quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A sempre noiva: estampa feita dos finais do séc. XVII


Há mais de 15 ou 16 anos que tenho esta gravura comigo e estive sempre convencido que representava a Rainha D. Maria I (1734 -1816). Era evidente que se tratava de uma soberana e portuguesa, como se podia ver pelo escudo e como no século XVIII só houve uma mulher a ocupar o trono em Portugal, só poderia tratar-se de D. Maria. Assim durante todo este tempo vivi convicto que tinha uma estampa original dos finais do XVIII, em casa representando a rainha D. Maria I.


A lisonja

Mais recentemente, achei que esta estampa merecia um post e procurei informar-me sobre ela. Contudo, por muitas pesquisas que fizesse os resultados eram sempre nulos, A única coisa que adiantei foi sobre o brasão, na parte inferior da gravura, que se apresenta em forma de losango, com o lado esquerdo preenchido com as armas de Portugal e o lado direito vazio. Esta forma de brasão é designada por lisonja e é apanágio das mulheres. Como as senhoras não iam a guerra, os seus brasões não eram em forma de escudos. Usavam então estas lisonjas, que quando tinham a metade esquerda em branco, significava que ainda não eram casadas. Quando arranjassem um marido, as insígnias heráldicas dele ocupariam o lado esquerdo.

Persuadi-me então que se tratava de um retrato de D. Maria I, ainda solteira, talvez ainda como princesa herdeira do trono.

E continuei neste convencimento, até que segunda-feira, descobri na secretaria de um dos colegas de trabalho, um livrinho intitulado Princesas e infantas de Portugal: 1640-1736/ Ana Cristina Duarte Pereira. – Lisboa: Colibri, 2008 e qual não foi o meu espanto quando encontrei a imagem da minha gravura na capa. Abri logo para ler a ficha técnica e descobri que estampa representava a afinal Isabel Luisa Josefa, Princesa da Beira!


Isabel Luisa Josefa por Dupra

Esta senhora, cujo nome para a maioria dos portugueses não diz nada era a filha única de Pedro II e de D. Maria Francisca de Sabóia, que protagonizaram um dos episódios mais rocambolescos da história portuguesa. Depois da Restauração da Independência em 1640, a coroa portuguesa procurou estabelecer a paz com os países inimigos da Espanha, que continuavam a atacar as nossas caravelas e colónias, e para esse efeito nada melhor do que resolver os conflitos com casamentos. A filha de João IV, Catarina foi despachada para o rei de Inglaterra e por consequência os navios corsários ingleses deixaram em paz os nossos navios e o primogénito, Afonso VI casado com uma princesa da corte de Luís XIV, Francisca de Sabóia, conseguindo assim o apoio da França contra a Espanha.

Ora acontece que Afonso VI era um incapaz e a Maria Francisca uma mulher ambiciosa, educada na corte sofisticada de Luís XIV, cujos costumes não primavam pelo rigor e não tardou em envolver-se com o cunhado, D. Pedro e a intrigar abertamente contra o 1 º ministro, o Conde Castelo Melhor. Juntamente com o cunhado, acabaram por levar os seus projectos a bom porto, o rei foi interditado, o casamento anulado e os dois, conseguiram-se finalmente tornar reis de Portugal, após a morte de Afonso VI.

O casal só teve esta filha, que, ao que consta foi muito bem-educada. Falava francês, italiano e espanhol, sabia latim e dedicava-se ao estudo da história. Além destes predicados era bonita, pelo menos a julgar pelos retratos. Sendo filha única era a herdeira do trono português e portanto usava o título de princesa da Beira. O seu pai tentou arranjar-lhe vezes sem conta marido por toda a Europa, mas os projectos abortaram sempre e a pobre rapariga ficou maliciosamente conhecida pela sempre noiva. Acabou por morrer cedo, com 21 anos, em 1690, sem nunca casar e sem poder usar os seus predicados culturais e físicos. O trono será ocupado, pelo seu meio meio-irmão, o futuro D, João V, nascido do segundo casamento do pai.


