Sei bem que estes bibelots em biscuit, que estavam tão na moda nas casas burguesas dos finais do século XIX e inícios do século XX são um bocadinho kitch. Falta-lhes a autenticidade dos pratos ratinhos ou a elegância depurada da porcelana de Paris das primeiras décadas de oitocentos, mas apresentam um charme muito burguês ao qual, confesso, não consigo resistir. E com efeito, na semana passada cedi à atracção exercida por esta menina em biscuit, na feira de Estremoz, e trouxe-a comigo para casa.
Em frente ao espelho |
Quando a comprei achei que fosse uma rapariguinha, pelas formas arredondadas do corpo, pelo cabelo e até pelo sinal que ostenta no rosto. Contudo nos finais do século XX, inícios do século XX, se olharmos para as fotografias da época, temos dificuldade em distinguir os meninos das meninas. Eles usavam também uma espécie de vestido e muitas vezes o cabelo era-lhe cortado à pajem. Ainda recentemente enviei a uma prima minha uma fotografia antiga de família, de uma menina tirada cerca de 1900, sem nenhuma legenda, pedindo que me ajudasse a identifica-la e afinal quando recebi a resposta da prima, descobri que se tratava do seu pai ou de um dos seus tios. No entanto, se no início do século XX os vestidos ou bibes eram comuns aos rapazinhos e às meninas, os calções eram uma indumentária masculina, conforme me chamou a atenção a Maria Andrade. Em suma, é mais provável, que esta figurinha represente um menino.
Um menino da minha família cerca de 1900. Nas fotografias antigas temos dificuldade em distinguir os meninos das meninas pela indumentária |
Em todo o caso, seja ele menino ou menina, está muito animado, com umas roupas divertidas de festa, meias às riscas e um barrete engraçado. julgo que está a fazer balões de água com sabão.
Estas figurinhas em biscuit de meninos e meninas em posses travessas, pintadas e fabricadas com uma grande mestria técnica são normalmente de fabrico alemão e destinavam-se a ornamentar os pianos das salas vitorianas. Estes pianos eram cobertos com panos decorados com franjas, os chamados mantons de Manilha e por cima colocavam-se estas figurinhas, retratos de famílias, jarras de flores e outra cangalhada, num gosto surchargé, como dizem os franceses.
Sala vitoriana de casa burguesa. A decoração é sobrecarregada. Por cima do piano um pano com franjas e uma figurinha em biscuit ou porcelana. |
Em função do local onde eram normalmente dispostas, estas figurinhas ficaram então conhecidas pela designação de pianos babies. Eram normalmente alemães, produzidos sobretudo da região da Turíngia e a mais famosa fábrica foi a Gebrüder Heubach (1843-1938), cujos pianos babies, quando ostentam marca, atingem preços exorbitantes nos Estados Unidos.
Piano Baby de Carl Schneider. |
Mas outras fábricas também se distinguiram pela qualidades das suas figurinhas de biscuit, como a Reichmannsdorf (1881-1964) e ainda Carl Schneider Erben (1886-1951). Além destes bibelots, estas casas dedicavam-se também ao fabrico de bonecas com a caras e as mãos também em biscuit e que hoje são procuradíssimas pelos coleccionadores de brinquedos por causa da sua elevada qualidade.
Tal como muitas figurinhas em biscuit alemãs, este meu piano baby apresenta como marca apenas um número, 2413 |
No entanto, muitas destas figurinhas encantadoras não estão marcadas, ou então apresentam apenas números de fabrico, que se reportavam talvez às séries ou aos artistas. Esta ausência de marcas parece-nos um pouco inexplicável por parte de um povo tão metódico e organizado como os alemães. Mas de facto há uma razão política para isto. Desde 1870, quando a Alemanha invadiu a França e cercou Paris, o militarismo prussiano passou a ser visto como uma ameaça cada vez mais maior pela Europa, receio que se foi alargando ao mundo anglo-saxónico, sobretudo de depois de 1900, quando os alemães começaram a competir com a Inglaterra em poderio naval. Essa antipatia por tudo o que era alemão, traduziu-se nos Estados Unidos na aprovação do McKinley Tariff Act em 1890, que obrigava a que todos os produtos importados tivessem referência ao seu país de origem.
E no entanto, a porcelana e o biscuit alemão eram de grande qualidade e tinham preços competitivos e a forma que os fabricantes alemães encontraram de contornar esse anti-germanismo e continuar a exportar para os Estados Unidos e para a Europa foi não marcar os seus produtos, ou apor-lhes apenas um número ou ainda uma marca pouco clara e o termo "Germany", quando aparecia era em letras muito pequeninas. Houve até um grande distribuidor de cerâmica inglês, Max Emanuel & Co, que usou uma fábrica em Mitterteich na Baviera para fabricar loiça alemã, com uma marca britânica. No fundo, o consumidor mais desatento comprava produtos alemães sem o saber.
