalável. Diga-me agora o seu modo de pensar. O Sr. Dr. Campilho escreveria a alguém acerca do meu exame? Devo entrar brevemente pois que já principiaram hoje. Em suma, até o dia 15 devo estar despachado e depois, se as aulas abrirem só em Novembro, como consta, talvez vá até aí restaurar-me um pouco pois que me sinto extremamente fraco e cansado. Recomenda-me a todos e a mãe aceite muitas saudades do seu filho muito amigo

Francisco Morais


PS: recebi a caixa com as maças e as pavias. Muito obrigado. Retribuo o abraço da Augusta


(1) Revista militar, nº temático - Maio de 2016

quarta-feira, 19 de março de 2025

Uma paixão no Porto: o sempre jovem Francisco Manuel Morais

No centro encontra-se o Francisco Manuel de Morais


Recentemente, por causa da identificação de um retrato antigo da família materna, os Morais, das terras frias de Vinhais, reabri as caixas com documentos, que trouxe de casa do meu pai, após a sua morte. Alguma delas já as tinha visto com atenção, mas uma caixa de tosca madeira, provavelmente daquelas coisas onde antigamente se vendia o sabão, tinha-me escapado. Nelas estão muitas cartas de família, pagelas, facturas e outras caixinhas mais pequenas de papelão, onde alguém um dia, talvez há 50 ou 60 anos, guardou uns botões, uma fivela, um resto de linha, peças de qualquer coisa que se escangalhou, na esperança de virem a ser úteis novamente.




Dessa caixa de madeira, constam muitas cartas do meu tio-avô, Francisco Manuel Morais, que morreu num acidente de caça a 4 de Outubro de 1916, apenas com 25 anos. Era um jovem bonito e prometedor, que estudava medicina no Porto.




Aos 16 anos, quando eu estava a desabrochar e a deixar de ser um patinho feio, a minha tia Lalai, mostrou-me um retrato do Francisco Manuel, dizendo-me que eu estava a ficar parecido com ele e eu fiquei envaidecido, pois este tio-avô com o seu penteado de risco ao meio parecia um galã do cinema mudo, daqueles que a Ilustração Portuguesa publicava tantas fotografias, de modo que desenvolvi desde dessa altura uma empatia por ele. 

O Francisco Manuel de Morais


Entre as cartas, que escreveu à sua mãe e irmã, encontrei um envelope com uma madeixa de cabelo e um lenço de homem, que presumo, que lhe tenham pertencido e que alguém guardou depois da sua morte.




Mas, antes do fático dia de 4 de Outubro de 1916, dois anos antes, o Jovem Francisco Manuel encontrava-se a estudar no Porto e estava perdidamente apaixonado pela Estela, conforme conta numa carta à sua irmã, a minha avó Adelaide, numa carta datada de 8 de Marco 1914.

É uma carta muito longa (a minha mãe tinha também o hábito de escrever muito nas cartas), em que o Francisco Manuel conta que vai passar uma hora com a Estela todos os serões e que são namorados, mais do que isso, noivos. A felicidade é muita, mas o ambiente em casa da Estela é tenso. A jovem vive com a mãe, a D. Maria e há ainda a Palmira e Augusta, talvez suas irmãs. Presença também da casa é o Silvério, que namorará uma das jovens. Mas, mas há um padrasto que parece ser um homem intratável. O Francisco Manuel conta nesta carta uma cena, em que o homem berrava como um doido e tentou atirar com um grande copo à D. Maria, mas a Estela interpôs-se e o Padrasto acabou por atira-lo a ela, magoando-a no ombro. O homem faz ameaças brutais, há um revolver e as cenas repetem-se todos os dias com mais ou menos variantes.


Depois desta cena, a D. Maria pensa fugir com a filha para Vinhais, terra do Francisco Manuel e só não o faz, para não o atormentar este, na época de exames.

O Francisco Manuel vê a sua Estela definhar. Vejo-a sofrer, vejo-a doente, magríssima, abatida e a isto continuar durante anos, eu vou desposar um cadáver, vou abrir a vala onde pode sumir-se a minha felicidade.

A solução para o terrível problema e para a qual pede a colaboração da irmã, é depois de terminar os exames, levar a Estela para Vinhais, casarem discretamente e depois disso a jovem ficará a viver com os pais e ele regressará ao Porto, para terminar o curso de medicina. Nessa altura a Estela ficará a chorar com minha mãe a minha ausência, acariciando-a, dulcificando-lhe o mais possível os dias da velhice e a desanuviar o espírito do meu pai com a sua abnegação, o seu amor de filha. A Estela será também uma irmã extremosíssima para a Adelaide, aquela que veio a ser a minha avó. Enfim, todos viveriam como Deus e os Anjos.