Quanto à estampa, sabendo já quem representava, descobri facilmente uma igual na Biblioteca Nacional. O exemplar deles não tem os dados de impressão tapados pelo passe partout como o meu e contem assim a seguinte legenda:

Halé delin. ; H. Trudon Effigiem pinx ; G. Edelinck... sculp., Parisiis


A gravura foi impressa em Paris, entre 1690 e 1705, data baseada no período de actividade do gravador, que foi um tal Gérard Edelinck, (1649-1707). Flamengo estabelecido em Paris, este gravador alcançou um enorme prestígio em França. Foi nomeado por Colbert professor na manufactura de Gobelins e admitido na Academia em 1677. Realizou gravuras de retratos das mais conhecidas pessoas em França no tempo de Luís XIV, como Descartes, Colbert, Lebrun, Rigaud, Champaigne, Santeuil, Nicolas Feuillet e do próprio Rei e ainda da sua amante preferida na época, Louise de La Vallière.


Louise de La Vallière, a maîtresse-en-titre de Luís XIV


Fiz mais umas pesquisas e descobri a mesma gravura no British Museu e mais informações sobre os artistas que executaram o desenho. O pintor Claude Guy Hallé executou o desenho da composição geral e Jerome Trudon o retrato da princesa propriamente dita a partir de um quadro anteriormente pintado por si. Claude Guy Hallé (1652-1736) pertencia uma dinastia de pintores e foi um artista conhecido no seu tempo. Algumas das suas obras serviram de cartão para tapeçarias de Gobelins.



Réparation faite au roi par le doge de Gênes por Hallé. Obra que serviu para cartão de uma tapeçaria

Trudon foi um pintor que caiu completamente no esquecimento.


A alegoria da Igreja
A descrição do British Museum forneceu-me também a chave dos elementos iconográficos da estampa. Ao centro vemos a Princesa da Beira, rodeadas de três figuras femininas, que representam as três virtudes teologais, a Fé (com o cálice), a Caridade (chama) e a Esperança (a âncora). A figura do alto, envergando a coroa de S. Pedro, representa a Igreja.



A Fé

A Caridade
A esperança

Talvez esta estampa tenha sido encomendada por D. Pedro II, em Paris, a um dos melhores gravadores da época, Gérard Edelinck, como forma de propagandear pelas cortes europeias, a beleza e as virtudes da princesa católica, que se queria casar a todo custo, e por essa razão julgo que a data da sua execução seja anterior à morte da Princesa, em 1690.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Canapé estilo D. Maria do Solar de Outeiro Seco


Este canapé fazia parte do recheio do Solar dos Montalvões em Outeiro Seco. Ao contrário de uma ou outra peça de mobília ou de artes decorativas, que ainda me recordo nos seus sítios originais em Outeiro Seco, desta já não tinha qualquer ideia. Também a última vez que visitei o solar teria uns 16 ou 17 anos e nessa idade não tinha o olho treinado para as belas antiguidades e muito menos a consciência, que era a última vez que estava a ver a casa com o seu recheio original e que tudo aquilo iria ser dividido, disperso ou abandonado ao caruncho.

No entanto, com alguma paciência, visionei umas quantas vezes o filme,que o meu pai fez nos meados nos anos sessenta do interior do solar e consegui descobri-lo na chamada sala do museu, aquela divisão onde o meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio reuniu o seu gabinete de curiosidades. No inventário sumário da casa que a minha avô Mimi fez da casa, mais atento às artes decorativas, do que ao mobiliário, menciona nesta sala a existência de três sofás, com os respectivos conjuntos de cadeiras, sendo que os dois primeiros são do estilo D. Maria. Provavelmente, um deles será o exemplar da fotografia que apresento. A avó usou o termo canapé como sinónimo de sofá.

