quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Os desposórios de Nossa Senhora: estampa de Manuel da Silva Godinho

 
Continuo a perder-me pelos registos religiosos e sobretudo acho muita graça, a estes em que a moldura da composição é em formato octogonal. Não sei exactamente a razão da popularidade deste formato, mas julgo que se adaptariam bem aos trabalhos de decoração como missangas, flores de papel e passamanaria com que antigamente se decoravam estas estampas.

Também me chamou a atenção o tema, que não é dos mais vulgares, os desposórios de Nossa Senhora, isto é, o casamento de S. José e da Virgem Maria, que trocam alianças na presença de um Sumo-sacerdote. Este episódio da vida de Maria começou a ser representado na arte a partir dos finais da Idade Média e teve origem na Lenda Dourada, que por sua vez teve por fonte os Evangelhos Apócrifos.

Para quem não saiba, a Legende dorée é uma obra redigida em latim entre 1261 e 1266 por Jacques de Voragine, que conta a vida de cerca de 150 santos e ainda alguns acontecimentos da vida de Cristo e da Virgem. Segundo, o historiador Philippe Walter, esta Legende dorée é uma autêntica mitologia cristã, construída sobre as crenças pagãs, que o Cristianismo soube assimilar com o objectivo de as controlar.

Os evangelhos Apócrifos são aqueles textos antigos, que o Catolicismo ao longo dos seus muitos séculos de existência rejeitou como canónicos, mas que acabaram por influenciar a fortemente a religião popular e a arte.

Bem todas estas explicações servem para passar a ideia de que o casamento da Virgem e de S. José é um episódio  sumariamente mencionado no novo Testamento, e que assenta antes num conjunto de tradições antigas, com muitos elementos pagãos à mistura. E no entanto, apesar de a história não fazer parte do dogma católico tem uma certa beleza.

Luca Giordano. O Casamento da Virgem. séc. XVII. Museu do Louvre. Foto http://www.culture.gouv.fr/public/mistral/joconde_fr
Muito resumidamente, quando Maria fez 14 anos, O Sumo-Sacerdote decidiu que todas as raparigas, que tinham atingido a puberdade deveriam casar. Maria recusou obedecer, porque segundo o ela os pais a tinham consagrado ao serviço de Deus, o que provocou um certo embaraço no templo, porque não se poderia quebrar um voto sagrado. Os membros do templo decidiram remeter o assunto para a inspiração divina e ouviu-se uma voz desconhecida, que ordenou que todos os homens núbeis deveriam aproximar-se do altar com um cajado. Aquele cuja vara florisse poderia desposar a Virgem. Claro, nenhum dos candidatos teve a sorte de ver o seu cajado florir, excepto S. José, que foi o eleito de Deus para casar com Maria. Esta lenda ajuda-nos a entender não só a cena representada nesta estampa, como também a própria iconografia tradicional de S. José, que é muitas vezes mostrado segurando o seu cajado florido com açucenas. Aliás, um dos nomes vulgares da Açucena (Lilium candidum) é precisamente cajado de S. José.

O cajado de S. José ou Açucena
Quanto à estampa propriamente dita, como foi cortada, não tem a assinatura de qualquer impressor ou gravador com a qual se possa datar, embora me parecesse desde logo quando a comprei, que fosse coisa do século XVIII. Enfim, a minha experiência com livros antigos, permite-me aperceber-me pela cor, textura e espessura do papel se uma estampa é antiga ou não. Para ver se a conseguia datar, fui procurar uma igual no site da Sociedade Martins Sarmento, que tem on-line uma belíssima colecção de 1600 estampas dos séculos XVII-XIX e é mundo para os amantes gravuras religiosas. E claro, tive muita muita sorte, pois a Sociedade Martins Sarmento tem um exemplar, que não foi cortado e está assinado pelo gravador, Manuel da Silva Godinho, um senhor que viveu entre 1751?-1809? e de que já mostrei aqui uma Santa Catarina de Alexandria.

Os Desposórios de Nossa Senhora da Sociedade Martins Sarmento. No Canto inferior esquerdo está o nome do gravador.

