domingo, 26 de março de 2023

Esgravatando numa velha caixa de papelão com fotografias antigas: o retrato de um herói do ultramar


Entre as coisas que trouxe de casa do meu pai após a sua morte estava uma velha caixa de papelão, daquelas em que antigamente as camisas vinham embaladas, cheia de retratos, datados entre os finais do século XIX e os anos 60 do século XX. Nos últimos tempos lancei-me a ela e este trabalho de identificação de fotografias antigas rapidamente torna-se um vício. Também é verdade, que como sou bibliotecário, tornei-me especialista em resolver as charadas, que os alfarrábios, livros truncados e outras raridades bibliográficas sempre levantam.



Entre estas fotografias, encontrei o retrato de um senhor todo engalanado, num uniforme vistoso, cheio de medalhas, datado de 21-7-1897. O retrato foi feito da Photograhia Luso-Brazileira, de António Maria Serra, que ficava na Rua das Chagas, nº 9, em Lisboa. Fiquei muito intrigado sobre quem seria este personagem e que relação teria com a família. Seria um amigo ou um parente, mas de que ramo familiar? Dos Alves, dos Montalvões ou dos Morais Sarmento?

Photograhia Luso-Brazileira, de António Maria Serra, Rua das Chagas, nº 9, em Lisboa. Data 21-7-1897.


Mas tenho a sorte de ter um irmão, que além de ser um oficial na reforma, sabe muito de história militar e enviei-lhe cópia da fotografia frente e verso para ver se aquele uniforme todo engalanado lhe dizia alguma coisa. A sua resposta foi mais ou menos a seguinte: a farda foi do exército português de um regimento 6 ou 8 (golas da farda), mas o mais importante era a condecoração torre espada (colar), o galardão mais importante das Forças Armadas Portuguesas. Esta Torre Espada seria das campanhas de Moçambique (1875) onde se distinguiram Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro, Marechal Gomes da Costa (na altura capitão). O meu irmão sublinhou que na época apenas um pequeno grupo de 4 ou 5 oficiais recebera esta condecoração.
A Torre Espada

Tudo isto aumentou mais a minha curiosidade e coloquei a hipótese de se tratar do General José Celestino da Silva, que nasceu em Vilar de Nantes, nas cercanias de Chaves e que casou com Amélia Augusta Coelho Montalvão, uma prima direita da minha trisavó, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão. Enfim, tudo gente de Chaves e arredores. Contudo, se o General Celestino da Silva foi também condecorado com a Torre de Espada em virtude das suas acções em Timor, nos vários retratos que encontrei dele na net, não assemelha em nada com o senhor retratado nesta fotografia

General Celestino da Silva

Comecei então a pesquisar, tentando encontrar a lista dos que foram distinguidos por esta condecoração no último quartel do século XIX, até que no motor de busca da Torre do Tombo, o Digitarq encontrei várias fotografias destas insígnias da Torre e Espada, que pertenceram a Mouzinho de Albuquerque e lembrei-me então de procurar retratos antigos deste homem, que tanto ouvi falar nos tempos da escola primária, o herói da batalha de Chaimite, aquele que prendeu Gungunhana. 

Colar e comenda da Torre e Espada pertencentes a Mousinho de Albuquerque. Foto Arquivo Nacional da Torre do Tombo


Ao fim de umas quantas pesquisas no google, encontrei uns retratos de Mouzinho de Albuquerque num blog memorialista da cidade de Lourenço Marques e percebi que o senhor de uniforme engalanado da velha caixa de papelão é efectivamente Mouzinho de Albuquerque!!

Mouzinho de Albuquerque em Moçambique. Foto Delagoa Bay


Mouzinho de Albuquerque em Moçambique. Foto Delagoa Bay


Confirmei esta identificação no repositório do Arquivo Científico Tropical onde encontrei mais dois retratos daquele herói ultramarino.

