sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Um açucareiro de porcelana inglesa do início do século XIX



Comprei esta peça na feira de Estremoz por um preço muito convidativo. Está decorada a preto, ou melhor ainda num grisaille, com quatro motivos diferentes, representando camponeses, alguns deles tendo por fundo umas paisagens, que parecem ser inglesas. Há apenas uns filetes dourados aqui e acolá. A peça não está marcada e apresenta apenas na base um número, 979, seguido de um ponto, que se deve reportar ao padrão.

Pattern 979.


Apesar de não ter a marca de um fabricante, a peça desde logo me pareceu inglesa, do início do século XIX. Quanto à forma, semelhante a uma pequena terrina, pensei tratar-se de uma mostardeira, mas com meia dúzia de pesquisas, rapidamente me convenci que era um açucareiro.

Como estive doente, com uma gripe, retido em casa alguns dias lancei-me numa pesquisa desenfreada na internet e creio que bati todos os sites de venda on-line de antiguidades, bem como toda a colecção de porcelana Victoria & Albert Museum e não obtive resultados conclusivos.



Quando temos uma louça, que acreditamos ser inglesa, mas não está marcada, as dificuldades de identifica-la na internet são grandes. Enquanto que em Portugal, ao longo do século XIX tivemos uma única fábrica de porcelana, em Inglaterra para o primeiro quartel deste século, laboraram quase uma vintena delas. A produção dessas empresas é por vezes semelhante quanto às formas e à decoração. Enfim, todas seguiam as mesmas modas, procurando satisfazer o gosto neoclássico do público.

Neste período, para aumentar as dificuldades na pesquisa, alguns fabricantes, a par da porcelana propriamente dita, produziam a bone china (na composição entravam ossos), a porcelana branda, a porcelana feldspática, enfim, tudo aquilo, que normalmente se designa por porcelana imperfeita.

Por outro lado, tal como acontecia em França, no mesmo período, há casos de fabricantes de porcelana, que entregavam as suas peças em branco, para outros as decorarem. Embora, não me parece o caso deste açucareiro, que tirando os filetes dourados, não foi pintado à mão. As paisagens com os camponeses parecem-me feitas por transfer-way, isto é, uma chapa de metal com o desenho, que era impressa sobre um pano, que depois era aplicado na peça.


Por último, as nossas pesquisas na internet ficam limitadas ao que se encontra à venda no momento. Claro, os ingleses têm a sua porcelana bem estudada, mas eu tenho não acesso a essa bibliografia. No google books encontrei algumas monografias sobre fábricas inglesas dessa época, como sobre a New Hall, a Herculaneum ou a Worcester, mas só consegui ler alguns capítulos.

Em termos práticos, depois de vasculhar toda louça inglesa à venda na internet e os inventários de alguns museus, encontrei uns quantos açucareiros com a forma exactamente igual ao meu e todos eles da Herculaneum, uma fábrica de Liverpool, que laborou entre 1783 e 1841. Depois de 1800 terá começado a produzir porcelana ou a Bone China. No entanto as decorações são diferentes da minha peça.
Açucareiro da Herculaneum. Decoração concebida pelo ilustrador Samuel Williams. Imagem de https://www.artfund.org/supporting-museums/art-weve-helped-buy/artwork/9931/tea-service




Açucareiro da Herculaneum à venda na Fine Antique English Porcelain, com o padrão 1161

Tal como já referi em outros posts, nos serviços de chá, nem todas as peças eram marcadas. Os fabricantes marcavam ora o bule ora a leiteira ou açucareiro e nas restantes peças, não punham nada ou punham um número, que se reportava ao padrão decorativo. Estes números são muito característicos da produção inglesa e reportavam-se a livros, com os desenhos ou às chapas de metal, com os ornamentos gravados. Alguns desses livros e desenhos sobreviveram até aos nossos dias, outros foram reconstituídos artificialmente por investigadores, como foi o caso da New Hall

Como o número de padrão do meu açucareiro é relativamente alto, 979, seguido de um ponto, presumo que não date dos primeiros anos de laboração da Herculanem. Encontrei um serviço desta fábrica à venda na Christie, com o padrão 878, datado de cerca de 1815. Portanto, seguindo essa lógica este açucareiro terá sido executado por volta de 1820 ou mais tarde.