Francisco Manuel, os seus pais e a irmã, minha avó Adelaide



Mesmo, não conhecendo os pormenores de como esta história se desenvolveu é óbvio que os pais do Francisco Manuel foram contra a ideia. Ter um filho a estudar no Porto era muito caro e com efeito li umas quantas cartas dele na diagonal, em que está sempre a pedir dinheiro à mãe. Certamente que lhe terão dito que a prioridade dele seria terminar o curso e terão também seguramente feito as contas, do que lhes custaria sustentar na sua casa uma nora e a talvez até a mãe na nora, enquanto o filho estudava, sem trabalhar e ganhar dinheiro. Terão também pensado, que enquanto o filho estivesse no Porto, poderia conhecer outra moça e depois que faria eles com aquela nora. Além do mais, o meu bisavô Clemente da Ressurreição teve a ambição de estudar medicina na juventude, mas a mãe, que queria que ele fosse para padre, não autorizou, de modo que filho estaria a realizar aquilo que ele sempre desejou, ser médico.

O que é certo, é que o Francisco Manuel Morais nunca casou com a sua amada Estela e morreu num acidente de caça em 1916, sem se ter conseguido formar. Segundo a tradição familiar esta caçada tinha sido organizada pelos amigos para se despedirem dele, uma vez que tinha sido recrutado para ir combater na Grande Guerra. Se não tivesse sido morto neste estúpido acidente teria talvez perecido dois anos depois em La Lys. Parece que havia uma fatalidade a pesar nos destinos deste rapaz tão bonito.



Por conhecer o desfecho trágico da vida deste tio, confesso que a leitura desta carta me impressionou. Pareceu-me que estava a ler as linhas de um daqueles livros ultrarromânticos do século XIX, em que já sabemos que tudo aquilo vai acabar mal. Fiquei com a ideia que o Francisco Manuel seria um rapaz ingénuo, criado numa vila interior, com a imaginação alimentada pela leitura de demasiados romances, sem um sentido realista da existência. Talvez por essa razão, a sua mãe, a Graça Pires de Morais, depois da morte deste jovem tão bonito e promissor tenha mandado queimar todos os livros do filho, todos aqueles romances, que moldaram este pendor para paixões irrealistas, mas isto são suposições minhas.

Em todo o caso, na tradição familiar era conhecida a existência de uma jovem no Porto, pela qual o Francisco Manuel se teria perdido de amores e esta carta comprova a sua existência. Diz-se também que houve um filho desta ligação, mas para comprovar isso, terei que ler todas as cartas dele e o tempo foge-me a cada instante.




Transcrevo na íntegra a carta, a pensar naqueles que gostam de ler cartas


Porto, 8-3-1914

Querida mana


Hoje vai para ti, mesmo porque quero abordar um assunto muito importante que comuniquei só à mãe e, se quiseres, à tua amiga D. Inês. É bom que esta tenha conhecimento do conteúdo da minha carta porque está em condições de poder apreciar os factos.


Vamos ao caso. Como sabem (as três) eu vou todas as noites passar uma hora com a Estela e, claro, nessa hora, dois namorados, mais do que isso, dois noivos, temos sempre que dizer um ao outro. Terceira pessoa que venha meter-se-lhe de permeio com conversas aborrecidas sem interesse, é um obstáculo que com muito custo se tolera. Esse obstáculo, de mais a mais propositado, é o padrasto da Estela. Porque às vezes não estou para o aturar e me conservo mudo, vendo passar os minutos sem poder trocar com ela duas palavras, ele tem em a aborrecer, em lhe querer mal. A causa verdadeira, porém, de tal atitude é muito outra: é que ele vê que, quer eu quer o Silvério podemos dar um pouco de de felicidade ao futuro das filhas da D. Maria, que não são dele e, alem disso, ver os primores que saem das mãos delas e nada que as dele protejam e aprendem. E não julguem que esta animadversão se limita a palavras ou maus modos.


Não; há dias chegou a vias de facto. Mas eu conto: depois de eu sair de lá, ficaram na sala a Palmira, Estela, D. Maria, Augusta, Silvério e ele. Principiou a gracejar com o Silvério dizendo-lhe que tinha que ajuntar dinheiro para as prendas que havia de oferece-nos. De repente, porém, por qualquer palavra que a Augusta disse, contradizendo-o, ele armou em terrível e perguntou se queriam bater-lhe dizendo que já uma vez o José lhe insinuara não lhe dever obediência. A D. Maria, em face do desproposito e da mentira, porque ele berrava como um doido, desmentiu-o e o homem pegou num grande copo (a primeira coisa que encontrou à mão) e preparou-se para atirar. A Estela, vendo aquilo, correu a cobrir com o copo alcança-la da mão, e o estupido e desalmado, reavivando o ódio que lhe tem, atirou e deu-lhe num ombro. Se o Silvério não o domina atirava mais ferindo-a talvez gravemente visto que o alvo dele era a cabeça.