Do lado esquerdo podemos ver o canapé na sua localização original, no solar de Outeiro Seco

Depois da partilha do recheio pelos herdeiros e da venda da casa, este canapé, calhou a minha avó Mimi, que o colocou no escritório da casa, em Chaves. Nessa época, nós os jovens, éramos constantemente admoestados, sobre a forma como nos devíamos ali sentar. De facto, estas peças de mobiliário são pouco confortáveis, frágeis e não foram desenhadas para as pessoas se estiraçarem-se nelas a ver televisão, com um balde de pipocas à frente. Estes canapés destinavam-se às salas de visitas, onde as senhoras, os cavalheiros e as criancinhas se sentavam muito direitas e compostas. As visitas eram um momento formal das classes mais abastadas. Havia até cerimonial próprio. As pessoas retribuíam as visitas, que faziam umas às outras e deixavam sempre um pequeno cartão e existia até um movelzinho próprio, que segurava uma bandeja em prata, porcelana ou faiança, para deixar os cartões de visita. Creio que se chamavam bilheteiras. Envergavam-se as melhores toilettes para esta actividade social e as senhoras nunca tiravam o chapéu. Enfim, este aparte, serviu só para explicar aos mais novos, o motivo porque estas peças de  mobiliário são tão pouco confortáveis, pois correspondiam serviam uma actividade social muito formal.


A minha avó passou os últimos dez anos da vida dela num lar, completamente incapacitada mentalmente e o canapé ficou encerrado, na sua casa, às escuras, ganhando caruncho. Depois da sua morte, os filhos fizeram as partilhas e o meu pai ficou com o canapé. Colocou-o na sala de jantar. Porém, como era muito grande e atravancava a sala, despachou-o para um armazém e lá ficou outra vez por mais uma década, à mercê da humidade, do pó e do bicho da madeira.

Subitamente no Verão passado, o meu pai resolveu desfazer-se do armazém e dividir o seu conteúdo pelos filhos. Fiquei com a fonte em alabastro e este enorme canapé de quatro lugares, para o qual não tinha de todo lugar em casa. O Manel veio em meu auxílio, ofereceu-se para guarda-lo e lá foi ele para Pombal aterrar em mais uma arrecadação. Este Verão, o canapé viajou mais uma vez vez e rumou para o Sul, para casa do Alentejo do Manel. Aqui teve mais sorte, pois o Manel gostou dele e resolveu restaura-lo. Quando o Manel gosta muito de uma peça oferece-se para recupera-la.

O resultado do restauro foi este, que vemos na fotografia. A madeira de nogueira reapareceu debaixo da sujidade com um brilho muito bonito, mas manteve a patina do tempo. A estrutura foi consolidada e algumas partes muito atacadas pelo caruncho foram até refeitas. A palhinha foi limpa e passada com goma laca para ganhar algum lustro, mas sem brilho excessivo. Enfim, o Manel fez um trabalho que respeitou a antiguidade e a história da peça.


O trabalho em marcheteria. Os embutidos serão talvez em raiz de nogueira ou freixo

Embora este tipo de peças seja vulgarmente designado pelo estilo D. Maria (1777-1816), a sua execução já foi certamente posterior ao seu reinado.

Cadeira inglesa estilo Regency

Terá sido executado à volta de 1815-1830, ou talvez um pouco mais tarde, pois os braços e mesmo o espaldar já acusam os estilos da Restauração em França (período após a queda de Napoleão, 1815, em que os Bourbons regressaram ao trono de França) ou do estilo Regency, em Inglaterra. Mas o trabalho de marchetaria no espaldar, o uso da palhinha, a madeira clara, as linhas simples e suaves são ainda ao gosto do chamado estilo D. Maria.

domingo, 14 de agosto de 2011

Cadeira estilo Luís XVI

O meu amigo Manel gosta de comprar velhos móveis, que muitas vezes já ninguém liga muito, para os restaurar e devolver-lhes uma nova vida. Ao mesmo tempo que os restaura, estuda-os e vai solidificando os seus conhecimentos sobre uma determinada época, como por exemplo, esta cadeira, que adquiriu há uns anos e apresenta todas as características do estilo artístico, que dominou o reinado do rei francês, Luís XVI (1774-1791) e que tomou o seu nome. Este Luís foi o Senhor que casou com Maria Antonieta e dois tiveram um triste fim, pois acabaram guilhotinados, vítimas da fúria da Revolução de 1789.

O estilo Luís XVI surge como reacção aos excessos barrocos do período anterior, o chamado Estilo Luís XV, em que todas as linhas são curvas e exuberantes e a simetria do classicismo é pura e simplesmente arrumada e esquecida nas arrecadações dos sótãos dos palácios.