Serviço da Herculaneum à venda na Christie, com o padrão 878

Quanto a padrão, o 979, do qual não encontrei informação nenhuma, pode eventualmente relacionar-se com algumas peças da fábrica de Liverpool, cuja decoração foi concebida, por um ilustrador muito prolixo, um tal Samuel Williams (1788-1853). Há um certo ar de família entre estas paisagens com camponeses, que decoram o meu açucareiro e outras peças decoradas a partir dos seus desenhos, mas isto é um palpite meu, enfim, uma intuição.

Chávena da Herculaneum com decoração atribuída a Samuel Williams

Em suma, depois de horas esquecidas na internet, posso apenas adiantar uma hipótese, de que este açucareiro, foi fabricado em Inglaterra, pela Herculaneum, por volta de 1820 ou 1825, com uma decoração concebida pelo ilustrador Samuel Williams, mas posso estar redondamente enganado.



Alguma bibliografia e sites consultados

The Herculaneum Pottery: Liverpool's Forgotten Glory / Peter Hyland Liverpool University Press -Liverpool University Press, 2005

https://janeaustensworld.com/tag/regency-painter/

https://www.artfund.org/supporting-museums/art-weve-helped-buy/artwork/9931/tea-service

https://www.antiquepottery.co.uk/set-of-6-herculaneum-liverpool-arcaded-border-pottery-plates/

https://www.fineantiqueenglishporcelain.co.uk/en-GB/19th-century-english-porcelain/a-rare-herculaneum-liverpool-porcelain-sugar-box-teapot-stand-c-1810/prod_10411#.Y6XNaNXP23B

https://www.thefancyfox.co.uk/en-GB/cups-coffee-cans-tea-bowls-saucers/herculaneum-samuel-williams-style-coffee-can-c-1810/prod_10353#.Y6XSQdXP23A

https://www.christies.com/en/lot/lot-4039004

9 comentários:

  1. Olá Luís! Quero começar por desejar que tenha tido muito Boas Festas e que assim continue nesta época natalícia até um Ano Novo que espero lhe traga tudo o que deseja. Iguais votos para o nosso querido amigo Manel.
    Adorei este seu post que me fez voltar à minha paixão de há 10, 12, 15 anos - a produção cerâmica inglesa nos primeiros 50 ou 60 anos de laboração fabril.
    O seu açucareiro, uma peça lindíssima e de qualidade, proporcionou uma pesquisa muito intensiva de que resultou um texto elucidativo e interessante, cheio de informação muito fiável e útil que me deu muito prazer ler.
    Acontece que tenho um bule de estilo semelhante, com cenas em grisaille e filetes dourados, que não tendo marca de fabrico mas apenas o número 209. após pesquisa atribuí a New Hall ou Spode. Vejo agora a forte probabilidade de ser Herculaneum de início do séc. XIX como o seu açucareiro. Tenho pena de não poder deixar aqui fotos para lhe mostrar, mas vou ver se lhas consigo enviar por outra via.
    Um grande abraço para si e dê também um por mim ao Manel. Tudo de bom!
    M. Clara Andrade

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    1. Maria Andrade

      Que saudades. Enquanto fazia as minhas pesquisas para este post recordei-me muito de si. Aliás consultei uns quantos textos do seu blog, pois fui lá que tomei conhecimento pela primeira vez, deste sistema de numeração dos padrões, que os ingleses usavam neste início do século XIX.

      Nesta pesquisa, praticamente perdi-me no mundo da cerâmica inglesa, pois vários fabricantes usaram este sistema de numeração dos padrões e eu enfim, não consegui consultar uma série monografias publicadas sobre estas fábricas do Reino Unido.

      Estive a ver as imagens que me enviou e com efeito durante as horas esquecidas, que passei na net à procura do padrão 979 vi umas quantas coisas semelhantes ao seu bonito bule, por exemplo no link https://janeaustensworld.com/tag/regency-painter/.

      O nosso problema é que nos falta bibliografia para confirmar estas hipóteses. Estamos dependentes do que está à venda on-line no momento da pesquisa.

      Aqui na biblioteca tenho bibliografia sobre porcelana, mas mais para o século XVIII e sobre o século XIX inglês só temos umas coisas mais generalistas.

      Ainda andei a bater a página dos museus de Liverpool, que sei que têm muitas peças da Herculaneum, mas não têm as colecções on-line.

      Herculaneum foi uma hipótese que encontrei por causa da forma dos açucareiros. Mas, como nós sabemos estes fabricantes copiavam-se uns aos outros e há sempre a hipótese de outra fábrica de porcelana britânica ter também usado esta forma de açucareiro.