Imaginem o resto atendendo a ameaças brutais e ao facto de ir procurar um revolver e digam-me com franqueza se isto não é um inferno, que se repete todos os dias com mais ou menos variantes. A D. Maria queria, logo no dia seguinte, fugir com ela para aí, se não o fez, foi por minha causa, para não me atormentar nesta ocasião de exames. A Sra. D. Inês, que conhece bem esta família, pode dizer-te e à mãe se isto não é ódio velho, agora reacendido pela inveja.


Pergunto: como fazer terminar este estado de coisas? Como arrancar a Estela, única mulher de quem eu espero felicidade, única a quem confio a realização das minhas esperanças de ventura porque me compreende e porque lhe conheço o génio, a este martírio que me dá cabo dela?

Só vejo uma solução: leva-la daqui, faze-la minha mulher, dar à minha mãe uma filha que a adora e a ti uma irmã extremosíssima. Ainda hoje, falando com ela cerca do futuro, eu lhe perguntei: se consentirem que nos casemos, sujeitas-te a ficar com minha mãe, velha, doente, a aturar o génio sombrio de meu pai e a ver-me partir para os meus estudos? Chorou a pobrezinha, e respondeu-me com ardor que seria para ela um prazer o ir chorar com minha mãe a minha ausência, acariciando-a, dulcificando-lhe o mais possível os dias da velhice, o ir desanuviar o espírito do meu pai com a sua abnegação, o seu amor de filha; e que vida de aí, da nossa casa, que eu lhe mostrei nitidamente a adoptaria de bom grado pronto em mim a única esperança de melhores dias.

Contigo conta ela como amiga e como irmã como eu conto também. Se o não fizesse, eu, não serias tu a primeira a ter estas palavras

Admitamos agora que estão de acordo comigo. Nesse caso eu mostro o meu projecto que é o seguinte: logo após os meus exames de Julho iríamos para aí e, sem barulho, sem festas, muito humildemente nosso padrinho uníamo-nos para sempre. Passávamos as férias juntos e, em Outubro, ela ficava na sua nova vida e eu viria continuar os meus trabalhos.

Que felicidade se eu pudesse contar contigo! Com que redobrado ardor eu pegaria nos livros para conquistar o consentimento e as boas graças do pai que bem sei ser o principal obstáculo! Por estes dias espero dar-lhe um pouco de alegria com o bom resultado do meu exame que deve ser entre os dias 16 e 20. E digam-me, se no fim do ano eu lhe aparecer com tudo feito não quebrarei o gelo que o envolve, não conseguirei que ele aceite como filha esta que é o meu estímulo? Digam-me alguma coisa, deem-me a sua opinião; mas de manifestarem em desacordo, mostrem-me, pela amizade que lhes tenho, razões fortes a para procederem assim. Não me venham dizer que é melhor esperar o fim da minha formatura porque isso já eu sei Eu bem compreendo que era melhor. Mas Santo Deus, vejo-a sofrer, vejo-a doente, magríssima, abatida e a isto continuar durante anos, eu vou despois um cadáver, vou abrir a vala onde pode sumir-se a minha felicidade. Por tudo isto e confiando muito que me querem, espero que a resposta a esta carta me traga esperanças e não a mais amarga das desilusões. Recomenda-me a todos. Beijos ao Zeferino e à Miquinhas e tu aceita um saudoso abraço do teu irmão muito amigo.

F. Morais


PS. Diz à mãe que recebi o vale e que naturalmente não torno a escrever sem fazer exame porque tenho muitíssimo que estudar.

sábado, 8 de março de 2025

De regresso a Vinhais: o retrato de um casal desconhecido em 1900



Regresso novamente a Vinhais, a terra da minha mãe, essa vila perdida no Nordeste transmontano, mas a um tempo antigo, situado algures entre os fins do século XIX e o início do XX. Desse período, restou um registo escrito, que o meu pai levantou há 30 anos ou 40 anos atrás a partir das memórias dos mais velhos, bem como de documentos da família, entre as quais um caderninho onde o meu bisavô Clemente da Ressurreição Morais (1858-1944) anotou quem foram os seus pais, os irmãos destes, os seus irmãos e o seus amores contrariados com Graça Pires de Morais. Este trabalho de compilação do meu pai ainda foi notável, atendendo a que tratava da família da mulher. Do seu lado, tinha os pergaminhos dos Montalvões, mas o meu pai antes de tudo gostava de história e tinha a mentalidade de arquivista, sabendo que nas famílias tem que haver alguém, que registe com rigor, sistematize as memórias e passe-as à geração seguinte.