Em suma, apesar do anti-germanismo patente no mundo anglo-saxónico e na Europa, entre os finais do século XIX e inícios do século XX, as famílias burguesas continuaram a comprar estas figurinhas em biscuit, que de tão simpáticas que são, nelas é impossível encontrar qualquer vislumbre do militarismo prussiano, que pôs a ferro e fogo toda a Europa.
Sobre marcas alemãs, leia-se http://www.figurines-sculpture.com/pottery-markings-archive.html
As nossas crianças andavam de cabelos curtos não por moda, mas por questão de higiene. É que os piolhos abundavam e com os cabelos curtos era mais fácil catar piolhos e lêndeas.
ResponderEliminarCaro Nuno
EliminarObrigado pelo seu comentário.
No entanto, o tipo de crianças que esta figurinha retrata usava o cabelo comprido. Era o tempo em que as criancinhas de famílias abastadas tinham professores particulares.
Um abraço
Olá Luís,
ResponderEliminarSimplesmente adorável!
Nós e os nossos "amores"por essas peças.
Eu também as adoro. Infelizmente não tenho nem a primeira...
Verdade seja dita que por aqui nunca vi nenhuma. Se tal acontecesse , nem sequer me ralaria com a sua origem alemã...
Como sabe, não morro de amores por esse povo...a começar por aquela certa mulher que mais parece um panzer...
Bom, voltemos para os assuntos que nos dão prazer.
Ontem também fiz umas compras na feirinha cá do burgo. Adquiri uns singelos três pratinhos e respectiva leiteira da Vista Alegre (carimbo com a Ema) uma outra leiteirinha quase miniatura com decoração oriental, da qual não sei nadinha, a não ser a pequenina marca vermelha no fundo, e ainda um pires para fazer companhia a uma chávena que já havia comprado anteriormente, e que agora encontrou a sua "cara metade". Et voilá! Fiquei toda contente, voltei para casa com a carteira um bocadinho mais vazia, mas a casa ficou mais cheia.
E aprendi consigo que fica muito mais em conta comprar várias peças em conjunto, do que uma isolada!
Beijinho e trate muito bem desse menino (para mim é um menino..)
Alexandra Roldão
Alexandra.
EliminarEsta figurinha parece saída das ilustrações que tanto a Alexandra gosta.
Também fiquei com dúvidas quanto ao sexo desta criança. Aliás o próprio traje também me levantou questões. Parece-me uma fatiota do tipo clown, própria para uma festa de aniversário, mas também me lembrei se seria um traje de banho, nesse caso poderia ser uma espécie de Bathing beauty, mas não cheguei a conclusão nenhuma. Aguardo o comentário da nossa Maria Andrade que é sempre muito observadora e tem sempre um olho muito especial para resolver enigmas e charadas de cerâmica.
Tem toda a razão comprar em conjunto sai sempre mais barato. Aprendi essa manha com o Manel, que é melhor negociante que eu. Muitas vezes compramos duas ou 3 peças em conjunto e depois dividimos e fazemos contas depois.
Quando os alemães fabricavam estes bonecos, tinham já atrás de si uma tradição de quase duzentos anos no fabrico de figurinhas de porcelana. No fundo estes bonecos são uns descendentes das míticas figurinhas de Meissen.
Bjos e obrigado
Luís
ResponderEliminarMais uma peça para a sua colecção. Bonita e com um ar travesso. Também gosto dos piano babies e tenho dois que comprei há bastantes anos, numa feira de antiguidades do Hotel Ritz . Comprei só porque gostei da sua delicadeza e perfeição. Nem sabia que se designavam assim. Fui ver se tinham marca e, qual não é o meu espanto, lá estava ela. Consultei o link que indicava e encontrei-a. Segundo parece foi fabricada na Turíngia (?).É engraçado como se vão fazendo estas descobertas.
Um abraço
if
Cara Ivete
EliminarAinda bem que este blogue lhe foi útil. De facto lembro-me bem de um dos seus pianos babies, que estava marcado, embora na altura não consegui de imediato identificar a marca. Mas era uma peça encantadora.
Um abraço
Esta história que você contou das razões de por um período peças alemães não levarem marca eu desconhecia, e foi muito bom aprender, pois no Brasil também há uma quantidade enorme de peças que se atribui à Alemanha, mas que não levam marcas, apenas os numeros, seja por in cavo ou carimbo.
ResponderEliminarabraços
Fábio
Fábio
EliminarDe facto, por detrás de inocentes figurinhas como estes pianos babies, está uma realidade política tensa, que veio culminar em duas guerras mundiais com consequências terríveis na Europa e na Ásia.
A inocência convive sempre lado a lado com a maldade.
Um abraço
Uma peça engraçada. Desconhecia a questão da exportação e a estratégia utilizada para vender.
ResponderEliminarMuito interessante.
O Luís consegue tornar as peças vivas.
Abraço!:))
Obrigado pelas palavras simpáticas, Ana.
