terça-feira, 17 de dezembro de 2019

A Anunciação: o arcanjo Gabriel ou votos de boas festas

Ave gratia plena
Os leitores mais assíduos deste blog já sabem que não sou muito dado a efemérides, comemorações e festas religiosas. Recordo-me de imediato de todas as redacções, que era obrigado a fazer na escola primária ou até mesmo no liceu, sobre o Natal, a Páscoa ou a Primavera. Sempre funcionei melhor com temas livres.

Contudo como não há regra sem excepção, este ano resolvi celebrar a época natalícia e desejar as boas festas aos pacientes leitores deste blog com uma estampa francesa dos finais do século XVII, representado o Arcanjo Gabriel, no momento em que anuncia a Maria, que será a mãe de Deus.

A estampa está assinada. Terá sido executada a partir de uma pintura de Charles Le Brun, gravada por Gilbert Filloeul e impressa em Paris por Jean Mariette no ano de 1695.
 
A legenda da estampa: Carol Le Brun pinx; a Paris chez. J. Mariette, grave para G. Filloeul,  1695 
Charles Le Brun (1619–1690) foi o principal pintor francês do Rei Luís XIV e notabilizou-se pelas suas pinturas para o Castelo de Versalhes, bem como na execução de cartões para tapeçarias.

Jean Mariette (1660-1742) pertencia a uma famosa dinastia de impressores e gravadores e imprimiu ou gravou cerca de 900 obras, executadas a partir das obras dos mais famosos pintores da sua época, tais como Nicolas Poussin, Domenico Zampieri, Charles Le Brun, Michel Corneille the Younger, Louis Chéron, Antoine Dieu, Guido Reni, A. Caracci, Sébastien Bourdon, Giovanni Contarini, e Van Dyck.

Gilbert Filloeul (1661-1714) foi um gravador francês, figura um pouco mais obscura, que Charles Le Brun ou Jean Mariette e segundo o Inventaire du fonds français, graveurs du XVIIe siècle de Roger-Armand Weigert, usava muitas vezes as gravuras de mestres mais famosos para produzir as suas estampas. Notabilizou-se mais pela divulgação das obras dos grandes gravadores e impressores do que propriamente pelas suas qualidades artísticas.

Tendo chegado a este ponto da identificação da estampa, achei que já tinha o trabalho quase feito e que só me faltava identificar a partir de que pintura de Charles le Brun esta gravura foi executada.

Fui procurar nos manuais e percebi logo que a coisa não era assim tão simples. Na obra de Henry Jouin Charles le Brun et les arts sous Louis XIV.Paris : Imprimerie Nationale, 1889 descobri que esta gravura teve por base uma encomenda recebida por Charles Le Brun, uma pintura da Anunciação, para a Igreja dos Petits Péres de Nazareth e que nunca chegou a entregar. As gravuras inspiradas neste trabalho dividiram a obra em duas partes, uma para o Arcanjo Gabriel, outra para a Virgem. Portanto, algures por esse mundo fora existe outra estampa, que faz “pendant”, com esta estampa do meu amigo Manel.
 
O desenho da Biblioteca Nacional de França que poderá ter inspirado a gravura de Gilbert Filloeul

No entanto, terão existido ensaios ou esboços dessa pintura da anunciação, que deram origem às gravuras. Jennifer Montagu, no artigo The Unknown Charles Le Brun: Some Newly Attributed Drawings (*1), descobriu um desenho na Biblioteca Nacional de França, atribuído aquele pintor francês e que relacionou com as gravuras existentes. Segundo essa especialista este desenho seria um dos esboços para essa Anunciação da Igreja dos Petits Péres de Nazareth. Jennifer Montagu refere ainda uma estampa, que entretanto se perdeu e que seria uma versão mais original do projecto de Le Brun e publica duas gravuras, mais antigas do que aquela que apresento hoje, feitas por Gilles Rousselet, baseadas também nessa composição, mas que igualmente a dividem em duas partes.
 
Estampas de Gilles Rousselet inspiradas na obra projectada para a Igreja dos Petits Péres de Nazareth
 
Na internet, encontrei mais uma referência a esta anunciação de Charles Le Brun, na obra Dessins français du XVIIe siècle: Inventaire de la collection de la Réserve/.Por Damien Chantrenne‎, Pascale Cugy, Maxime Préaud , em que os autores reproduzem o desenho da Biblioteca Nacional de França e ainda a gravura que se julgava perdida. Os autores são de opinião, que o desenho apresenta uma execução um pouco seca, que poderá explicar-se pelo facto de o desenho ter sido concebido já com o objectivo de ser traduzido em gravura, mas também os leva a interrogarem-se se a obra é realmente de Charles Le Brun.
 
Estampa da Biblioteca Nacional de França e que será aquela que reproduz melhor a composição de Carles Le Brun
Enfim, como acontece muitas vezes em história, não é possível fazer conclusões definitivas sobre a obra de Le Brun, que inspirou esta gravura do Arcanjo Gabriel. No entanto, é uma estampa de qualidade muito superior às gravuras de Rousselet e o ramo de Açucenas, que o Arcanjo segura na mão, dá-lhe um encanto muito especial, muito adequado para oferecer aos meus leitores este Natal.
 