Na feira de Estremoz comprei depois uma moldura antiga, limpei a madeira, usei como fundo um resto de um tecido de Damasco e estes Esponsais da Virgem foram fazer companhia a mais uma dezena de santinhos, que enfeitam a casa deste ateu empedernido. 
Alguma Bibliografia:
Dictionnaire illustré de la Bible: - Paris: Bordas, 1990

17 comentários:

  1. que maravilha!!! adorei o tecido damasco de fundo nas molduras. vou copiar...
    vou correndo pro site da sociedade martins sarmento ver as gravuras.
    é raríssimo o casamento de maria, maria amamentando.
    parabéns pelo post.

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    1. Caro Jorge

      Muito obrigado pelo seu comentário. O damasco vai muito bem com tudo o que seja arte sacra.

      Nunca vi nenhuma estampa com Maria a amamentar, mas nos séculos XVI estas imagens eram vulgares na escultura religiosa. Por aqui são conhecidas como as Senhoras do Leite.

      Um abraço

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  3. Prezado Luis,

    Paz e todo Bem.

    Olha só. Hoje eu estava à procura de informação para fazer uma postagem sobre uma peça de aquisição recente e que considero muito especial: uma talha sobre o Casamento da Virgem e S. José.
    Vc não sabe de minha surpresa e gratidão quando encontrei seu post (no cabeçalho de outro Blog) sobre este tema. Tema invulgar... como Vc observou. E partilhado quase simultaneamente.


    Talvez Vc tenha alguma informação sobre esta minha talha que parece francesa mas que pode ser portuguesa. Penso que do sec. XIX. Por aqui não encontrei nada parecido. Há somente uns poucos quadros. Quando puder, de uma olhadinha e se souber algo a respeito, agradeceria muito.
    http://velhariasdomaurinho.blogspot.com.br/
    Mas aqui estou para falar do seu Desposório em registo.
    Vou tentar ser sucinto:
    1- O tema é bíblico, apesar de não fazer menção do rito propriamente. Há dois trechos bem claros alusivos a esta realidade esponsal entre S. José e Nossa Senhora: “...uma Virgem prometida em casamento a um homem chamado José. (Lc1). E ainda: “José, filho de Davi, não temas receber Maria por tua esposa. (Mt1).
    É suposto que eles passaram por algum rito de união. Não conheço os costumes judaicos, sobretudo daqueles tempos. Mas é claro que a presença de um sacerdote entre os noivos (que embora use traje mosaico seu chapéu mais parece uma mitra mal encaixada...) a troca de alianças que na sua estampa acho que não tem (só faltou uma caldeirinha de água benta...) e outros elementos é tudo muito cristão (e até pagão como Vc notou). Muito normal onde o imaginário cristão era motivador e muitas vezes patrocinador destes artistas.
    2 – Jamais corrigiria uma idéia ou palavra boa de um amigo. Mas quando Vc diz hexagonal é porque não considerou os dois lados maiores de sua antiga estampa... Eu acho. Não sou bom em matemática. Oito lados já remete a muita coisa em Arte (Batistério de Florença, Mesquita Dourada.. Aliás no famoso Casamento da Virgem de Rafael há uma construção destas).
    3- Estas estampas eram parte de algum livro ou vendidas assim avulsas? Elas são uma paixão sua, né? Por aqui tenho pouca coisa. Uma vez encontrei um missal do início do XVIII com belas gravuras em pergaminho, mas a enchente me fez perder tudo. Restou-me uma Nossa Senhora do Rosário com moldura em ouro opaco sobre o papel.
    Até que Vc é um ateu bem piedoso, quase carola... Com todo respeito.
    Um abraço.
    Amarildo

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    1. Amarildo

      Já corrigi a informação relativa ao formato da estampa e à menção do Casamento da Virgem no Novo Testamento.

      Muitas estampas foram arrancadas de livros. Os alfarrabistas retalham muitas vezes os livros antigos para conseguirem uma margem de lucro maior, do que se vendessem o livro à unidade.

      Neste caso, trata-se de uma estampa isolada certamente. Nos séculos XVII, XVIII e XIX existiam em Portugal muitos gravadores impressores que se dedicavam a produzir e vender estas imagens de santinhos, que eram muito populares. Algumas destas imagens referem as ruas onde estes impressores tinham as suas lojas.