A rosácea é um elemento típico deste estilo

O novo estilo Luís XVI baseou-se nas recentes descobertas arqueológicas de Pompeia, em 1748, que impressionaram a Europa dos aristocratas e os membros do alto clero e puseram na moda um gosto mais sóbrio, uma admiração pelas linhas direitas, pelas colunas dos templos clássicos. Aliás este gosto pelas colunas é um dos traços mais característicos do mobiliário Luís XVI. Os pés das cadeiras, das poltronas, das camas, das cómodas e dos canapés parecem pequenas colunas romanas.


O pé canelado como se fosse uma coluna clássica
Mas este retorno à antiguidade não é um plágio, mas antes uma inspiração, pois a época é demasiado frívola e desejosa de fantasias para adoptar sem restrições as linhas demasiado frias do classicismo.

os pequenos pormenores frívolos destinados a seduzir

Recordo-vos que é este o período em que a rainha Maria Antonieta vive uma existência despreocupada em Versalhes, gastando milhões em vestidos, mandando erguer nos jardins do referido Palácio, uma aldeia falsa para brincar aos camponeses com o seu círculo íntimo. Assim, nas formas puras do classicismo, usam-se grinaldas, os estofos das cadeiras são feitos de delicados tecidos com padrões florais. Embora, baseado no classicismo o estilo Luís XVI é feminino, cheio de graça e destinado a seduzir.
o espaldar cabriolet en chapeau e o tecido floral muito típico da época

Normalmente este mobiliário tinha por pano de fundo salas com boiseries em madeira trabalhada e pintada, que se harmonizavam com os estilos dos móveis. Reproduzo aqui o desenho de umas dessas salas apaineladas, retirado da obra L'Art architectural en France, motifs de décoration intérieure et extérieure / dessinés... par Eugène Rouyer ; Texte, par Alfred Darcel. - Paris : Noblet et Baudry,1863-1866, para vos dar uma ideia do luxo desses interiores.

As boiseries Luís XVI

Voltando a cadeira à cadeira do Manel, ela é feita em faia, uma madeira que normalmente se usava nos móveis que se destinavam a serem pintados. O mobiliário francês desta época é muitas vezes pintado de branco, cinzento ou então dourado. A faia é uma madeira pouco usada na marcenaria portuguesa, o que leva o Manel a pensar que esta peça tenha origem no estrangeiro. Em Portugal normalmente usa-se castanho, nogueira, carvalho ou madeiras exóticas, como o pau-santo.

O Manel como não gosta de móveis pintados, retirou-lhe a tinta cinzenta e deixou-a na sua cor natural, o que está mais de acordo com a tradição portuguesa, que aprecia a textura e as cores da madeira à vista.

Para o estofar, escolheu-lhe um bonito tecido bastante antigo, apanhado do lixo em Barcelona e que pertenceu aos cortinados de um velho palácio daquela cidade,


No entanto, a cadeira estava estofada com molas, o que indicou desde logo ao Manel que a sua peça não poderia ser um original do século XVIII. As molas só aparecem no século XIX. Por outro lado, esta cadeirinha fazia parte de um conjunto, formado por um canapé, poltronas e muitas cadeiras, o que também nos mostra que será já uma peça do século XIX, pois é nesta época que as famílias burguesas ganham o hábito de encomendar jogos de mobília no mesmo estilo para cada uma das divisões. Para a sala de jantar escolhiam móveis Renascença, para o escritório um solene estilo império e para a sala de visitas, um delicado conjunto estilo luís XVI.

Eugénia do Montijo por Franz Xaver WINTERHALTER
Na verdade esta cadeira é muito provavelmente da época de Napoleão III, acerca da qual já aqui escrevemos. A sua mulher, a espanhola, Eugénia de Montijo, tinha uma verdadeira paixão pelo mobiliário estilo Luís XVI, de que mandou executar inúmeras cópias, lançando assim uma moda, que se espalhou por toda a Europa e Américas. Em França chamam as estas cópias “Louis XVI-Impératrice” e a partir de meados do século XIX multiplicaram-se por todas as grandes casas burguesas de Lisboa a Varsóvia, passando por Berlim e estendendo-se ao Rio de Janeiro ou a Nova Iorque.