As açucenas
(*1), Master drawings, vol.1, nº 2 (1963), p.40-47

12 comentários:

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    1. Cara amiga

      Ainda bem que gostou deste pequeno presente. Mais uma vez votos de boas festas para si e para os seus

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  2. Apesar de ter várias gravuras de que gosto muito, não só pela temática assim como pela qualidade, ter encontrado esta foi uma sorte. Não é comum encontrar coisas tão boas como esta, mas, por vezes lá aparecem.
    Já tinha tentado fazer pesquisa sobre esta gravura e não tinha chegado a grandes resultados. Tu lá conseguiste encontrar mais coisas do que eu. E ainda bem, pois, para lá de saber quem a tinha feito, a data da sua produção/publicação, e o nome do pintor em cuja obra tinha sido baseada, pouco mais sabia. Faltava-me saber qual tinha sido a obra na qual estava baseada.
    Os parabéns pela tua pesquisa, que resultou melhor do que a minha.
    Um bom Natal também, e para todos nós
    Manel

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    1. Manel

      Esta é realmente umas melhores gravuras que tens. Sempre pensei escrever um post sobre ela, mas estava a guardar a coisa para o Natal.

      A minha experiência de bibliotecário leva-me a passar horas nos catálogos das várias bibliotecas europeias e americanas, de modo que estou à vontade na identificação de material impresso, isto é, livros e gravuras.

      A minha pesquisa não foi inteiramente conclusiva e faltou-me encontrar o par desta gravura, a Virgem Maria, que imagino, ser uma coisa lindíssima.

      O Inventaire du fonds français, graveurs du XVIIe siècle, de Roger-Armand Weigert desvaloriza um pouco a obra deste gravador, o Gilbert Filloeul, mas eu acho a estampa de uma belíssima qualidade, além de que foi impressa pelo Mariette, um mestre com imenso prestígio em Paris e que só aceitaria trabalhados de categoria.

      Um abraço

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  3. Caro Luís
    Em boa hora abriu uma exceção neste seu blog e veio desejar a todos os seu leitores boas festas! Presenteou-nos com uma bonita estampa do Arcanjo Gabriel!Bela representação! Gosto particularmente do ar robusto, quase musculado deste Arcanjo, em oposição à delicadeza das Açucenas que tem na mão.Tenho ideia de que é mais frequente a representação do Arcanjo Gabriel, com uma figura frágil, quase feminina. Será que é assim? Bem, caro Luís resta-me agradecer a gentileza do seu post e desejar-lhe também um Feliz Natal. Endereço também ao Manel os votos de um feliz Natal.Bjs

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    1. É sempre um prazer reencontra-la por aqui. Também é verdade que os nossos encontros são sempre virtuais, pois nunca tive o prazer de a conhecer pessoalmente, embora saiba bastante de si, dos seus gostos e da sua personalidade.

      Tenho alguma dificuldade em responder à sua pergunta sobre a iconografia de Gabriel. No catolicismo romano e mesmo no cristianismo oriental os anjos são um mundo. Existem arcanjos, anjos, serafins, querubins e sei lá que mais. No século, I houve mesmo um autor, Dionísio o Aeropagita, que escreveu um tratado só sobre anjos. Em Bizâncio discutiu-se inclusive o sexo dos anjos. Na arte cristã ocidental, cada uma dessas criaturas divinas teve os seus tipos iconográficos.

      Os arcanjos eram considerados uma espécie de milícia celeste e por vezes eram representados como soldados romanos, é o caso de S. Miguel. Rafael é representado de uma forma mais neutra. Nesta estampa, apesar dos braços musculosos, o cabelo apresenta-se com os caracóis, que normalmente associamos aos anjinhos, às criancinhas ou aos jovens um pouco assexuados.

      Um bjo e boas festas para si e os seus

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    2. Muito obrigado Maria Paula. Quero agradecer-lhe os votos e retribuir-lhe a simpatia. Um bom Ano, pois todos precisamos.
      Muitos cumprimentos e votos de muita saúde também
      Manel

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  4. Muito bonita.
    Um abraço, Luís.
    O ano passou tão rápido e foi novamente Natal. Esse ano eu me passei no meu blog, fiz a comemoração depois!

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  5. Interessante o ramo de açucenas na mão de São Gabriel. Depois seriam as açucenas um dos atributos de São José.

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    1. Jorge

      A açucena dá uma flor muito branca e perfumada e por isso tornou-se um símbolo de pureza, símbolo da virgem ou das personagens que lhe estão associadas, S. José ou o Arcanjo Gabriel. O seu nome em latim traduz bem a simbologia sempre ligada a esta flor, Lilium candidum. No fundo a açucena acaba sempre por simbolizar a concepção sem mácula.

      Tenho que ir espreitar o seu blog.

      Um abraço

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  6. Gosto muito do Anjo da Anunciação e este é lindíssimo. Boa tarde!

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  7. Margarida

    Este Jean Mariette editava sempre coisas estupendas e depois o desenho original é do Le Brun, o pintor oficial de Luís XIV. Eu que não sou muito dado a efemérides, não resisti a coloca-la aqui no período natalício.

    Bjos

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