      O chapéu do Sacerdote será provavelmente uma visão imaginária do traje de um rabi nos templos bíblicos. Vi muitas imagens do Casamento da Virgem século XVIII em que o Sacerdote usa esta espécie de Mitra.

      Um abraço e obrigado pelas suas achegas

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    2. Luis,

      O seu texto estava muito bem e até concordo que o tema não seja rigorosamente bíblico (escriturístico) no que toca ao momento exato e tão solene que foi e ainda é, em muitos casos, a celebração de um Matrimônio. Quem quiser ver pompas vá a um deles na Antiga Sé do Rio... Tb não critiquei sua geometria lírica... Mas obrigado pela atenção.

      E o que achou de minha talha com o mesmo tema? Gostaria muito que alguém pudesse me dizer alguma coisa sobre aquela maravilhosa talha.

      Um abraço.
      Amarildo

      PS. Já ouviu falar de Myriam Andrade Ribeiro ? (professora e escritura, especialista em Barroco e quase "dona" do Aleijadinho,,,) Lembro que ela uma vez, em raro momento de intimidade, deixou escapar que coleciona este famosos REGISTOS de Santos...

      E por que registos e não registros?

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    3. Amarildo

      Registo ou registro é uma das diferenças entre o português do Brasil e o Português de Portugal. Ambos tem rigorosamente o mesmo significado.

      Os registos religiosos são tão variados, tão imaginativos, que é fácil deixarmos-nos cativar por eles

      Tenho que dar um saltinho ao seu blogue com a devida atenção.

      Um abraço

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  4. O Amarildo tem razão. A forma do registo é octogonal.
    Gostei muito do teu texto, o qual tem algumas achegas interessantes do Amarildo.
    Vais conseguindo encontrar toda esta informação sobre gravuras, e isto é quase um milagre, pois não costuma ser nada fácil chegar até ela, no que toca a estas peças, por terem caído em desuso e porque os livros da especialidade, como o de Louis Réau, só se apanha em bibliotecas.
    Muita da informação que aqui deixas eu não a conhecia.

    Quanto ao quadro do Luca Giordano é fantástico, gosto imenso dele!
    Muito bem achado.
    Manel

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    1. Manel

      Sou um nabo em geometria e já corrigi o texto. Aproveitei e também alterei a menção ao casamento da virgem no Novo Testamento. É uma sorte ter seguidores atentos que me ajudam com novas informações e me rectificam afirmações abusivas e um pouco feitas à pressa, que por vezes deixo escapar.

      Um abraço

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  5. Olá Luís,

    Mais um pedacinho de papel com muito para contar.
    Achei extremamente interessante, pois, tal como o Luís, e embora seja uma ateia empedernida, aprecio imenso tudo aquilo que é arte associada ao rito Católico.
    Desta vez deu-me a conhecer essa lenda dourada. Não sei porquê, fez-me lembrar algumas histórias que, e segundo o meu pai, eram contadas por uma das minhas bisavós.
    Fiquei bastante curiosa relativamente a um aspecto em
    particular - aquela espécie de mitra que o sacerdote usa. É que, à primeira vista, parece-me tal e qual os cornos de um boi...ora, o boi, era em muitas religiões antigas visto como um animal sagrado. Mas se calhar estou para aqui a dizer puros disparates.
    É engraçado verificar que, pessoas como nós,autênticas "ovelhas tresmalhadas", dediquemos parte do nosso tempo com assuntos deste tipo, quando muitos dos que andam a papar hóstias todos os dias, provavelmente nem sequer se apercebam da sua existência...
    Por exemplo, se colocar uma questão sobre a Biblioteca de Nag Hammadi, poucos serão os que dela ouviram falar.
    Enfim, este nosso Mundo está repleto de incongruências.
    Mas de uma coisa eu tenho a certeza:
    - Estes seus registos são uma verdadeira delícia!
    E já agora, quando nos presenteia com um qualquer registo que tenha como figura central Maria Madalena?
    De todas estas histórias é sem sombra de dúvidas a minha preferida! Figura denegrida, mas que a meu ver, terá sido das mais importantes
    Sei que deve ser difícil,mas quem sabe? E digo difícil porque a Igreja Católica tratou de a colocar num "armário". Mas, dando crédito a toda esta história do Catolicismo, que eu separo do Cristianismo, é-me muito mais fácil,acreditar num envolvimento de Maria Madalena com Cristo, do que na tão badalada virgindade de Maria...
    Para terminar , e porque não o quero maçar, partilho consigo um tema musical que vem a propósito, denominado "The Voice of Maria".