EliminarParece que mesmo através dos mais inocentes bibelots é possível entrever os grandes movimentos da história.
Um abraço
Esta manha de comprar várias peças é uma tática muito usada, e eu também não lhe consigo escapar. Desta forma consigo, e o Luís também, adquirir coisas mais em conta, pois, como todos os que trabalham sabem, o dinheiro custa a ganhar.
ResponderEliminarE desta forma também ninguém fica a perder, nem o vendedor, que vai mais leve para casa, mas com uma carteira mais recheada, e nós, que acabamos por ficar com coisas que, doutra forma, nos ficariam mais caras.
Seria uma dor de alma deixar esta peça na banca do vendedor, pois, como já tens outro, ficam a fazer-se companhia.
O que é interessante é que estas peças têm em torno delas sempre algo de humorístico; aquele que já possuías, é um pequeno diabrete que parece ter ido ao pote do chocolate às escondidas dos pais, e foi apanhado todo lambuzado, com chocolate até às meias.
Este, por outro lado, parece um pequeno palhacito, vestido de cores garridas, que se macaqueia com balões na mão.
Este lado humorístico é muito apelativo nestas peças.
Até o paliteiro que tens, que, apesar do seu uso, também tem algo de piano baby, mostra uma criança que se apresta a matar uma mosca que lhe pousou no braço.
Não é comum ver este lado prosaico nestas peças de decoração que, por norma, mostram sempre o lado certo e burguês de acordo com a clientela a que se destinam.
Manel
Manel
EliminarTalvez se não tivesse herdado duas destas peças, seria completamente indiferente a estas figurinhas em biscuit. Comecei por gostar pois delas apenas por motivos meramente afectivos. Mas hoje rendo-me a delicadeza e ao cuidado com que foram produzidas, bem como ao lado mais humorístico destes meninos travessos.
Julgo que o teu piano ficava bem com uma colecção destes bonecos.
Um abraço
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarLuís, confesso-lhe que nunca me entusiasmei muito por este tipo de figurinhas em biscuit, só tenho um ou outro “putto”, mas este seu menino acabou por resultar num bom motivo de conversa.
ResponderEliminarEm primeiro lugar, acho que é um piano baby boy :), não por causa da cor azul do peitilho – o rosa e o azul para menina ou menino só ficaram definidos mais tarde - mas porque usa uns calções, o que na época não seria vestuário de menina. Pelo contrário os vestidos, foram efetivamente usados no passado por todas as crianças, por motivos práticos...
A verdade é que uma criança loira, de cabelos ondulados, rechonchuda e corada, sem a roupa ou o penteado a ajudar na identificação, leva-nos sempre a pensar que é menina.
Estou de acordo consigo em que esta sua figurinha seja alemã. Ali proliferaram inúmeras fábricas de porcelana, que produziram em massa bibelots em biscuit com que inundaram todos os países europeus e que se tornaram moda, também na Inglaterra. O facto de usarem como marca apenas um nº de referência e/ou a palavra Germany, penso que tinha como intenção viverem à sombra do prestígio e da qualidade dos grandes fabricantes da porcelana alemã, que, aliás, nunca deixaram de marcar os seus produtos.
A ideia que eu tenho é que a reação inglesa a essa concorrência e invasão de produtos germânicos foi a utilização da Pattent Office Registration Mark, aquela marca em forma de losango que encontramos por vezes na loiça. Assim o comprador sabia logo se o produto era ou não inglês.
Já o McKinley Tariff Act, não me parece que tenha a ver com isto. Foi uma lei protecionista da produção interna americana que impôs pesadas taxas a todos os produtos importados, quer fossem europeus, quer chineses ou japoneses. Obrigavam à marcação do produto importado com o nome do país de origem e na ausência dessa marca simplesmente não entrava.
Acho que me alonguei demais, mas já que fui expressamente convocada para a conversa, aproveitei logo a deixa... LOL
Bjos
Maria Andrade
EliminarCom efeito, esperava a sua opinião sobre o sexo desta figurinha e as razões que apontou parecem-me muito plausíveis e irei mudar um pouco texto do blog, modificando sexo da criança.
Quanto ao sentimento anti-germânico é um facto sempre crescente nas opiniões públicas dos países europeus e dos Estados Unidos, nos finais do XIX, inícios do XX, aliás esse sentimento é alimentado e manipulado pelos respectivos governos e terá como desenlace o conflito de 1914-1918. Creio pois que houve de facto uma certa má-vontade contra os produtos alemães, que por vezes se expressou em actos legais como Merchandise Marks Act 1887 em Inglaterra.
http://en.wikipedia.org/wiki/Anti-German_sentiment
Claro, naturalmente as grandes marcas de porcelana, como as de Meissen, não iam deixar de usar as suas espadas cruzadas, símbolo de alta qualidade, por causa de uma ou duas leis proteccionistas.
Bjos e apreciei muito as suas opiniões que enriqueceram sem dúvida este post
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ResponderEliminarDear Dlip
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