Para quem quiser saber mais recomendo a leitura da obra Reconnaîte les meubles de style / P.M . Favelac. - Paris: Ch. Massin, [s. d.]

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Paris par Laure Albin-Guillot


Passam-me muitos livros pela mão. Consigo estabelecer com eles uma relação impessoal, como os médicos fazem com os seus doentes. Mas, a semana passada, tive um verdadeiro choque, quando ao abrir um álbum luxuoso de 41 cm e deparei com estas fotografias a preto e branco de Laure Albin-Guillot. São imagens de uma beleza lancinante de Paris. Foram provavelmente tiradas nos finais dos anos 30, mas mostram uma Paris imemorial, cujas imagens já tinha na cabeça, muito antes ainda de visitar a cidade. Aliás, só com o tempo, consegui reencontrar em Paris estas imagens que alimentaram a minha infância e adolescência. As primeiras vezes que lá fui senti-me esmagado e intimidado pela grandeza da cidade. Depois aos poucos, com o auxílio da literatura, da arte, da história e do cinema consegui ter a maturidade suficiente para descobrir a elegância e a beleza da arquitectura e urbanismo parisienses, que Laure Albin-Guillot tão bem mostrou.


A livro onde estão estas imagens chama-se Les Splendeurs de Paris e abre com uma citação de Paul Valery, muito a propósito da fotografia a preto e branco de Laure Albin-Guillot, em que afirma que a obra reduzida à luz e à sombra toca-nos mais e torna-nos mais profundamente pensativos, que o registo a cores. Não resisto a transcreve-la na íntegra e em francês. Comment le blanc et le noir vont parfois plus avant dans l’âme que la peinture et comment, ne prenant au jour que ses différences de clarté, un ouvrage réduit à la lumière et aux ombres nous touche, nous rende pensifs plus profondément que ne fait le registre des couleurs.



Laure Albin-Guillot (1879-1962) começou a sua carreira de fotógrafa como auxiliar do seu marido, investigador num laboratório, ao executar fotografias de micro-organismos. Nos anos 20 já era uma artista consagrada e premiada, que realizou retratos de André Gide, Paul Valéry e Jean Cocteau entre outros. Nos anos 30, foi fundadora da cinemateca francesa e ilustradora dos livros Narcisse de Paul Valéry e Les Chansons de Bilitis de Pierre Louÿs. Foi também autora de nus muito simples e inspirados.


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Sta. Catarina de Alexandria: gravura dos finais do século XVIII

Já aqui escrevi sobre Sta. Catarina de Alexandria, figura lendária cuja existência se confunde com a mítica Hipácia, a mulher filosofa, que defendia os ideiais do conhecimento helénico face a um Cristianismo cada vez mais asfixiante e que por essa razão terá sido assassinada por uma turba enfurecida, em 415 da nossa era.


Mas, desta vez, poupo-vos aos pormenores da vida da santa e o mote deste post é autor do registo que vos apresento, provavelmente datado dos finais do século XVIII. Apresenta Santa Catarina com a iconografia tradicional, a palma e o instrumento do seu martírio, a roda. Ao fundo há um pormenor delicioso, que representa a Santa quebrando a roda, com a força da sua fé.



Tirando o pormenor anedótico da Santa quebrando a roda, o desenho da estampa é mais académico e clássico do que o da maioria dos registos da época e iremos perceber porquê.



Como poderemos ver, no rodapé do lado esquerdo, a estampa está assinada por Godinho. O “F” no final, é abreviatura da palavra latina fecit, que quer dizer obviamente “fez”. O Senhor que a fez trata-se provavelmente de Manuel da Silva Godinho, um gravador do século XVIII, discípulo de J. Carneiro da Silva, sobre quem já aqui escrevemos. Segundo Luís Chaves, na obra Subsídios para a História da gravura em Portugal. Coimbra, Imp. Da Universidade. 1927 este Manuel da Silva Godinho destacou-se como grande produtor de estampas devotas.