      Em todo o caso, foi um prazer revê-la, ainda que virtualmente e desejo-lhe umas belíssimas entradas para si e o seu marido.

      Bjos

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    2. Olá Luís! Muito lhe agradeço mais este relato das suas pesquisas, pretendendo ajudar-me a procurar alguma certeza sobre o bule. Já no tempo do meu blog tomei conhecimento e pesquisei online a obra do Peter Hyland sobre a Herculaneum, mas agora ao tentar lá voltar já não encontrei uma versão completa. Voltei a percorrer muitos sites de porcelana inglesa, voltei ao V&A e a coleções importantes, apenas para constatar de novo a quantidade e variedade de fabricos, de formas e de decorações na porcelana inglesa desta época. Foi um agradável reviver do passado nas "potteries", mas sem encontrar nada de novo.
      Um grande abraço e obrigada pela sua dedicação às velharias e suas interessantest histórias.

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  2. Isso sim é uma pesquisa que dá gosto acompanhar o relato, quase como um roteiro de filme policial!! Por acaso achei uma foto em site de Stock Shot, que não sei se você já viu, de peças (mais simples) da Herculaneum no Maritime Museum de Liverpool, todas com decoração transfer print num "grisaille" que me parece similar à sua peça, inclusive quase fora da foto e desfocada, uma cena de casal que me parecem camponeses. Dá uma olhada:

    https://www.gettyimages.com.br/detail/foto-jornal%C3%ADstica/herculaneum-pottery-on-display-at-the-maritime-foto-jornal%C3%ADstica/838282438

    Espero que em 2023 voltemos a nos falar mais, e quem sabe, até nos ver!
    Abraços

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    1. Caro Fábio

      Que prazer reencontrar-te aqui e espero que te volte a ver ao vivo aqui por Lisboa.

      Com efeito passei horas esquecidas na net, a fazer pesquisas em inglês pelo nome das diversas fábricas britânicas combinadas com o número do padrão, o 979. Cheguei até ao requinte de pesquisar em francês também, pois alguns alguns antiquários franceses também vendem alguma louça inglesa. Mas como já aqui referi aqui, estamos dependentes do que está à venda on-line no momento da pesquisa.

      Já conhecia a imagem do Maritime Museum de Liverpool, pois umas das pesquisas que fiz foi na página que agrupa os vários museus de Liverpool, pois imaginei, que nas suas colecções tivessem muita louça da Herculaneum, mas praticamente não tem nada on-line.

      Enfim, todas estas pesquisas acabam por ser divertidas e servem para conhecer melhor a porcelana inglesa e são conhecimentos que se acumulam para o futuro.

      Um grande abraço lisboeta

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  3. Fiquei algo admirado pela hipótese de ser Herculaneum, pois o que tinha visto desta fábrica não conduzia a esta sugestão, mas afinal o mundo da cerâmica inglesa é tão vasto que nunca ninguém conhece tudo sobre o número infinito de peças que aquele país produziu.
    Fico totalmente esmagado pela quantidade e qualidade do que foi produzido, sobretudo durante o século XIX. Esta peça é lindíssima e pelo preço que te custou, bem que valeu a pena.
    Agradeço sempre à Maria Clara as palavras que me dedicou.
    E gostaria de vos desejar um ano de 2023 que seja o melhor possível, e que consiga levar a bom porto as resoluções que tomar, se é que o faz ... eu vou-o fazendo, mas a maior parte delas fica por concluir, e outras esqueço-me delas.
    Manel

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    1. Manel

      O que eu conhecia da Fábrica de Herculaneum era a faiança azul e branca e o creamware. Não fazia a menor ideia que tinham fabricado porcelana ou a bone China. E com efeito, fabricaram porcelana com muita qualidade. Enfim, nesta época o reino Unido estava em plena revolução industrial e produção de porcelana era muito abundante e de boa qualidade.

      Um abraço

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  4. Lindo e tão discreto na estampa em preto e cinza, sem exageros, só o filete em dourado. Vc acha é coisa, que haja onde guardar!!!
    Aproveito e te desejo um ótimo 2023. E para o Velharias também!!!

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    1. Caro Jorge

      Muito obrigado pelo seu comentário e obrigado pelos seus votos de um bom ano, que retribuo. Creio que o Brasil este ano respirará melhor.

      Este açucareiro embora seja simples, acaba por sempre elegante com este estampado a "grisaille" e os filetezinhos dourados.

      Um abraço amigo de Lisboa

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