Mesmo sem saber como encaixa-lo na minha casa, comprei mais um registo para a minha colecção de santos, pois encantei-me completamente com esta representação da Nossa Senhora, São José e do Menino Jesus, sumptuosamente vestidos em trajes de corte. É curioso, que eu até já tenho uma estampa com esta representação da Sagrada Família, mostrada aqui no blog, em 2012, para desejar as boas festas aos meus seguidores, só que, como é uma coisa com menos de meia dúzia de centímetros, não lhe liguei muito. Achei que era uma mera gravurazinha destinada a um escapulário, enfeitado com continhas.
Mas, esta gravura de maiores dimensões, em que os personagens da Sagrada Família envergam uma indumentária tão rica, cheia de pormenores, fez-me suspeitar de imediato que reproduzisse um conjunto de esculturas, que existiu em tempos nalguma igreja, objecto de intensa devoção. No site da Sociedade Martins Sarmento, que tem uma belíssima colecção de registos de santos, encontrei uma gravura muito semelhante a esta, apenas o desenho da moldura difere, mas identifica inequivocamente a devoção, Nossa Senhora da Madre de Deus. A minha estampa tem apenas uma legenda em latim Virgo Maria Mater Dei.
Estampa da colecção da Sociedade Martins Sarmento |
De seguida fiz meia dúzia de pesquisas no Google e descobri que esta estampa representa de facto imagens, que ainda hoje existem e são muito veneradas na igreja de Nossa Senhora da Consolação e Santos Passos, na cidade de Guimarães. Encontrei também referência a um catálogo de uma exposição, onde estas imagens figuram, Nossa Senhora Madre de Deus de Guimarães : alfaias / coord. Isabel Maria Fernandes e José Cardoso de Menezes Couceiro da Costa. - Porto : Livraria Civilização Editora, 2004, que me apressei a consultar e cujo conteúdo aqui reproduzo de forma muito sumária.
Foto retirada de Nossa Senhora Madre de Deus de Guimarães : alfaias . - Porto : Livraria Civilização Editora, 2004 |
Segundo essa obra, a Sagrada Família, representada nesta gravura, foi encomendada em Lisboa por Luís António da Costa Pego, capelão de D. João V, em cumprimento de um voto e destinava-se ao Convento das Capuchinhas, da cidade de Guimarães. O conjunto escultórico vinha acompanhado de uma coroa em prata para a Nossa Senhora, oferecido por D. João V, um resplendor em prata para S. José, dado pelo príncipe herdeiro, o futuro de rei D. José e um enxoval esplendoroso, bordado e executado pelas reais infantas. Quando o magnífico conjunto chegou a Guimarães em 1748, houve uma grande procissão, em que as imagens foram mostradas pela cidade e houve festejos grandiosos. A sagrada família permaneceu no Convento das Capuchinhas até 1910 e o seu enxoval não deixou de ser acrescentado, com uma coroa para o Menino Jesus, um cajado de açucenas para o S. José, também em prata, ambos já do início do século XIX e ainda muitos trajes, vestidos, capas, camisas, laços para a Virgem, gravatas para o S. José e colchinhas para o Menino Jesus, confeccionados e bordados pelas senhoras da melhor sociedade vimaranense, que com algumas adaptações, foram sempre seguindo o estilo da indumentária da segunda metade do século XVIII.
Foto retirada de Nossa Senhora Madre de Deus de Guimarães : alfaias . - Porto : Livraria Civilização Editora, 2004 |
As imagens de roca que estão por debaixo deste guarda-roupa luxuoso, eram vestidas pelas Senhoras de Guimarães e as cores variavam consoante o calendário litúrgico.
Em 1910, após a Republica, com a Lei da Separação, os bens do Convento das Capuchinhas foram vendidos em hasta pública e as imagens e o enxoval foram comprados por Henrique Cardoso de Martins Menezes, conde de Margaride. As esculturas deixaram o convento das Capuchinhas e foram depositadas na Igreja da Nossa Senhora da Consolação e Santos Passos, mas as jóias e o guarda-roupa ficaram na casa do referido Conde. No entanto, todos os anos, por alturas da Páscoa essas preciosidades vinham para a referida igreja vestir e adornar as imagens, que saiam em procissão. Em 1956, os descendentes do Conde de Margaride entregaram o enxoval em título de depósito definitivo à Irmandade acima referida e as imagens continuam a sair em procissão pelas ruas de Guimarães ainda nos dias de hoje.