Mouzinho de Albuquerque em Moçambique. Foto Arquivo Científico Tropical  


Não vou aqui explicar, quem foi Mouzinho de Albuquerque (1855-1902), quem quiser saber mais abra a Wikipédia, mas foi um homem extraordinário, que se distinguiu na pacificação e governo de Moçambique. Regressou à metrópole em 1897, a data desta fotografia, onde foi acolhido em glória, condecorado e ainda homenageado em todas as partes do País. Tudo isto faz-me pensar como é que a fotografia veio parar à família. Mouzinho de Albuquerque era da Batalha, do Distrito de Leiria e não tinha nada a ver com Chaves. Poderia ser talvez amigo do General Celestino da Silva, que era flaviense e este último o tenha apresentado a alguém da família Montalvão da qual era parente por parte da mulher, mas não tenho nada que prove qualquer relação entre estes dois militares. Em 1897, data da fotografia, Mouzinho de Albuquerque percorreu o país em apoteose e nessa altura, poderia ter oferecido o seu retrato, a alguém da família Montalvão ou dos Alves. Nesta época, já se começavam a comercializar fotografias de pessoas famosas, por exemplo actores de teatro, ou membros da realeza e não é de excluir a hipótese, que algum dos meus antepassados tenha adquirido esta fotografia porque desejava ter em casa o retrato de um herói nacional, que em África, devolveu aos portugueses o orgulho perdido com a afronta do ultimato inglês de 1890.

Como herdei também o espólio documental da família, talvez encontre uma carta da época, esclarecendo melhor este assunto.

Bem sei que este fotografia que apresento de um herói colonial não é um tema politicamente correcto nos dias de hoje. Mas a história não pode ser apagada com uma borracha e transformada de acordo com as modas contemporâneas e este retrato de Mouzinho de Albuquerque, esquecido numa velha caixa de papelão, que sobreviveu mais de 120 anos, está aqui para prova-lo.

Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque


Algumas ligações consultadas: 





4 comentários:

  1. Ainda me recordo deste nome ser o de um dos heróis que o meu pai celebrava e do qual muitas vezes me falava. Ele tinha mesmo uma fotografia deste homem que comandou as tropas portugueses na luta contra Gungunhana.
    Fiz alguma confusão, ao ler este teu post, com o "quadrado de Marracuene", de que o meu pai me falava igualmente, como um dos momentos importantes na luta contra as forças vátuas do reino de Gaza, pois, ao consultar a informação, dei conta que esta tática foi utilizada, não por Mouzinho, mas por Caldas Xavier.
    O meu pai, quando era criança, fez questão de me levar a Marracuene, no entanto, na minha cabeça, as coisas misturaram-se, dada a distância temporal.
    Mouzinho teve o seu confronto decisivo com as forças de Gungunhana em Chaimite, na província do Chibuto, que também era um local próximo de onde os meus pais habitaram durante alguns anos, e, talvez o meu pai, grande admirador de Mouzinho de Albuquerque, me tenha levado ali, e até explicado a importância do local, mas já não consigo recordar esse facto.
    É interessante teres encontrado este retrato e o tenhas trazido aqui, pois trouxe-me à memória alguns acontecimentos que já estavam enterrados na minha cabeça.

    A Praça Mouzinho de Albuquerque, em Lourenço Marques, era um dos pontos nevrálgicos da cidade, com uma imponência que a demarcava, marcada por uma estátua equestre do militar, em bronze, rodeada de baixos relevos igualmente em bronze, que me ficaram na mente.
    Creio ter ouvido o meu pai comentar que todo o monumento era da autoria de Simões de Almeida. Lendo a informação que existe, este facto é verdadeiro.
    Claro que hoje, tenho a certeza, apesar de não saber ao certo, pois nunca mais regressei e não tenho contatos com aquele país, este monumento deve ter sido apeado e o monumento destruído.
    São assim as vicissitudes da história.
    Não querendo ser saudosista, tenho alguma nostalgia por estes marcos que vão desaparecendo das cidades, e que, afinal, marcam a sua história, quer para o melhor, quer para o pior, qualquer que seja a perspectiva com que se olhe a história.
    No entanto, a história não pode ser escamoteada, quer gostemos quer não, mas antes comunicada como testemunho às gerações futuras. O julgamento é inócuo e vazio, os acontecimentos são o mais importante.
    Manel

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    1. Manel

      Creio que a memória de Mouzinho de Albuquerque foi apagada das praças e das ruas de todas as cidades das antigas colónias portuguesas. Mesmo, por cá a figura deste homem anda um pouco esquecida, pois os temas coloniais são varridos para debaixo do tapete. E no entanto este homem teve uma vida admirável e um fim terrível, pois matou-se com o desgosto, que as intrigas do governo de Lisboa lhe provocaram. Não referi isso no blog, pois teria que escrever mais três ou quatro parágrafos e o meu objectivo era a identificação do retrato.

      Um abraço e obrigado pelo teu comentário, que recordou a todos a importância que este homem teve.

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  2. Respostas
    1. Margarida

      Muito obrigado pelo seu comentário.

      Um abraço

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