O  caderninho onde o meu bisavô Clemente da Ressurreição Morais (1858-1944), anotou de forma sintética a sua biografia


Desses documentos da família Morais Ferreira há também fotografias antigas. Umas fui identificando por conterem dedicatórias, mas outras permanecem ainda no anonimato. Presumo que sejam da família, pois apresentam o tipo claro dos Morais, olhos azuis, verdes, castanhos claros, tez branca e os cabelos também loiros, castanhos claros ou castanhos arruivados. Obviamente, em retratos a sépia ou a preto e branco é difícil determinar com precisão as cores.

Como vou publicando aqui no blog, as histórias e fotografias da família deste lado das terras frias de Vinhais, sou por vezes contactado por primos, ou por descendentes de amigos de então, que aparecem retratados nessas imagens e muitos deles acrescentam elementos às histórias ou identificam mais pessoas. É uma reacção muito gratificante, que me aproxima dessas terras frias, as quais sinto que pertenço.

Umas pessoas que me contactou foi Leonor Gomes, professora, com a suspeita de que existiria um parentesco entre as nossas famílias. Fomos trocando e-mails e informações, até que a Leonor me enviou o retrato de um casal, tirado cerca de 1900, em que o Senhor seria o seu bisavô. Reconheci de imediato a fotografia deste casal, pois há um semelhante no espólio da família, na secção dos desconhecidos, que presumo serem parentes. Apenas há uma diferença, no retrato da prima, consta apenas um casal, enquanto que no meu há um menino, muito provavelmente filho do casal. A partir daqui encontramos o fio, que nos permitiu reconstruir toda uma teia de relações familiares.

O retrato do espólio família da prima Leonor


O retrato do espólio da minha família


A diferença entre os dois retratos é que no segundo aparece o filho do casal José Clemente de Morais e Arminda Felicíssima de Carvalho, o menino Amândio Augusto 


Com efeito, o Senhor da fotografia é José Clemente de Morais (1856-1919), um dos irmãos mais velhos meu do meu bisavô, Clemente da Ressurreição Morais (1858-1944), portanto meu tio-bisavô. Ao lado de José Clemente está a sua mulher, Arminda Felicíssima de Carvalho, professora primária. O casal residia na Mofreita. O menino que posa no meio do casal é certamente o filho, Amândio Augusto de Morais, nascido em 28 de Abril de 1896 e que aqui teria 8 ou 10 anos, o que me permite datar a minha fotografia por volta de 1900. Este menino veio a ser oficial do exército, esteve em África e no tempo do meu pai fez sua compilação da história dos Morais, a família conserva-se ainda a viva sua memória. Ao que parece guiava muito mal e na sua casa, tinha uma garagem com duas portas, para evitar fazer marcha atrás. 

No espólio da minha família conserva-se este retrato que poderá ser de de Amândio Augusto 

Mas regressando ao tempo em que este retrato foi tirado, cerca de 1900, tenho ainda outra fotografia de um menino, também com este tipo clarinho, que me parece ser igualmente o Amândio, mas não sei. Também poderia ser o meu tio avô, o Francisco Manuel, que nasceu em 1891 e tinha uma idade muito próxima do seu primo direito, nado em 1896. Enfim, é uma hipótese, a confirmar.


O meu bisavô, Clemente da Ressurreição Morais (1858-1944) e sua família. Era irmão do José Clemente. O filho mais velho era mais ou menos da mesma idade do primo Amândio


Mas a Arminda Felicíssima de Carvalho morreu em 1913 e o meu tio-bisavó, José Clemente de Morais envolveu-se com outra Senhora, Arminda Pires (20.8.1885 – 23.2.1970), da qual teve dois filhos, Soledade e José Alexandre. Tiveram casamento marcado para o dia 13 de Junho, mas por um desses infortúnios da vida, José Clemente morreu um dia antes, a 12 de Junho de 1919, deixando a Arminda Pires só com dois filhos. Poderá ter sido vítima da pneumónica, pois pandemia ceifou sobretudo os jovens e os mais velhos. Em 1919 José Clemente tinha 63 anos.

De um dos filhos de José Clemente de Morais, a Soledade, nasceu a Túlia, e desta, a minha prima Leonor, que só agora tive o enorme prazer de conhecer, ainda que virtualmente. Curiosamente, o primeiro filho de José Clemente de Morais, o Amândio teve também uma filha chamada Túlia. Será uma simples coincidência ou demonstrará que os dois lados da família se davam?

Toda esta história é muito curiosa e interessante e prova que para quem se interessa por história familiar, vale sempre a pena partilhar o resultado das suas investigações na net, porque um dia, vai aparecer alguém que tem o mesmo velho retrato em casa e que nos fornece a chave de um enigma.

José Clemente de Morais e Arminda Felicíssima de Carvalho, meus tios-bisavós. Casaram na Mofreita a 9 de Abril de 1881