Foto retirada de Nossa Senhora Madre de Deus de Guimarães : alfaias . - Porto : Livraria Civilização Editora, 2004 |
Para os nossos olhos contemporâneos, os trajes de corte que a Sagrada Família enverga, parecem-nos uma contradição, já que o Menino Jesus nasceu numa humilde manjedoura como toda a gente sabe. Mas no passado, as imagens ricamente vestidas significavam para os crentes que eram poderosas, capazes de propiciarem curas miraculosas, numa época, em que a medicina era incipiente, a mortalidade elevada e a esperança de vida curta. Por essa mesma razão as mulheres devotas ofereciam a essas representações do divino os seus colares e brincos mais valiosos e os homens encomendavam-lhes capas de seda bordadas a ouro, para pagar à Virgem ou ao Menino Jesus, aquilo que em todos os tempos nunca tem preço, a sua vida ou a dos entes queridos.
O verso do registo está revestido com um bonito papel de lustro. |
Gosto imenso do traje da virgem com aquelas cascatas de pérolas que ornam o peito. Para não nomear os bordados a ouro que, adivinha-se, deveriam ornar as vestes e manto.
ResponderEliminarEstes trajes de corte eram riquíssimos, o que está em contradição com os princípios de pobreza e simplicidade pregados pelas próprias congregações religiosas, mas afinal, estas crenças, sejam elas quais forem, estão sempre definidas por estas disparidades.
Talvez seja uma, das muitas, razões porque tenho muita dificuldade em conseguir aproximar-me de qualquer religião.
Apesar de ter frequentado estabelecimentos de ensino liderados por religiosos, e, como tal, ter tido uma educação religiosa católica convencional, continuo a olhar estas religiões com muita curiosidade, respeito os praticantes, admiro as manifestações artísticas que as caraterizam, mas mantenho-me sempre cuidadosamente afastado e sempre com um sentimento subjacente de suspeita.
Falta-me "acreditar" nestas religiões feitas por homens e destinadas a homens que necessitam de acreditar em algo para continuarem a viver, ou, por vezes, em alguns casos, por uma questão de tradição familiar ou de educação.
Igualmente, nos tempos passados, esta vida religiosa era a única solução que se abria a uma classe aristocrática de mulheres solteiras ou viúvas, acreditassem elas ou não, e era também uma forma de vida para gente tão pobre e destituta que necessitavam de entrar numa ordem, como mão-de-obra para servir o estilo de vida que se praticava nestas instituições.
E, ainda por cima, esta prática emprestava respeitabilidade a quem pertencesse à comunidade social onde se integravam.
A "fé" que se apregoa ser necessária para se seguir qualquer ideia de pertença a uma congregação religiosa não se coaduna com a prática dos humanos que a constituem, nem, no meu caso pessoal, está de acordo com a lógica com que dirijo a minha vida.
No entanto admiro as suas manifestações exteriores, sempre com um misto de estupefação, mas não deixa de ser um sentimento de admiração pela arte fantástica que está subjacente.
Mais um caso de boa investigação, como nos habituas sempre. A qualidade do teu blog provém em grande parte desta tua preocupação
Manel
Manel
EliminarPor ocasião da exposição que referi no texto, o enxoval desta Nossa Senhora da Madre de Deus foi todo restaurado e inventariado e eu só aqui mostrei alguns dos trajes. O primeiro é dó século XVIII e o segundo já do XIX.
Eu também sou um homem sem crença, no entanto fico sempre fascinado com os faustos da Igreja Católica Romana. A propósito da fé, produziram-se obras de arte que ainda hoje nos espantam pelo seu luxo.
Fora isso, da educação católica que recebi, agradeço uma certa ética, bem como um sentido de espiritualidade, que creio que faz falta aos meus filhos, educados sem crença. Mas talvez com o tempo, através da leitura e das artes, adquiram uma espiritualidade mais elevada.
Estes registos de santos acabam por sempre uma fonte importante para a história da arte e das devoções católicas.
Um abraço e obrigado pelo teu comentário
Tenho um registo parecido em minha casa - https://ilustracaoantiga.blogspot.com/2009/09/madre-de-deus.html. Desconhecia esta história e achei maravilhosa. As roupas são lindas. Bom dia!
ResponderEliminarMargarida
EliminarQue engraçado. O seu registo é lindo. Parece-me de uma dimensão mais pequena que o meu. Creio que a abundância destas estampas só prova a popularidade do culto a Nossa Senhora da Madre de Deus.
Tornei-me seguidor do seu blog sobre ilustração, que não conhecia e assim serei notificado das actualizações. Um abraço e o resto de uma boa semana de trabalho