    https://www.youtube.com/watch?v=9KzRrwFHl14

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  6. Alexandra

    Tenho também uma paixão pela figura de Madalena e já publiquei duas estampas com imagens desta Santa:

    http://velhariasdoluis.blogspot.pt/2012/01/alguns-pensamentos-acerca-da-pecadora.html

    http://velhariasdoluis.blogspot.pt/2012/01/as-pagelas-ou-limages-pieuses.html

    Também tenho um fascínio por Maria Madalena. Todos nós gostamos das pecadoras. Como diziam numa novela brasileira, as boazinhas só vão direitas para o céu, enquanto que as más vão a todo o lado...

    Tenho imensa pena de não ter nenhuma Maria Madalena. Juntamente com Maria Egipciaca, outra pecadora com a qual Maria Madalena foi confundida na crença popular, são figuras que fazem parte da minha lista de compras nos mercados das velharias.

    Julgo que uma educação católica nos deu uma dimensão da espiritualidade, que outras pessoas educadas sem religião terão mais dificuldade em alcançar. E depois a arte do catolicismo é feita para impressionar e deslumbrar os crentes e fez uso dos materiais mais ricos e empregou os melhores artistas de sempre. Por isso nos sentimos tão atraídos pela arte sacra, sobretudo a barroca, que é sempre teatral.

    Bjos

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  7. Muito bonito Luís.
    A açucena é linda.
    Tenho um gosto muito especial por estas estampas. A religiosidade pode revelar-se de vários modos.
    Rever a lenda do casamento de Maria fez-me sorrir.
    Boa noite. :))

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    1. As Açucenas são das flores de jardins mais antigas em Portugal e também das mais fáceis de cultivar. Aparecem nas pinturas dos séculos XV, XVI, XVII e XVIII e tem uma simbologia sempre ligada à pureza e de facto, quando as encontramos nos jardins percebemos imediatamente a origem desta relação.

      Um abraço

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  8. Uau, que beleza!! Escreveu com tanta ternura acerca dos desposórios da Virgem Maria que custou-me acreditar que é um ateu empedernido. Que beleza de blog. Um abraço.

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    1. Cara Melissa

      Muito obrigado pelo seu comentário simpático.

      Muito embora seja um homem sem crença, tive uma educação católica e assimilei muito princípios do catolicismo, bem como uma certa espiritualidade.

      Para além disso, a maior parte da arte europeia desde o início da Idade Média até quase ao início do século XIX é de inspiração cristã. Portanto se queremos apreciar devidamente uma pintura de Leonardo da Vinci, um fresco de fra Angélico ou uma simples estampa do século XVIII, como "Os desposórios de Nossa Senhora", temos que estudar e entender o Catolicismo. Só com esse estudo, é que conseguimos descodificar as obras de arte sacra.

      Por outro lado, há também uma certa beleza literárias nos antigos textos sagrados, que não deixa indiferentes aqueles que perderam a fé. A história do cajado florido de São José é uma beleza.

      Um grande abraço

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  9. Caro Luís, que bela resposta me deu. Mesmo não conhecendo você e sabendo que não haja mais crença cristã em seu coração, fico felicíssima por saber que admira a beleza e a sacralidade da arte de cunho cristão. Acredito que tanta beleza só pode vir do Catolicismo e são até mesmo indissociáveis. Não nego que há beleza na arte com influxo em outras denominações religiosas ou espirituais, mas a cristã sempre é mais bela. Virarei leitora assídua do seu blog cult. Um abraço.

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    1. Cara Melissa

      Ao longo da história os mais geniais empreendimentos artísticos são de cariz religioso. Basta recordarmo-nos das pirâmides do Egipto, dos templos do Parthenon em Atenas, do templo de Angkor Wat no Cambodja ou do Juizo final de Miguel Ângelo na Capela Sistina, em Roma. Só no século XIX é que arte se liberta da religião e isso é aqui no Ocidente.

      Enfim, independentemente de acreditarmos ou não, é impossível descartar essa herança do passado.

      Um abraço

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