Talvez em virtude de ter sido aluno de J. Carneiro da Silva na aula de gravura da Imprensa Régia, a futura Imprensa Nacional, que ainda hoje existe, da Silva Godinho deixou um trabalho artístico mais clássico que os outros gravador de estampas religiosas.

Biblioteca Nacional possui no seu acervo umas quantas estampas, que estão on-line, deste gravador, datadas entre 1790 e 1800. Gostei particularmente do retrato de Bento Joze Labre, que roubei no site da referida Biblioteca e que aqui reproduzo.
 
 
Impresso numa cor azulada, o meu registo reporta-se à devoção praticada na ermida de Santa Catarina, em Lisboa, que se situava no alto de Santa Catarina, onde hoje é o palacete da Associação Nacional das Farmácias. A ermida era propriedade da Irmandade dos Livreiros, o que fazia todo o sentido, pois estava localizada muito perto dos bairros onde se distribuiam as  lojas destes comerciantes (Calçada do Combro, Bairro Alto, Chiado) e Santa Catarina,  famosa pela sua erudição e cuja figura se confundia com a filosofa Hipácia, era naturalmente sua patrona.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Fotografias antigas da capela do Espírito Santo em Fronteira

Quando escrevi o meu post sobre as ruínas da capela do Espírito Santo na vila de Fronteira, a Maria Andrade comentou com amargura a destruição de uma casa antiga em Anadia e na promessa não cumprida de a Câmara recuperar uma janela manuelina dessa casa, para a colocar num jardim. O Flávio escreveu que gostaria era de ver imagens da capela antes da sua destruição parcial, em 1970. Apesar da beleza destas ruínas, o que as pessoas queriam dizer era que teria sido bem melhor conservar e restaurar o monumento do que deixa-lo cair.


Estes comentários deixaram-me a matutar e resolvi procurar mais sobre esta capela, seguindo uma das pistas indicadas no site http://www.monumentos.pt/, que indica como referência básica o autor Keil.


O portal lateral
Calculei logo que se tratasse do Luís Keil, que entre outras coisas foi funcionário do Museu Nacional de Arte Antiga e descobri através de uma pesquisa bibliográfica, que o quer ele tivesse escrito sobre Fronteira só poderia estar Inventário artístico do Distrito de Portalegre, publicado em 1943.


O púlpito
Consultei o referido volume e lá estavam as fotografias da capela ainda inteira, apesar de já muito arruinada, com a porta principal emparedada. No entanto no início dos anos 40 ainda tinha tecto, o púlpito, um tecto e as 4 fachadas.

O portal principal já emparedado

Resolvi partilhar essas fotos com os seguidores deste blog, bem como com as outras pessoas que por aqui passam, trazidas ao acaso pelas pesquisas nos motores de busca. São fotos de fraca resolução e a preto e branco, mas documentos significativos.
O altar da fotografia inicial

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Azulejos cosméticos


As casas antigas são como as velhas damas, precisam de muito pó-de-arroz para tapar as rugas e as outras marcas do tempo. As estruturas dos prédios antigos lisboetas são muitas vezes em madeira, ainda segundo o esquema da gaiola pombalina e como esse material encolhe ou estica, consoante a humidade ou o calor, as paredes abrem rachas todos os anos, que é preciso corrigir aplicando massa tapa-fendas, tal como fazem as velhas senhoras às suas rugas. E depois, para o aparecimento de todas estas rachas concorrem factores como a sucessão de obras mal feitas nestas casas antigas, que as fragilizam para sempre e ainda os pequenos sismos, que volta meia volta, sacodem os habitantes destas casinhas



Os azulejos antigos são uma alternativa à massa tapa-fendas e um óptimo cosmético para as casas antigas e por isso há que tê-los sempre à mão. Nesta parede do quarto dos meus filhos existia uma racha particularmente persistente, que há uns três ou quatro anos tapava e que reaparecia sempre. Com um fragmento de um painel historiado do século XVIII, comprado por tuta-e-meia na Feira da Ladra, tapei a malvada racha e dei a ilusão, que quando fiz obras em casa, apareceu debaixo do estuque um vestígio de um painel antigo de azulejaria.

O azulejo é realmente um material versátil capaz de criar ilusões dentro e fora das casas.