Esta mesa bufete veio da família da minha avó paterna, do solar de Outeiro Seco. Consegui identifica-la num filme que o meu pai fez do solar nos 60. Estava colocada na antiga sala de visitas e tinha por cima uma fonte em alabastro, de vários andares e decorada com uns pássaros.
Depois de umas trocas e baldrocas com a minhas irmã, este bufete ficou para mim e o meu amigo Manel entusiasmou-se com a peça mal a viu e ofereceu-se para a restaurar. Limpou-a dos excessos de cera e outras sujidades que o muito uso lhe deu, consolidou-a e pôs as ferragens a brilhar.
Este Bufete é feito em pau-santo, tirando as travessas mais curtas, que serão talvez em vinhático. O pau-santo é uma madeira proveniente do Brasil, da mesma família que os célebres jacarandás, aquelas árvores que nos finais da Primavera, princípios do Verão enfeitam as ruas de Lisboa com umas flores roxas. Aliás, nos Açores e no Brasil, nomeiam esta madeira por Jaracandá. Seja como for, o Pau-Santo foi de tal forma preferido pelos nossos marceneiros nos séculos XVII e XVIII, que se tornou a imagem de marca do mobiliário português. Por exemplo, os franceses usavam madeiras relativamente pobres, carvalho, faia e depois, para disfarçar essa relativa pobreza do material, pintavam os móveis de dourado, adornavam-nos com bronzes ou faziam preciosos embutidos com ébano e pedacinhos de madeiras exóticas. Os portugueses como tinham acesso às melhores madeiras exóticas do mundo, deixavam os móveis na sua cor natural e assim possibilitaram a que ainda hoje se possa admirar o contraste dos veios do pau-santo. No Norte de Portugal, o Pau-santo aparece também muitas vezes designado por pau-preto.
O meu avô Silvino desdobrando um antigo livro em cima do bufete |
Com as suas travessas e pernas torneados e o contraste muito característico entre o escuro do pau-santo os dourados das ferragens, este bufete faz parte daquilo que Robert Smith, o historiador de arte americano, designou por estilo nacional português. Contudo, as pernas são oblíquas à maneira das mesas espanholas, o que não é de estranhar já que Outeiro seco está a uns escassos km de Espanha e que a origem da família Montalvão é espanhola. Segundo o meu amigo Manel, que já tem muita experiência de mobiliário, esta peça é provavelmente antiga, talvez do século XVIII, ou até talvez mesmo do século XVII, embora é sempre complicado fazer estas datações, pois por vezes os marceneiros repetiam durante décadas a fio, o mesmo tipo de modelos.
pormenor da ferragem |
Contudo, esta mesa teve uma história complicada. Originalmente, terá tido entre o tampo e as pernas uma cintura de gavetas ou outro corpo qualquer, eventualmente um bargueño ou um contador. Nos dois travessões entre as pernas e o tampo estão lá os buracos para os parafusos que fixariam o tal corpo de gavetas, entretanto desaparecido. Em reforço desta teoria está também a altura do bufete (74, 5 cm), que mais baixo que o normal (entre 90 e 85 cm). O que terá acontecido a este corpo de gavetas, ninguém sabe. Um incêndio terá danificado o móvel? Alguém que achou a mesa muito alta?
Embora actualmente sirva de mesa de sala de jantar na minha casa minúscula, a função original desta peça não era essa. Este tipo de mesas destinava-se à escrita e estavam normalmente colocadas nas livrarias das grandes casas ou conventos. Aliás, o uso da mesa de sala de jantar data só dos finais do século XVIII. Até lá usavam-se simples tábuas assentes sobre uns estrados, que eram facilmente amovíveis de sala para sala, pois nas casas antigas não existia divisão nenhuma específica para as refeições.
Para quem goste de conhecer como eram os espaços interiores nas antigas casas portuguesas, sugiro a leitura do do livrinho "Museu dos Biscainhos: roteiro. Lisboa: IPM, 2005"
Foi um prazer restaurar esta peça.
ResponderEliminarCreio que o que falta mesmo será um pequeno corpo, entre o tampo e as pernas, com uma ou, mais provavelmente, duas gavetas.
Manel